Os complexos dilemas femininos

POR RAFAEL CAMPOS – revista de domingo do jornal Correio Braziliense

Violência doméstica, aborto e participação política são alguns dos temas recorrentes em cada campanha eleitoral. A uma semana das eleições, Dilma Rousseff e Marina Silva falam sobre eles

 


A partir de 1º de janeiro de 2011, o Brasil entrará em uma nova fase. Independentemente de quem saia vencedor nas urnas, os 16 últimos anos tornaram o país, dentro das limitações políticas, mais democrático. Com esse avanço, os direitos da mulher tornam-se, cada vez mais, aspectos dependentes de políticas públicas, em vez de apenas tópicos defendidos por movimentos sociais. Sobretudo, diante da situação em que o país se encontra em relação a seus pares na América Latina. De acordo com o ISO-Quito, índice que mede a igualdade das mulheres nos países latino-americanos, entre os 16 avaliados, o Brasil ocupa o 15º lugar, superando apenas a Guatemala.Oíndice levaemconta aspectos políticos, em relação à paridade nas decisões governamentais; econômicos, que consideram as diferenças trabalhistas; e sociais, que remetem ao bem-estar da mulher. O cálculo é feito tendo como base compromissos assumidos pelos países da região durante a Conferência Regional da Mulher, realizada em 2007, em Quito, no Equador. A Revista ouviu mulheres de diversos setores da sociedade, inclusive de entidades organizadas, para saber quais são as grandes questões femininas e quais demandam políticas públicas mais imediatas. As principais são aborto, participação política e na administração pública, e violência doméstica. As candidatas Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV) se pronunciaram sobre os temas. Até o fechamento da edição, o candidato José Serra (PSDB) não respondeu às perguntas enviadas em 10 de agosto.

Aborto

A mais polêmica das lutas femininas também é a que mais rende comentários dispersos dos candidatos. O aborto legal é uma bandeira de luta constante entre os que defendem os direitos da mulher. Os movimentos sociais acreditam em avanços nas discussões do tema durante o mandato do atual presidente. Porém, não foram suficientes. Para Maria José Rosado, coordenadora geral do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, a comissão tripartite, criada em 2005 e formada por representantes dos poderes Legislativo e Executivo, e da sociedade civil, conseguiu propor a primeira revisão da legislação brasileira sobre o aborto. Entretanto, tudo ficou nas proposições.

“O mesmo governo não levou adiante. A comissão deveria terminar com uma legislação que liberasse o acesso das mulheres ao aborto comoumdireito à cidadania”, afirma. De acordo com o anteprojeto, a descriminalização do aborto aconteceria até a 12ª semana de gestação e, caso a gravidez implique risco de morte ou malformação fetal, em qualquer momento dela. A mudança na lei, contudo, terá de acompanhar uma mudança no pensamento. ParaMaria José, a providência inicial do novo presidente deveria ser a desvinculação total de relações com setores religiosos nas decisões que envolvam a saúde sexual das mulheres. “O governo deve ser fiel ao princípio constitucional, não vivemos em um estado teocrático. Isso, para nós, mulheres, e para a discussão do aborto, é fundamental.” A cientista política do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) Fernanda Feitosa é taxativa. Para ela, o aborto legal não é um direito que deva existir sozinho. Como forma de política pública, o governo federal deve dar atenção à saúde integral da mulher. “Com educação sexual, para prevenir a gravidez indesejada, com o planejamento familiar como política de Estado e o aborto legal para que as mulheres não morram.”

Caso de saúde pública

Mesmo com o aborto proibido, a curetagem é a cirurgia mais realizada no SUS, de acordo com levantamento feito pelo Instituto do Coração (InCor). Os dados, apresentados este ano, analisaram o período entre 1995 e 2007, quando 32 milhões de procedimentos foram realizados, sendo a maioria, de acordo com estimativas do Ministério da Saúde, em decorrência de abortos provocados. E são comuns os casos de mulheres que sofrem preconceito ao procurarem o serviço de saúde para tratar problemas decorrentes de um aborto. “Muitas mulheres são condenadas à morte em um país que não tem pena de morte, porque o profissional de saúde resolve maltratar aquela que fez um aborto. O cuidado tem de ser uma responsabilidade do Estado: elas não podem deixar de ser atendidas ou serem mal atendidas, independentemente de se concordar ou não”, alerta Sílvia Camurça, educadora do Instituto Feminino para a Democracia—SOS Corpo.

Violência doméstica

A cobertura intensa da mídia ao caso Eliza Samúdio, ex-namorada do goleiro Bruno, do Flamengo, deu ainda mais evidência à importância do combate à violência contra a mulher, que já havia recebido mais destaque desde a sanção da Lei Maria da Penha. De acordo com pesquisa realizada pelo Centro pelo Direito àMoradia contra Despejos (Cohre), uma em cada quatro mulheres no Brasil apanha. Para Maria José Rosado, a proposição da Lei Maria da Penha já deve ser considerado um avanço. “Por meio dela, a sociedade começou, de fato, a discutir a violência contra a mulher.” Para as entrevistadas, o novo presidente da República precisa trabalhar para que não existam alterações na Lei Maria da Penha que diminuam seu rigor. “No parlamento, estamos acompanhando muitos projetos que descaracterizam a lei. Por vivermos em uma sociedade patriarcal, é a lei que cumpre o papel do Estado em tutelar o elo mais fraco, que na violência doméstica é a mulher, por uma questão de força física e dependência emocional”, afirma Fernanda Feitosa, do Cfemea. Uma das grandes reclamações das mulheres é que as delegacias especializadas não conseguem dar o apoio necessário

Mais proteção

A enfermeira Shirley de Fátima Dias Pereira, 35 anos, diz que falta um trabalho para as que procuram ajuda que vá além da denúncia. “Muitas vão denunciar e não são totalmente acolhidas. Elas tinham que receber acompanhamento psicológico, um apoio à segurança, que muitas vezes tem falhado para ela, que já vive com medo.” Shirley afirma que é preciso uma tutela maior do Estado com os casos mais extremos, especialmente com ajuda financeira. “Várias não denunciam porque ficam com medo de não ter o que fazer, porque vivem dependentes do marido e voltam para casa e apanham de novo.”

Participação política

De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 52% dos eleitores aptos a votar em 2010 são mulheres. Apesar dessa maioria, a realidade dos partidos é outra: a subrepresentação feminina nas esferas do poder ainda é um entrave para que suas bandeiras tenham maior visibilidade.

A dificuldade em conseguir o mínimo de 30% de participação feminina nas coligações partidárias, como exige a Lei Eleitoral, dá, segundo os movimentos feministas, uma ideia errada sobre o desejo delas em fazer parte do universo político.

Para Fernanda Feitosa, cientista política do Cfem

ea, o suposto desinteresse feminino em política é alardeado apenas pelo senso comum.”A verdade é outra. Vemos nas bases dos partidos que são elas quem mais trabalham: nas associações de bairros, nas reuniões de pais e mestres das escolas públicas. As mulheres fazem política no dia a dia“, garante.

Para que elas apareçam mais em cargos públicos, sugere Fernanda, deve haver um maior investimento na formação política. “Ogoverno tem que dar oportunidades para que elas cheguem aos cargos de decisão. Até porque trabalhamos com a ideia de que a política é um processo pedagógico, que você aprende fazendo, como dizia Jean-Jacques Rousseau.”

Outra limitação em relação à ocupação de cargos eletivos é o fato de que isso implicaria numa terceira jornada de trabalho, já que a estrutura de gestão do lar ainda ficaria a cargo delas. “Você pode até ver que a maioria dos parlamentares homens são casados. Entre as mulheres, a maioria é solteira, separada ou viúva. A mulher não vai ter a retaguarda do marido. Se ela se lança, além de vencer todos esses obstáculos da candidatura, terá de lutar contra os que aparecememcasa”, explica.

Trabalho comunitário

A administradora hospitalar Suely Santana da Cruz, 37 anos, fala com orgulho do jardim localizado em sua quadra, no Gama.

Ele foi construído graças aos esforços dela e de outras moradoras. Esse é um exemplo da tal política do dia a dia. Para Suely, a participação das mulheres na área administrativa é imprescindível.

Não só por conta da sensibilidade com relação aos problemas da comunidade, mas para demonstrar uma maior competitividade delas em relação aos homens. “Os homens têm muito mais oportunidades e vantagens que as mulheres. Principalmente em questões salariais. Nós fazemos um trabalho mais detalhado, mais bem-feito. É preciso visão igual para todos, sem distinção de sexo.” Ela lembra ainda que a administração local também deve estimular a participação feminina, pois acredita que tudo começa na comunidade. “Isso é algo que deve ser trabalhado no próximo governo: se os novos governantes puderem fazer essa mudança, de estimular as mulheres a participarem, elas vão se destacar em projetos que não podem fazer sozinhas, mas que, com a comunidade, podem mudar a realidade.”

Um efeito colateral

Para os movimentos sociais, a pequena participação da mulher na esfera política está diretamente ligada à sua dupla jornada de trabalho. O comunicado Mulheres e Trabalhos: Avanços e Continuidades, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2010, concluiu que a desigualdade entre homens e mulheres no mercado ainda está intimamente ligada à responsabilidade delas pelos trabalhos domésticos. A professora Denize Formiga Menezes Castro, 46 anos, acredita que essa exigência social de arcar com os afazeres da casa atrapalha, inclusive, a educação dos filhos. “A mulher que trabalha o dia todo tem que deixar os filhos sozinhos. Ao chegar, vai lavar roupas, cuidar da casa. Isso não deixa que ela dê uma atenção escolar para o filho, porque não sobra tempo.” Sílvia Camurça, do S.O.S.Corpo, defende o aumento do número de creches e escolas em tempo integral, garantindo para a mulher espaços de cuidados dos filhos e, consequentemente, o tempo necessário para que ela possa cuidar da própria carreira. “Essa política também faria avançar a democracia participativa das mulheres, fortalecendo, inclusive, os conselhos de participação popular, para que os governos não fiquem reféns das alianças eleitorais.” Sílvia afirmaque esse direcionamento poderia ajudar na maior democratização do Estado, que, de acordo com ela, não está acostumado à participação popular. Para a cientista política Fernanda Feitosa, o Estado deve oferecer equipamentos sociais e urbanos, como creches, escolas de tempo integral, lavanderias etc., para que as tarefas domésticas possam ser divididas igualmente.

Nas eleições 2010, há

2 candidatas à Presidência, 1 à Vice-Presidência, 18 candidatas ao governo, 40 a Vice-Governadoria, 35 ao Senado, 1.345 à Câmara dos Deputados, 3.246 às assembleias legislativas, 224 à Câmara Legislativa. As mulheres representam 22,33%das candidaturas.

Fonte: Tribunal Superior Eleitoral

ABORTO

O que dizem as candidatas

“Não acredito que alguma mulher seja favorável ao aborto. É uma situação a que as mulheres recorrem no desespero. Entendo que a legislação atual, que prevê o recurso ao aborto em situações específicas de estupro e de risco à vida da mulher, deve ser mantida. Agora, acho que o Brasil tem de ter uma política de saúde pública para atendimento e assistência às mulheres.”

Dilma Rousseff,do PT

“O debate não deve ser reduzido a quem é contra ou a favor. As mulheres que optam pelo aborto passam por um momento de sofrimento, de dor, de desamparo. As consequências emocionais, psíquicas e familiares são dramáticas para a pessoa, que serão levadas para toda a vida. Convivi com amigas e pessoas que fizeram e pude acompanhar o sofrimento delas. Eu não faria um aborto, no entanto, nunca as julguei ou as acusei. Penso que o tema não pode ser tratado subtraindo aspectos complexos dessa decisão. No processo, estão questões de ordens filosóficas, moral, ética e espiritual. O debate ainda não foi feito com a devida profundidade, por isso proponho um plebiscito para que a discussão seja feita e ampliada.”

Marina Silva,do PV

Violência doméstica

“A Lei Maria da Penha foi uma grande vitória das mulheres. Com a sua aprovação, em 2006, e com a implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, demos passos muito importantes. Para se ter uma ideia, de 2003 a maio deste ano, triplicamos a rede de serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência. De 2007 a 2010, investimos mais de R$ 13 milhões na capacitação de agentes públicos que trabalham no atendimento às vítimas. Somamos mais de um milhão de atendimentos no Ligue 180. No entanto, ainda há muito a fazer, mas acredito que a maior vitória desse período foi ter colocado o fenômeno da violência contra a mulher na agenda da gestão pública do Estado brasileiro e no debate da sociedade.”

Dilma Rousseff,do PT

“A Lei Maria da Penha é um marco, mas ainda é preciso avançar,em relação à implementação dos princípios da legislação. São 300 mulheres agredidas por dia dentro de suas casas (62 mil agressões), e 68,1% dos casos de violência contra a mulher são presenciados pelos filhos, 72,1% vivem com o agressor.Nossas propostas: Disque-Denúncia acessível em todoo território e articulado com a rede de atendimento à mulher; trabalhar com municípiose estadospara ampliar a rede de atendimento, com delegacias, j

uizados, centros e convivência, abrigos (menos de 3% dos municípios brasileiros têm abrigos. Os juizados ainda não existem emvárias cidades do Norte e do Nordeste); assistência às famílias e às crianças; humanização no cuidado das vítimas; política de drogas e combate ao crack.”

Marina Silva,do PV

Participação na política e na administração pública

“No governo Lula, nos empenhamos para promover mais autonomia e mais cidadania para as brasileiras. Desenvolvemos políticas públicas específicas para enfrentar problemas que incidem mais sobre as mulheres, como a violência, as doenças específicas e a desigualdade no ambiente de trabalho. Além disso, em muitos programas e ações do governo, demos especial atenção à mulher, como é o caso do Bolsa Família, em que a mulher é a titular preferencial dos benefícios, ou o Minha Casa, Minha Vida, em que os títulos de propriedade são emitidos em nome da mulher. No meu governo, se eleita, continuaremos a implementar políticas que promovam a autonomia econômica e financeira das mulheres. No caso das mulheres trabalhadoras com filhos, por exemplo, a construção de creches éumprograma muito importante. Também vou continuar apoiando a implementação do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.”

Dilma Rousseff,do PT

“A posição e o papel da mulher têm um impacto decisivo na formação das famílias. As mulheres são hoje 51% da população brasileira, e 43,7% da população economicamente ativa do país. O investimento na mulher beneficia toda a família. Quando se investe na saúde, na educação e na geração de renda das mulheres, as crianças são mais saudáveis e passam a ter melhor rendimento escolar. Incentivar, entre outras coisas, a participação das mulheres na política. Apesar de a lei existir, poucos são os partidos que cumprem com a cota de 30% de mulheres. A liderança feminina para lidar com a multiplicidade e a complexidade de desafios do século 21: capacidade de negociação e de se colocar no lugar do outro; ser capaz de, em coautoria, construir um mundo melhor; pró-atividade; convencer do que ganhar pela força.

Marina Silva,do PV

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