Rodrigo Craveiro – Correio Braziliense
No primeiro dia da histórica visita ao Reino Unido, papa Bento XVI compara não crentes a nazistas e faz dura crítica sobre o secularismo
Diante da rainha Elizabeth II, governadora suprema da Igreja Anglicana, o papa Bento XVI começou sua visita de quatro dias ao Reino Unido envolvendo-se em uma nova polêmica, além da cobrança de ingressos para suas missas. Em uma cruzada contra o secularismo, o líder dos católicos chegou a comparar os ateus aos nazistas. “Mesmo em nossos tempos, podemos relembrar como o Reino Unido e seus líderes se levantaram contra a tirania do nazismo, que desejava erradicar Deus da sociedade e negar seu humanidade comum a muitos — especialmente aos judeus”, afirmou o pontífice. “Ao refletirmos sobre as lições do extermismo ateísta do século 20, não nos esqueçamos nunca de como a exclusão de Deus, da religião e da virtude da vida pública leva a uma visão truncada do homem e da sociedade e, assim, a uma visão reducionista de uma pessoa e de seu destino”, emendou, no Palácio de Holyroodhouse, em Edimburgo (Escócia). Horas antes, no avião, Bento XVI reconheceu que a Igreja “não foi suficientemente vigilante” para impedir os abusos contra crianças.
O papa também alertou contra “formas agressivas” de secularismo na região. “Hoje, o Reino Unido se esforça para ser uma sociedade moderna e multicultural. Nessa exigente empreitada, espero que possa manter seu respeito pelos valores tradicionais e pelas expressões culturais que formas mais agressivas de secularismo hoje já não dão valor ou até não toleram”, declarou. E exortou a rainha a não permitir que “o fundamento cristão que sustenta suas liberdades” seja ofuscado. O apelo de Bento XVI ganha importância frente ao aumento no número de britânicos não adeptos da fé. Segundo o Levantamento de Atitudes Sociais do Reino Unido, o índice de ateus subiu de 31% para 43%, entre 1983 e 2008.
Para o reverendo irlandês Vincent Twomey, ex-aluno de doutorado de Joseph Ratzinger (hoje Bento XVI) na Universidade de Regensburg, o pontífice se referia a uma nova espécie de ateus. “Com um fervor quase evangélico, eles estão tentando excluir todas as formas de religião da esfera pública”, admitiu ao Correio, por e-mail. “Esses ateus querem abandonar a moralidade tradicional e montar um ataque direto à religião, quase sempre direcionado à Igreja Católica.”
O padre Joseph Fessio, também ex-aluno de Ratzinger, lembra que o secularismo significa o “desaparecimento de Deus da cultura”. Na opinião dele, ao citar “formas agressivas” de secularismo, Bento XVI se referia à negação das raízes cristãs da civilização europeia e à rejeição das verdades morais afirmadas pela fé. “Nelas, estão incluídas a santidade de todo ser humano, da concepção à morte; o casamento como compromisso permanente entre homem e mulher; e o direito de expressar a religião em praça pública”, enumera Fessio.
Missa
Em Glasgow, também na Escócia, o papa reuniu 70 mil pessoas e, em sua homilia, voltou a tocar no assunto. “A evangelização da cultura é tudo o que há de mais importante em nossos tempos, quando uma ‘ditadura do relativismo’ ameaça obscurecer a verdade imutável da natureza homem, seu destino e sua bondade final”, alertou. Ele afirmou que algumas pessoas buscam excluir a crença religiosa do discurso pública, privatizá-la ou “pintá-la” como se fosse uma ameaça à igualdade e a liberdade. “A religião é, de fato, uma garantia de liberdade autêntica e de respeito”, assegurou. Durante a celebração, a cantora Susan Boyle, finalista do programa Got Talent, interpretou I dreamed a dream, do musical Los Miserables. “É uma grande honra cantar para o papa e algo que eu sempre sonhei”, comemorou, antes da apresentação.
O número
43%
Índice de britânicos que se declaram não religiosas, segundo o Levantamento de Atitudes Sociais do Reino Unido.
Falta de vigilância
“A autoridade da Igreja não foi suficientemente vigilante (…), não foi suficientemente rápida e firme para tomar as medidas necessárias”, desabafou o papa Bento XVI diante de jornalistas, durante o voo que o levou a Edimburgo. Mais uma vez, o pontífice fez um mea-culpa em relação ao escândalo de pedofilia que abalou o Vaticano e colocou em xeque a autoridade moral dos sacerdotes. “Estas revelações foram, para mim, um golpe e uma grande tristeza”, reconheceu. “É difícil entender como essa perversão do sacerdócio foi possível, como um homem que fez isso e afirmou cair em tal perversão é algo difícil de compreender.”
Além de uma admissão de erro de conduta da Igreja Católica, o ato do sumo pontífice foi uma resposta aos grupos laicos britânicos que, às vésperas de sua visita, o criticaram pela inação diante dos casos de abuso sexual. “A sociedade precisa de vozes claras, que proponham nosso direito a viver, não em uma selva de liberdades autodestrutivas e arbitrárias, mas em uma sociedade que trabalhe pelo verdadeiro bem-estar de seus cidadãos.”
O reverendo irlandês Vincent Twomey, ex-aluno de Bento XVI, disse que o gesto do papa confirma sua postura enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé — cargo exercido sob o pontificado de João Paulo II, entre 1981 e 2005. “Ele ficou chocado quando descobriu que terríveis ações eram cometidas pelos padres e fez o máximo possível para assegurar que os sacerdotes criminosos fossem punidos.”
A falta de vigilância da Igreja também é algo verdadeiro para o padre Joseph Fessio, também ex-aluno de Joseph Ratzinger. “Quando foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ele se tornou o primeiro a saber sobre o problema, e trabalhou com João Paulo II para levar todos os casos de alegações críveis de abuso sexual ao conhecimento do órgão”, afirmou. Ele acredita que, ao ler sobre tantas denúncias, Bento XVI tenha ficado verdadeiramente chocado e entristecido.
Os comentários do papa não provocaram alívio em vítimas de padres pedófilos. “É incorreto dizer que as autoridades da Igreja têm sido lentas e pouco atentas ao lidar com crimes sexuais do clero e com os acobertamentos”, comentou Joelle Casteix, um dos diretores da entidade Rede de Sobreviventes de Abusados por Padres (Snap, pela sigla em inglês), baseada nos EUA. “Pelo contrário, eles foram rápidos e vigilantes, mas em esconder, não em impedir, esses horrores.”
Eu acho…
Fotos: Arquivo pessoal |
“O papa está profundamente comprometido com o ecumenismo e fará tudo o que estiver em seu poder para ajudar a constr
uir pontes entre anglicanos, presbiterianos e outras comunidades cristãs, além de judeus e muçulmanos.”
Reverendo Vincent Twomey , ex-aluno de Joseph Ratzinger (Bento XVI)
“O ataque do papa ao secularismo se encaixa em suas posições de longo prazo. Ele não reconhece que a defesa da separação institucional da Igreja e do Estado — uma forma de secularismo — possa ser a posição de um cristão crente. Ele coloca todos os secularistas na condição de ateus, o que cria grandes problemas para os diálogos religiosos da modernidade.”
John Voll , vaticanista e diretor do Centro para Compreensão Cristã-Islâmica da Georgetown University
Para saber mais
Uma história de amor e sangue
O anglicanismo nasceu de uma ruptura da Igreja da Inglaterra com Roma, no século 16, por motivos que pouco têm a ver com a religião e muito com uma história de amor e sangue. O rei Henrique VIII (1491-1547), católico fervoroso, não tinha boa opinião sobre a reforma protestante e criticava Martinho Lutero, o que lhe valeu o título de “Defensor da Fé”. Mas o papa Clemente VII infligiria ao rei uma derrota que o monarca consideraria irreparável e que abriria uma ferida no cristianismo.
Henrique VIII esperava que Catarina de Aragão lhe desse um herdeiro homem, mas a saúde da mulher tornava improvável que este desejo fosse concretizado. Na época, o rei se apaixonou por Ana Bolena, marquesa que exercia grande fascínio na corte. Em 1527, pede a Clemente VII a anulação do casamento com Catarina, mas três anos depois, após disputas verbais, o papa rejeita o pedido. Com a recusa de Roma, Henrique VIII decide fundar a própria doutrina religiosa: se proclama chefe da Igreja da Inglaterra e faz o seu casamento ser anulado.
Em 1533, se casa com Ana Bolena. A ruptura com Roma é consumada em 1534, com a Lei de Supremacia, que confirma Henrique VIII como “único chefe supremo” do anglicanismo. O rei se cansa de Ana Bolena e, em 1536, faz com que ela seja condenada à morte. Em um ato de piedade, concede que a execução seja a degola com uma espada e não a decapitação com um machado, para atenuar a dor da condenada.