Denise Gomide, para a Revista Fórum
Completando quatro anos em agosto, a Lei Maria da Penha tem estimulado mulheres a denunciar seus agressores. Mas ainda não sensibilizou a cultura – e a voz – machista nacional.
Os crimes contra mulheres, no âmbito da violência doméstica e familiar, passaram a ocupar as manchetes nacionais com certa regularidade há alguns anos. Os casos são muitos – violências física (estupro, torturas, espancamentos etc.) e psicológica, assassinatos –, porém a visibilidade parece estar muitas vezes ligada à classe social ou à fama das partes envolvidas. Isso sem entrar no mérito dos aspectos das desigualdades de gênero em prejuízo das mulheres e da cultura machista ainda marcantes no Brasil, mesmo depois de sancionada a Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, classificada como “um dos exemplos mais avançados de legislação sobre violência doméstica” pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher.
No livro A paixão no banco dos réus – Casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Lindemberg Alves (Saraiva), a promotora do Ministério Público de São Paulo, Luiza Nagib Eluf, resgatou os aspectos centrais de crimes que mobilizaram a atenção do país em diferentes épocas. Como os do caso ocorrido em dezembro de 1976, o assassinato de Ângela Diniz (“a bela Pantera da sociedade mineira”) por Raul Fernandes do Amaral Street, o Doca Street. Um crime que, à época, teve o apoio da sociedade local, acompanhando a defesa que se valeu de aspectos da vida amorosa de Ângela para “justificar” o ato. Street foi sentenciado a somente dois anos de reclusão. Com o recurso da acusação e sob intensos protestos do movimento feminista – quando surgiu, então, a frase que se tornou slogan de campanhas contra a violência à mulher, “Quem ama não mata” –, Street foi julgado novamente em novembro de 1981, condenado por homicídio qualificado, a 15 anos de prisão.
E os crimes célebres continuaram. Em 2000, inconformado pela ruptura de uma relação amorosa, o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves, então com 63 anos, assassinou a também jornalista Sandra Florentino Gomide, de 32. Apesar de condenado a 20 anos de prisão, hoje ele está livre por ter tido liberdade provisória concedida em decisão anterior pelo Supremo Tribunal Federal.
Luiza Eluf observa que muitos homens ainda têm uma noção equivocada de que são donos do corpo da mulher – “assim, principalmente quando se trata de falar de corpo, eles acham que podem tudo, inclusive matar”. Apesar de não se aceitar mais, legalmente, a tese da “legítima defesa da honra” no país, a mulher continua muitas vezes a ser tratada como se não tivesse os mesmos direitos que os homens. “E destroçar a imagem da vítima sempre é uma estratégia de defesa”, aponta.
Em 2010, o caso que atraiu mais atenção da mídia foi o do desaparecimento de Eliza Samudio, 25 anos, que teve um relacionamento com o goleiro Bruno Fernandes (Flamengo/RJ) e lutava na Justiça para que ele reconhecesse a paternidade do filho de quatro meses. Relacionamento que culminou num crime brutal, com vários envolvidos na trama, conforme depoimentos divulgados.
Na “Nota à imprensa: Caso Eliza Samudio” da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República (14/7/10), sobre os casos de Mércia Nakashima e Eliza Samudio, a SPM detalha que o 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro negou o pedido de proteção a Eliza em outubro de 2009, por considerar que ela não mantinha relações afetivas com o goleiro Bruno Fernandes. Na ocasião, a Delegacia de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá (Deam) pediu à Justiça que o atleta fosse mantido longe da vítima, já que Bruno cometeu os crimes de agressão, de cárcere privado, além de ter lhe dado substâncias abortivas. Para a SPM, “a alegação de que Eliza não precisava de proteção do Estado porque era apenas uma ‘amante’ ou ‘ficante’, remete aos padrões antigos de preconceito contra as mulheres. A decisão também questiona a honestidade da vítima, que declarou que a relação não foi apenas de uma noite […]”. Por fim, a SPM conclui: “O Estado tem de ser responsabilizado pelas suas ações, para evitar que mais mulheres sejam brutalmente assassinadas após buscar amparo e proteção legal.”
A banalização e o padrão da violência
Mas a repercussão desses casos contribui para que novas ocorrências sejam evitadas? Não falta divulgação quando o assunto é violência doméstica e sexual, alerta a feminista Amelinha Teles, coordenadora dos projetos “Promotoras Legais Populares” e “Maria, Maria”, e integrante da União de Mulheres de São Paulo. A mídia mobiliza, alardeia sobre o “massacre das mulheres brasileiras”, mostra os fatos, cenas da barbárie, de sofrimento, mas a cobertura em geral é superficial. “Nada de tocar na discriminação histórica contra as mulheres. Não se enfrentam as desigualdades de gênero, em que os homens ainda se gabam de decidir sobre a vida e a morte das mulheres”, critica.
Além disso, tanto a sociedade como o Estado brasileiro ainda são bastante omissos quanto se trata da violência de gênero. “Lamentavelmente, somos ainda um país conivente com a violência contra as mulheres. Justificam-se os atos violentos alegando a culpa das vítimas”, lamenta Amelinha. “Se a cada 2 horas uma mulher é assassinada no Brasil [Mapa da Violência 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil. São Paulo, Instituto Sangari], quando é que os poderes públicos e a mídia vão buscar uma abordagem séria e responsável para enfrentar tamanha violência?”
Infelizmente, a violência contra as mulheres ocorre em qualquer parte do mundo, em qualquer grupo étnico/racial assim como em qualquer classe social, lembram Luiza Eluf e Amelinha. E o padrão é sempre o mesmo, segundo Miriam Nobre, coordenadora da Secretaria Internacional da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) – movimento feminista atuante em 66 países e hoje com sede no Brasil: a mulher que sofre violência é sempre punida.
Miriam relata que a violência contra a mulher é usada também como “arma” por grupos em contextos de conflitos armados, de guerra, para humilhar e desestruturar o funcionamento da comunidade: ocorrem situações horríveis de violência e de estupro, e as mulheres violentadas depois são rejeitadas pelo marido e por sua comunidade. “Vimos isto ocorrer muito no Congo, preparando o final da nossa 3ª Ação Internacional”, explica. “Ouvimos também sobre os “crimes de honra” em algumas comunidades da Turquia, onde a menina é violentada, a comunidade fica sabendo e, então, a família tem de matá-la, para ‘lavar a honra’ da família.”
Nesses e em outros países há, porém, muitos casos de mulheres que tentam fugir de uma regra qualquer, como as que se recusam a casar precocemente em um casamento arranjado e contam, para tal, com o apoio das mães, tias, mas são todas punidas. “Temos também lidado com essas situações de violência aqui, no Brasil, onde se ‘apedreja’ moralmente a vítima. Logo, as situações objetivam o mesmo: manter uma sociedade patriarcal funcionando”, deduz Miriam. As integrantes da MMM também têm visto muito a utilização da violência contra mulheres num contexto de criminalização dos movimentos sociais. “É o mesmo padrão, enquanto as mulheres estão em casa, não há problema, mas quando estão na política são severamente punidas – e com violência
sexual. Vemos isto acontecendo em Honduras, no México: a violência usada como forma de parar as mulheres.”
A violência doméstica e familiar também afeta mulheres imigrantes no Brasil, como tem ocorrido com bolivianas, que são trazidas ou vêm espontaneamente trabalhar em São Paulo, às vezes com toda a família, principalmente em oficinas clandestinas de confecção de roupas. Segundo Amelinha, elas temem fazer denúncias de agressão porque vivem sem documentação regular: “As políticas públicas têm de incluir essas mulheres no acesso à Justiça, sob pena de precarizar ainda mais suas vidas e trabalho.”
Prática e capacitação
Ainda sem a Lei Maria da Penha, a primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher (DDM) foi instalada em 6 de agosto de 1985, em São Paulo. “A maior dificuldade foi mostrar para a mulher que não era normal ser agredida pelo marido ou companheiro, e mostrar ao homem que bater na mulher, mesmo que fosse a sua, era crime, e como crime seria tratado”, relembra a fundadora da DDM e atual presidente do Conselho Estadual da Condição Feminina, Rosmary Correa, conhecida até hoje como delegada Rose. Ela trabalhou cerca de seis anos na delegacia e, na maioria das vezes, as “justificativas” do agressor baseavam-se no fato de que a mulher “tinha desobedecido suas ordens”.
“Em todas as ocorrências que atendi e tive contato com o agressor – pois muitas vezes quando chegamos à ocorrência o agressor já não se encontra no local –, perguntados sobre o motivo da violência, eles dizem que foram motivados pela falta de fidelidade da mulher ou até mesmo porque elas não cumpriram com suas ‘obrigações’ domésticas, na tentativa de justificar seus atos”, descreve Marcos José Santos, soldado e policial militar há cerca de 16 anos. Desde 2003, ele trabalha na 2ª Cia. do 18º Batalhão da Polícia Militar, que atende a região noroeste da capital, e exerce a função de instrutor do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd) – desenvolvido em escolas públicas e particulares para crianças da 4ª à 6ª série, por policiais militares.
Santos, que integra o Curso sobre a Lei Maria da Penha (Projeto “Maria, Maria”), além do trabalho nas escolas, atende a diversas ocorrências. E todos os dias ocorrem casos de violência doméstica, que vão de violência verbal até tentativas de homicídio. As mulheres agredidas são orientadas sobre a existência da Lei Maria da Penha, diz o policial, informando que tais atitudes podem levar o agressor para a cadeia. “São poucas as vítimas que decidem prestar a queixa e, quando isso acontece, desconhecem que em alguns casos existe a necessidade de se fazer a representação; com isso, expira-se o prazo legal para levar adiante a denúncia. O agressor acaba ficando impune e continua a praticar tais atos na certeza da impunidade.”
Mas essa capacitação policial parece não ser regra geral. Apesar de ter havido um pequeno avanço em termos de respeito no atendimento às mulheres em condição de violência nas delegacias e no sistema Judiciário, a promotora Luiza Eluf considera que essas instâncias ainda corroboram, em vários casos, para o agressor transferir a culpa para a mulher. No mesmo sentido, a delegada Rose avalia que ainda há problemas sérios de atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar nas delegacias de polícia. “Há uma grande resistência para a aplicação da Lei Maria da Penha e, muitas vezes, a vítima é desestimulada a fazer a queixa”, afirma. “É importante lembrar que o Estado de São Paulo, hoje, possui uma grande rede para o atendimento à mulher vítima de violência doméstica; contudo, a porta de entrada para essa rede é a delegacia de polícia, motivo pelo qual essa porta tem que estar preparada e sensibilizada para isso.”
Nessa rede de atendimento, estão os Centros de Referência, que prestam atendimentos psicossocial e jurídico a mulheres em situação de violência, além de serviços de orientação. “Se necessário, as encaminhamos para abrigos, que são sigilosos, inclusive com seus filhos”, explica Vera Lúcia da Silva de Moura, do Centro de Referência da Mulher Vítima de Violência de Osasco (SP) e também integrante do Curso sobre a Lei. Ela faz o primeiro atendimento a mulheres que sofrem vários tipos de violências: física, moral, psicológica, patrimonial, cárcere privado, ameaças de morte. O centro atende em média cinco casos por dia, dado que muitas ainda não sabem a sua finalidade.
As mulheres atendidas se sentem humilhadas, explica Vera, e estão com baixa autoestima. “Também atendemos por telefone, pelo serviço 0800, já que muitas mulheres não têm coragem de ir até o centro, pois para elas ainda é muito humilhante falar sobre a pessoa que elas escolheram para viver, em quem elas confiavam”, lastima.
Classes sociais e justiça efetiva
Segundo Carolina Bega, defensora do Núcleo da Mulher da Defensoria Pública, é comum a mulher se sentir culpada por ter fracassado no relacionamento conjugal. “Mas para combater a violência doméstica e familiar, é importante que ela busque apoio na rede de serviços, para que seja fortalecida, conheça seus direitos e possa romper com o ciclo de violência em que está inserida”, destaca. Ela lembra também que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 10% das agressões sofridas por mulheres são levadas ao conhecimento da polícia.
Se por um lado a Defensoria Pública presta atendimento a quem não tem condições de arcar com o pagamento de um advogado particular, Carolina ressalta que a violência doméstica e familiar é “democrática” e ignora classe social, gênero, cor, religião ou nível educacional. Assim, é muito comum mesmo entre casais de classes média e alta. “Ela decorre de questões históricas e sociais, da cultura machista e sexista que temos arraigada em nossa sociedade, do sentimento comum de que a mulher é propriedade do homem.”
A também defensora pública Juliana Garcia Belloque, membro do Comitê Latino Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), aponta que, no estado de São Paulo, as mulheres pobres, diferentemente das que possuem condições econômicas, muitas vezes não têm acesso ao defensor público e, consequentemente, à Justiça, pelo baixo número de defensores no estado: são 500 no total, em uma proporção de um defensor para cada 100 mil habitantes. “Essa é a diferença mais significativa entre as mulheres vitimadas que integram distintas classes sociais.” Paralelamente, Juliana aponta a falta de estrutura do aparato público para a aplicação adequada e completa da Lei Maria da Penha, com número insuficiente de Delegacias da Mulher, que são aparelhadas de modo deficiente, sem falar do irrisório número de Juizados Especiais de Violência contra a Mulher efetivamente instalados.
O Juizado de Violência Doméstica e Familiar é tido como uma grande conquista das mulheres inscrita na Lei Maria da Penha, afirma Amelinha. “É uma proposta muito avançada, com o objetivo de facilitar a vida da vítima e que pode resolver os problemas judiciários advindos da violência doméstica e familiar de forma integral e interdisciplinar, e tem funcionado muito bem. Mas ainda é um só para um estado imenso como o nosso.”
Lei Maria da Penha: uma ação feminista
De acordo com o Unifem, a atuação dos grupos de mulheres foi ess
encial na elaboração da Lei da Violência Doméstica na Mongólia (2004), da Lei de Proteção contra a Violência na Espanha (2004) e da Lei Maria da Penha (2006) no Brasil, que representa o ápice de uma prolongada campanha das organizações de mulheres, envolvendo também organismos nacionais, regionais e internacionais, tais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Por isso, sempre é importante lembrar que a Lei nº 11.340, a Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Lula, foi impulsionada pela tragédia daquela que lhe deu o nome. A farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, após ter sido agredida, em 1983, quase que fatalmente por duas vezes pelo marido – na primeira, ficou paraplégica –, não se calou: levou seu caso duas vezes à Justiça brasileira e, ao constatar que a pena do agressor foi de somente dois anos, formalizou com o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (Cejil) e o Cladem uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O caso Maria da Penha versus Brasil foi sentenciado em 16 de abril de 2001, e a Comissão da OEA decidiu que o governo do Brasil era responsável pela sua tolerância judicial da violência doméstica.
Ao mesmo tempo, foi iniciado um longo processo de discussão a partir de proposta elaborada por um consórcio de ONGs (Advocacy, Agende, Cepia, CFemea, Cladem/IPÊ e Themis) e também debatida por um grupo de trabalho interministerial, coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, e enviada pelo governo federal ao Congresso Nacional. Este foi o início do trajeto que culminou na Lei Maria da Penha, que, entre outras, criou “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Para Miriam Nobre, da Marcha Mundial das Mulheres, a Lei Maria da Penha está na “boca do povo” e as pessoas têm consciência do que se trata, é uma “lei que pegou”. Mas, como diz Amelinha, da União de Mulheres de São Paulo: “Como é duro transformar ‘aquele papel’ em vida, em justiça, em felicidade…”.
*Este texto é parte integrante da Revista Fórum, edição 89, disponível nas bancas.
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Fonte: Envolverde/Revista Fórum