O gênero como norma e fonte de subversão e resistência

IHU – Unisinos *

Adital – Entrevista especial com Márcia Arán

 

Para a psicóloga Márcia Arán, “existe a possibilidade de uma diversidade de formas de construção de gênero, de identidades e de subjetivações que ultrapassam o binarismo masculino/feminino”. Na entrevista que concedeu por e-mail ao IHU On-Line, ela aponta como um grande desafio a despatologização da transexualidade. “O fato de se definir uma política de saúde integral tendo como referência os princípios do SUS permite uma ampliação da noção de saúde, a qual não deve ficar restrita à ausência de doença. Desta forma, podemos considerar a noção de sofrimento psíquico e corporal como critério de acesso à saúde sem que, necessariamente, este sofrimento tenha que ser patologizado”.

Márcia Arán, psicóloga e psicanalista, é professora do Instituto de Medicina Social da UERJ e coordenadora da linha de pesquisa Gênero, Subjetividade e Biopolítica. É bacharel em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, e mestre e doutora em Saúde Coletiva pela UERJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o sentido em se falar de sexo feminino e masculino quando já se fala no transgênero?

Márcia Arán – Transgênero é uma expressão muito utilizada nos Estados Unidos e em parte da Europa. Aqui no Brasil, as experiências trans, em geral, são definidas como transexualidades, travestilidades, crosdressing e uma minoria se define como transgênero. De qualquer forma, acho que ainda tem sentido falar de sexo masculino e feminino porque são normas de gênero fortemente incorporadas. Porém, o que as experiências trans vêm demonstrar é que estas identidades não são fixas, ou seja, não são nem uma substância no sentido biológico do termo, nem mesmo posições sexuadas permanentes. Existe a possibilidade de uma diversidade de formas de construção de gênero, de identidades e de subjetivações que ultrapassam o binarismo masculino/feminino.

IHU On-Line – Quais são as “novas escritas” sobre o corpo que estão se configurando na contemporaneidade a partir da revolução transgênero?

Márcia Arán – Desde a revolução feminista estão acontecendo deslocamentos importantes na sociedade, principalmente devido ao declínio das bases econômicas, sociais e políticas do modo familiar de produção e reprodução social. Soma-se a isto a escolarização e a profissionalização das mulheres e a “revolução dos costumes”, que inaugurou questões como contracepção, aborto e divórcio. Em seguida o movimento de gays e lésbicas problematizou a normatividade do casamento, da parentalidade e da filiação e, mais recentemente, o movimento trans colocou na ordem do dia a questão do trânsito entre os gêneros e as práticas de modificação corporal. A partir destes deslocamentos ocorridos nos últimos 50 anos as normas de gênero estão mais fluidas e permitem escritas sobre o corpo que comportam novas identificações e novos devires.

IHU On-Line – O que essa necessidade de transformação dos corpos aponta sobre a sexualidade e a subjetividade dos sujeitos do século XXI?

Márcia Arán – Esta é uma questão colocada para toda a sociedade e não apenas para transgêneros. Todos nós utilizamos tecnologia para a transformação dos corpos, seja a nível hormonal ou cirúrgico. A questão que importa pensar é quem tem acesso a estas tecnologias, em que circunstâncias e por quê. Neste sentido, uma reflexão no campo da bioética pode ajudar a pensar como regulamentar as modificações corporais. No campo das novas tecnologias, nós temos que refletir quando uma cirurgia pode ser considerada estética e/ou reparadora. Quando a regulamentação de uma intervenção somática exige uma tutela médica ou psi e quando pode ser realizada a partir da noção de autonomia e de autodeterminação.

IHU On-Line – Como a saúde brasileira trabalha com a questão de troca de sexos? Ainda há muita discriminação na busca de atendimento médico de quem quer transformar seu corpo?

Márcia Arán – O Ministério da Saúde através da Portaria nº 1.707/2008 instituiu no Sistema Único de Saúde – SUS o Processo Transexualizador, através da constituição de serviços de referência que estejam habilitados a prestar atenção integral e humanizada a transexuais. Esta iniciativa foi importante porque o Ministério passou a reconhecer que questões relacionadas à identidade de gênero e práticas sexuais fazem parte da saúde e devem ser acolhidas e tratadas pelo SUS. Vários atores sociais contribuíram para a promoção do debate sobre transexualidade e saúde, dando visibilidade para a vulnerabilidade da população trans no país. Destaca-se a contribuição dos coordenadores dos programas assistenciais que construíram um espaço de atenção a essa clientela, muitas vezes enfrentando enorme resistência institucional devido ao preconceito, à homofobia e à discriminação incutidas em algumas práticas de saúde.
Além disso, foi importante a ação do Ministério Público Federal para a inclusão da cirurgia de transgenitalização na tabela de procedimentos do SUS em 2001. A instituição do Comitê Técnico Saúde da População LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) em 2004, a participação dos movimentos sociais e as contribuição de pesquisadores acadêmicos também possibilitaram o estabelecimento de pactuações sobre propostas de saúde integral que fundamentaram esta iniciativa. No entanto, os desafios para a institucionalização destas práticas são muitos.
É de fundamental importância investir na formação de profissionais capacitados para atender a esta clientela; a promoção de uma política de atenção básica (nós já temos alguns ambulatórios que têm sido uma experiência muito importante); a imediata discussão sobre a especificidade da assistência a homens transexuais que ficaram excluídos da portaria e das travestis; a construção de uma rede com sistema jurídico para a mudança do nome civil, entre outras.
No entanto, o grande desafio na regulação desta prática consiste na despatologização da transexualidade. O fato de se definir uma política de saúde integral, tendo como referência os princípios do SUS, permite uma ampliação da noção de saúde, a qual não deve ficar restrita à ausência de doença. Desta forma, podemos considerar a noção de sofrimento psíquico e corporal como critério de acesso à saúde sem que necessariamente este sofrimento tenha que ser patologizado.

IHU On-Line – Qual é a contribuição de Foucault para pensarmos a temática da biopolítica relacionada com a transexualidade?

Márcia Arán – A contribuição de Foucault é decisiva. Interessa-me, particularmente, no debate sobre a biopolítica contemporânea, a utilização que Judith Butler faz do conceito de norma. Para a autora, as normas que governam a identidade inteligível são estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória. Neste sentido, o gênero não seria nem a expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma construção social, mas sim o resultado de repetições constitutivas que impõem efeitos substancializantes, ou seja, o gênero é ele próprio uma norma. Uma identidade atenuamente construída através do tempo por meio de uma repetição incorporada através de gestos, mo

vimentos e estilos. Porém, partindo da teoria de biopoder de Foucault, Butler argumenta que é, justamente pelo fato de a instabilidade das normas de gênero estar abertas à necessidade de repetição do mesmo, que a lei reguladora pode ser reaproveitada numa repetição diferencial. Assim, se o gênero é uma norma, ele também pode ser fonte de subversão e resistência.

* Instituto Humanitas Unisinos

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