Olga Savary, a poeta do erotismo

Marina Caruso – revista Marie Claire
Primeira mulher do país a publicar um livro de poesias eróticas, Olga Savary, 77 anos, pensa muito em sexo. Musa do poeta Drummond e de artistas como Siron Franco, ela é uma espécie de Mona Lisa de Copacabana. Atrás do sorriso enigmático, guarda retratos e poemas de admiradores famosos e histórias picantes, profundas e divertidas


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Olga Savary é o retrato de um Brasil que pouco valoriza sua cultura. Primeira mulher do país a publicar um livro de poesias eróticas e a se dedicar à escrita de haicais (a sintética poesia japonesa), a escritora paraense tem em seu currículo 20 livros, mais de 40 prêmios de literatura — entre eles, dois Jabutis — e traduções de Pablo Neruda, Julio Cortazar e Mário Vargas Llosa. Mas vive com um salário mínimo por mês, espólio risível dos anos em que trabalhou na Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. “No Brasil, poeta morre de fome. Mas sou apaixonada por este malandro chamado Literatura e não viveria sem ele”, diz.

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Para falar desta e de outras paixões, Olga recebeu Marie Claire em seu apartamento, no Rio de Janeiro. E, antes disso, por telefone, questionou a competência desta jornalista. “Tem certeza de que quer me entrevistar?”, perguntou. “Não suporto jornalista que escreve ‘pra’ em vez de ‘para’.” Dois encontros depois, bem mais à vontade, Olga falou sobre a amizade amorosa construída com Drummond, a dor de ter perdido um filho para as drogas e a descoberta tardia de sua sexualidade. Para Ferreira Gullar, fã e amigo de Olga, é justamente o fato de “viver às voltas com as contradições mais profundas da existência” que faz dela uma grande poeta, capaz de falar do sexo com uma “cautela de veludo”.

Marie Claire Adélia Prado disse que, quando leu Clarice Lispector pela primeira vez, pensou: “Essa mulher é tão boa que parece um homem”. Você, que tem uma literatura tão feminina, concorda com ela?
Olga Savary Clarice é o maior escritor do Brasil. E digo escritor, no masculino, porque ela é o maior entre homens e mulheres. Mas dizer que a literatura de qualidade é coisa de homem não tem cabimento. 

MC Na sua opinião há uma literatura feminina e outra masculina?
OS Há homens que, de tão delicados, escrevem como mulheres. E mulheres que, por sua vez, escrevem como homens. O Jorge Amado, em 1974, para me elogiar, disse que eu escrevia como homem, mas eu o corrigi: “Não escrevo como homem, mas como uma mulher forte, sem melindres”. Ele falou com a melhor das intenções, mas achei bom reforçar que a mulher pode, sim, ser vigorosa. 

MC Quando você começou a escrever Magma, o primeiro livro de poesia erótica feito por uma brasileira, qual foi sua inspiração?
OS Lancei o Magma em 1982, mas os poemas já estavam na minha cabeça, fermentando, havia anos. Só concluí o livro quando fui passar um fim de semana com a Hilda [Hilst, escritora] na fazenda dela, em Campinas, e fiquei um mês. Eu gostava tanto da poesia dela que decidi organizar sua antologia. Mas Hilda não trabalhava aos domingos e, durante a semana, mergulhava na sua escrita. Então, eu, que me desespero se não escrever, me dediquei mais ao livro do que fazia em casa, com crianças e marido [Olga era casada com o cartunista Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, pai de seus filhos, Flávia e Pedro]. Os poemas estavam todos no plano das ideias. Só faltava escrever. O caminho é esse: cabeça, braço, mão, caneta e papel. Jorge Amado também escrevia à mão. Hoje, todo mundo usa computador para tudo. Eu só digito quando as editoras exigem.

MC Como era sua relação com a Hilda, outra grande escritora erótica?
OS Muito boa. Ela não gostava de mulher. Gostou de mim porque não sou competitiva e deixei-a à vontade para trabalhar enquanto admirava a paisagem. Dizia a Hilda que até disco voador havia ali. Ela gravava voz de gente morta, sabia? Uma vez, me mostrou a gravação. Não acredito nessas coisas, mas ouvi as vozes. Tinha a da mãe de uma escritora, a de um amigo. Acontecia cada coisa mirabolante ali… Um dia, o marido da Hilda [o escultor Dante Casarini] propôs que fôssemos os três a um puteiro. Eu nunca tinha ido, mas morria de vontade de conhecer. Pura besteira: não tem a menor graça. É só uma casa, com música, gente que dança e mulheres vistosas que, de repente, desaparecem com os clientes. 

MC Esse erotismo a influenciou?
OS Não. A gente só foi ver como era e voltou rápido para casa. O erotismo é anterior e posterior a isso. Sou um ser erótico. Gosto disso. Uma vez me perguntaram se eu escrevia poesia erótica por ser ninfomaníaca. Claro que não! Quando o poeta fala em erotismo, fala porque não teve na dose que precisava. É mais falta do que excesso. 

MC O Fernando Pessoa dizia que “o poeta é um fingidor…”
OS “… finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.” Isso é lindo. É avesso do avesso. Pessoa era a pura verdade em poesia. 

MC Li que seu pai era russo. O que o trouxe para o Brasil?
OS Ele era engenheiro e veio trazer a luz elétrica para várias cidades do Norte e do Nordeste. Era um romântico, lindo e sonhador. E também era de Escorpião, como o [Carlos] Drummond [de Andrade]… 

MC Drummond era seu amigo?
OS Amicíssimo. Nunca me atraiu como homem, mas sempre mexeu comigo. Como poeta, era de tirar o fôlego. Tinha vontade de pegá-lo no colo, como uma mãe, mas ele não gostava nada dessa história. Eram outras as suas intenções [risos]. Uma vez, na fila do banco, eu disse para ele que adorava a amizade amorosa que havíamos construído. Ele ficou furioso: “Amizade amorosa coisa nenhuma, isso é amor!”. Fiquei muda, passada. Drummond era discretíssimo, tímido, mas naquele momento se tornou um alucinado, gritava em plena fila de banco. 

MC Como vocês se conheceram? 
OS
Aos 19 anos, fui com minha cara de pau, e meu livrinho embaixo do braço, ao antigo Ministério da Educação e Cultura, no Rio, onde ele trabalhava. Havia 100 poemas e ele teve paciência de ler todos! Cheguei sem jeito, mas a empatia foi imediata. Drummond tinha 53 anos e, mais tarde, confessou ter ficado balançado. Ficamos amigos e começamos a trocar poemas. Ele me chamava de Olenka, diminutivo de Olga, em russo, e fez um lindo poema para mim, que nunca foi publicado.

(Leia abaixo)

Miragem

Chegou, impressentida e silenciosa, 
Com uma saudade eslava nos cabelos 
E um ritmo de crepúsculo ou de rosa.

Os olhos eram suaves e eis que ao vê-los, 
Outra paisagem, fluída, na distância, 
Sugeria doçuras e desvelos.

No coração, agora já sem ânsia, 
paira a serenidade comovida 
que lembra os puros cânticos da infância.

Logo depois se foi, mas refletida 
nesse espelho interior, onde as imagens 
se libertam do tempo, além da vida, 

Olenka permanece, entre miragens. 

Carlos Drummond de Andrade, 1955

MC Quanto tempo depois você começou a namorar o Jaguar, um dos fundadores do Pasquim?
OS Nessa época, nós já namorávamos e o Jaguar, que adorava Drummond como poeta, passou a odiá-lo. Um não suportava ouvir falar do outro [risos].

MC Você chegou a trabalhar com o Jaguar no Pasquim? 
OS Os louros ficaram com os homens da redação, mas eu fui uma das fundadoras do Pasquim. Criei a famosa coluna Dicas, com notas sobre o universo da cultura, comentários e sugestões. Fui a primeira jornalista a dar preço para restaurantes. 

MC Você teve muitos namorados?
OS Na minha época, tinha todo aquele ritual: namoro, noivado e casamento. Ou seja, só fui namorar mesmo depois que me separei, aos 46 anos. Fiquei dois anos e meio com um jogador de futebol de 22, louco por mim. Ele me pediu em casamento e ficou indignado porque não aceitei. Mas eu estava a mil por hora. Tinha acabado de me separar, depois de casar virgem, e não casaria de novo nem por decreto! Queria só aproveitar aquele prazer imenso. Foi esse jogador que me deu um dos orgasmos mais intensos da minha vida, aos 46 anos… 

MC Antigamente não se falava em prazer feminino, falava? 
OS Não. As mulheres não tinham vez, voz ou libido. Felizmente acordamos. 

MC Quanto tempo faz que você teve seu último relacionamento?
OS Há 20 anos não quero saber de namoro. Como dizia Agatha Christie, nem se eu encontrasse um arqueólogo [risos]. É tão bom viver só que eu escreveria um elogio à solidão. Eu me distraio e me divirto sozinha nesta casa.

“Sou refém de sexo, mas não de homem; me viro muito bem sozinha”

MC Você não sente falta de sexo? OS Meu corpo não aguenta mais. No meu último namoro, já doíam o joelho, a lombar [risos]. O bom é que não sou refém de homem. Sou refém do sexo, mas não de homem. Me arranjo muito bem sozinha. Sei como me dar orgasmos deslumbrantes [risos]

MC Quando você descobriu que queria ser escritora?
OS Meu sonho era ser bailarina, mas meus pais diziam que eu ia morrer pobre. E eu consegui ser coisa pior [risos]. Escritor, sim, morre de fome. Vivo praticamente com um salário mínimo por mês, um benefício do tempo em que trabalhei na Secretaria de Cultura. De tão apaixonada pela literatura, achei que poderia viver só da relação com os livros. Hoje sei que não é assim, mas é tarde. Por isso trabalho tanto. Faço traduções, resenhas, antologias. Não paro e vivo bem. Não tenho luxos e não preciso deles. Nunca saí do país com o meu dinheiro, mas meu talento já me levou a representar o Brasil na Holanda, em Portugal… 

MC O que você poderia ter feito para viver mais confortavelmente?
OS Me arrependo de não ter pedido ajuda aos amigos que estavam no poder. Tive muitos e fui deixando-os morrer, por puro orgulho. Não existem mulheres que se apaixonam por bandido? [reflexiva] Eu me apaixonei por um malandro chamado Literatura [risos]. E, no Brasil, quem leva dinheiro na cueca se dá bem, quem é honesto não. A literatura, essa paixão que me suga, esse vampiro chamado poesia, consome toda minha energia. Leio e escrevo tanto que não tenho tempo de ir a oculista, ginecologista, dentista… 

MC O tempo interior dos intelectuais parece ser diferente do de seres humanos normais… 
OS E é. O bom poeta é um pensador, um filósofo. Reflete e questiona tudo. 

MC Isso não traz infelicidade?
OS Tenho a vida sacrificada, mas não sofro. Meu pai morreu quando eu tinha 28 anos e minha mãe alguns anos depois. Perdi tudo muito cedo, sou filha única, e aprendi a me entreter lendo e rindo sozinha. 

MC Do que eles morreram?
OS Meu pai caiu e fraturou o fêmur. Um ano e meio depois, morreu. Ele era um ótimo homem, não era como a minha mãe. Ela me detestava. Dizia que eu não era sua filha, mas de um casco de tartaruga. Está aí um bom título para sua matéria: “A escritora que era filha do casco de tartaruga”.

“Minha mãe me detestava, me deixou em carne viva  de tanto me bater”

MC Por que ela a tratava assim?
OS Quando eu nasci, minha mãe tinha 20 anos, gostava de festas, viagens e de tudo que as mocinhas dessa idade gostam. Inclusive de badalar. Por isso se separou do meu pai, numa época em que o divórcio não existia. Ela queria viver a vida e eu a atrapalhava. Era uma grande mulher, tocava violão e cantava, mas uma péssima mãe. Vivia me dando surras. Uma vez, chegou a me deixar em carne viva por 15 dias, de tanto me bater. Naquela época eu sofria horrores. Hoje, morro de rir porque sou a única pessoa do mundo que nasceu do casco de uma tartaruga. Que maravilha! Que grande biografia eu tenho! Do casco de tartaruga aos Jabutis [prêmios de literatura que Olga ganhou duas vezes, em 1971 e 1994]. Viu só como é bom rir de si mesma? 

MC Ao criar seus filhos você pensou que queria ser o mais diferente dela que pudesse? Tentou reescrever essa história de outra forma?
OS Sempre fui muito dura com meus filhos, mas nunca agressiva. Dei um único tapa no Pedro [morto, aos 41 anos, em 1999] e me arrependo disso até hoje. Mas ele era drogado. Dava um trabalho absurdo e, um dia, acabei perdendo a cabeça. Com a Flávia [Savary], que é uma excelente escritora de livros infantis, sou muito crítica. Quando ela me mostrou um dos seus primeiros poemas falei: “Olha, filha, poesia tem métrica, forma e você não pode fazer aleatoriamente, sem ritmo…”. Ela ficou furiosa. Depois, entendeu que era para o seu bem. Ficou em silêncio trabalhando e, cinco anos mais tarde, me apareceu com um livro belíssimo, que me deixou de queixo caído. É bom levar tombos. Amadurece. 

MC Quando o Pedro começou a se envolver com drogas?
OS Até os 17 anos, ele parecia um menino normal. Era lindo, magro e vivia pegando ondas. Mas não gostava de estudar e foi expulso de várias escolas — afinal, o pai se vangloriava de ter sido expulso de todos os colégios e filho imita pai. Só que o Jaguar tinha um talento nato e o Pedro não. Conclusão: nunca trabalhou e começou a pirar na maconha. Depois, tornou-se religioso. Frequentava todas as igrejas e religiões do Rio. E, embora vivesse do dinheiro do pai, com quem eu só falava o necessário, morava comigo. Mas, aos 40 anos, Pedro fugiu de casa e foi para o Rio Grande do Norte. Jaguar mandou buscá-lo, mas não teve jeito. Ele fugiu de novo para Natal. Morreu lá e eu só fiquei sabendo uma semana depois… 

MC Do que ele morreu? 
OS Ele morava numa pensão de uns amigos e vivia pegando onda. Um dia, dormiu e acordou morto. Falo assim, “acordou morto”, para atenuar essa dor. O Jaguar, que foi avisado da morte dele, mandou dinheiro para o enterro, mas não compareceu e não me avisou. Só falou com a Flávia, que foi quem me contou. É duro dizer, mas graças a Deus ele morreu, pois devia sofrer muito. Era louro dos olhos azuis, parecia com meu pai. Lindo… 

MC Você não foi buscá-lo em Natal? OS Não. Sempre fui uma mulher conformada. Se eu pudesse escolher, teria morrido no lugar dele, porque filho morrer antes de mãe é uma crueldade. No auge do problema com as drogas, pensei que, se pudesse, compraria algo para matá-lo e, em seguida, me mataria. Não aguentava mais aquilo. 

MC Hoje, olhando tudo isso, do que você mais sente falta? Existe algo que gostaria de fazer antes de morrer, para ir tranquila?
OS Adoraria entrar para a Academia Brasileira de Letras. Primeiro, porque eu tenho obras para isso, e muita gente não tem. São 20 livros e mais de 40 prêmios. Mas, mais do que isso, gostaria de entrar para a Academia porque… sou uma dama solitária e adoraria ter aquela turma toda de amigos, seria a minha família literária. Um sonho. E, depois, tem uma coisa: aqueles chazinhos são deliciosos [risos]. Já pensou que delícia você se reunir com sua família e discutir literatura? Ali há pessoas que eu admiro muitíssimo. São pessoas maravilhosas.

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