Argentina leva o gênero à Justiça

Por Marcela Valente, da IPS
Buenos Aires, Argentina, 22/9/2010 – A Argentina começou a capacitar os magistrados e funcionários da Justiça em igualdade de gênero e direitos das mulheres, em um programa que, por sua amplitude, pode ser guia de iniciativas semelhantes no restante da América Latina. O plano começou ontem, e sensibilizará e formará na perspectiva de gênero juízes, funcionários dos tribunais, empregados administrativos do Judiciário, mediante capacitação de promotores especiais.

“Escolhemos cem pessoas do Poder Judiciário em todo o país para que capacitem em assuntos de gênero porque detectamos sérias desigualdades”, explicou à IPS a juíza Carmen Argibay, a primeira mulher a integrar o Supremo Tribunal de Justiça.

As iniquidades acontecem na atenção discriminatória em relação às vítimas ou em julgamentos e sentenças que não contemplam as desvantagens que sofrem muitas mulheres por viverem em um sistema patriarcal e machista, afirmou a magistrada. Um exemplo de sentença discriminatória é a que condenou, este ano, uma mulher a pedir autorização a seu marido para submeter-se a uma ligadura de trompa.

Porém, também existem juízes que vão incorporando essa perspectiva, a partir de ferramentas jurídicas que estão ao alcance de todos, mas que acabam não sendo aplicadas no dia-a-dia da “família judicial”. Uma sentença com perspectiva de gênero, por exemplo, foi a que condenou os médicos que se negaram a fazer quimioterapia em uma mulher que sofria de câncer porque estava grávida, apesar de sua manifesta vontade de interromper a gestação.

Também há juízes que colocam a vanguarda em temas de gênero e estabelecem precedentes com suas sentenças, que impulsionam leis específicas para ampliar os direitos de coletivos marginalizados. É o caso dos juízes que ordenaram a união em matrimônio de casais do mesmo sexo que reclamavam esse direito. As sucessivas sentenças neste sentido foram corroboradas, finalmente, este ano, com uma lei de casamento igualitário.

Carmen foi a primeira mulher a integrar, em 2004, o máximo tribunal argentino. A ela uniu-se, naquele mesmo ano, Elena Highton, atual vice-presidente de uma corte de sete magistrados. Elena promoveu, em 2009, a criação do Escritório da Mulher no Supremo, para capacitação e investigação sobre gênero, e de um Escritório de Violência Doméstica, que atende todos os dias do ano, durante 24 horas.

Como parte do trabalho do Escritório da Mulher, Carmen apresentou este mês uma série de paineis de formação de capacitadores em perspectiva de gênero dentro do Poder Judiciário, em uma iniciativa apoiada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Os participantes recebem um Protocolo de Trabalho em Paineis para uma Justiça com Perspectiva de Gênero, com diferentes módulos de formação teórica e prática, em cuja elaboração participaram especialistas em assuntos de justiça e gênero.

O coordenador-residente do Sistema da ONU na Argentina, Martín Santiago, disse à IPS que o programa tem tudo que é necessário para “se converter em uma boa prática para todos os poderes judiciários da região”. E acrescentou que “outros poderes judiciários proporcionam capacitação em gênero, mas aqui foi criada uma arquitetura institucional com dois escritórios que mostram claramente uma determinação de avançar na igualdade de gênero”.

Na abertura dos paineis formadores, realizados em Buenos Aires, participaram integrantes do Escritório da Mulher, bem como Carmen e Elena, para destacar o apoio da máxima instância do Poder Judiciário ao programa. “Primeiro selecionamos os que serão capacitadores por seus antecedentes, demos uma formação aqui e fornecemos material de leitura e audiovisual para que repliquem estes temas em paineis em suas províncias”, explicou a juíza.

Segundo Carmen, são muitos os compromissos firmados pelo Estado argentino que colocam os direitos da mulher no mais alto nível jurídico. Entretanto, considerou que isso não é suficiente para que esses direitos sejam efetivos. “Continuam sendo observados maus-tratos contra mulheres que vêm em busca de justiça. Parece natural considerá-las mentirosas quando acusam um homem de ser violento ou de uma violação”, lamentou a magistrada.

“Detectar essas múltiplas situações, nas quais a mulher está em desvantagem, exige um esforço intelectual para compreender algo que não foi parte de nossa formação, e agudeza de sentidos para descobrir estereótipos culturais”, ressaltou Carmen.

Nos paineis, os participantes informam sobre as ferramentas que o direito oferece sobre igualdade perante a lei e direitos das mulheres, realizam exercícios para refletirem sobre a destinação de papeis sociais e trabalhistas segundo os gêneros. Também há nos cursos uma análise sobre a linguagem sexista, e são propostas fórmulas para incluir as mulheres no discurso jurídico e para evitar o uso de termos discriminatórios.

“A violência contra a mulher é consequência de ver o mundo de uma ótica absolutamente machista”, disse à IPS a juíza María Laura Garrigós, uma das selecionadas como promotoras de gênero dentro do Poder Judiciário. “O Poder Judiciário ainda não tem incorporada esta perspectiva, é algo que temos de conseguir, uma mudança de modelo que nos permita ver o delito em todo esse contexto”, ressaltou María Laura.

 

fonte: Envolverde/IPS

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