Patrícia Diguê – revista ISTOÉ
Pais de Sandra Gomide, assassinada pelo jornalista e ex-namorado há dez anos, perderam a saúde, o dinheiro e estão destroçados emocionalmente
Leonilda Pazian Florentino, 74 anos, e João Florentino Gomide, 72, completam 46 anos de casados neste ano de 2010. Em quase meio século de união, criaram dois filhos e edificaram uma relação de parceria e cumplicidade. Mas há dez anos não dividem o mesmo quarto. Não por nenhuma desavença de casal. Desde o dia 20 de agosto de 2000, dona Nilda, como é chamada, dorme na cama de solteiro da filha Sandra Gomide, brutalmente assassinada aos 32 anos pelo ex-namorado, o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves. À noite, a senhora alquebrada e silenciosa, que nesses dez anos desenvolveu transtorno bipolar, teve duas embolias pulmonares, vive à base de antidepressivos, usa fraldas, caminha com ajuda de um andador e só sai de casa para ir ao médico, reza para a filha e dorme. É o melhor momento de seu dia. “A Sandra me conta tudo”, murmura a dona de casa, que, durante o sonho, pergunta para sua menina se ela está bem. “Ela responde que sim e até me conta as reportagens que está fazendo”, completa, para depois cair em prantos e mergulhar novamente no seu silêncio.
Ao seu lado, Florentino tenta encontrar forças para reconfortar a mulher. Árdua tarefa, pois também sobrevive a duras penas, equilibrando-se à custa de um andador. Dois anos depois do assassinato da filha, o ex-comerciante sofreu um enfarte. Em 2007, um ano após Pimenta ser julgado, condenado e sair solto do julgamento, foi diagnosticado com câncer no intestino e precisou retirar o reto. Desde então, tem uma bolsa acoplada à barriga, por onde saem as fezes. O casal só tem um ao outro. Nilton Gomide, 45 anos, o outro filho, não presta nenhum auxílio, nem sequer visita os pais, segundo o próprio Florentino. A solidariedade vem de onde menos se espera – são os vizinhos que os auxiliam no dia a dia, como nas compras de supermercado. Uma empregada passa de manhã e à noite para trocar e dar banho em Nilda. Eles vivem das aposentadorias, um total de R$ 1,2 mil, valor que só paga o plano de saúde. Como se vê, os dois tiros que mataram a jornalista Sandra Gomide aos 32 anos se alojaram na vida de seus pais. Definitivamente.
“Perdi quem poderia estar cuidando da gente agora”, fala o pai. A garota dos Gomide era o orgulho da família de origem modesta da Vila Morais, zona sul de São Paulo. Desde o primeiro emprego, os pais colecionavam os passos profissionais da jovem por meio das reportagens que ela assinava. Na edícula da casa simples onde a família mora há 24 anos, as memórias de Sandra estão intactas. Estão lá, cuidadosamente guardados, os diplomas das faculdades de jornalismo e economia, além de roupas e fotografias. Depois que passou a morar sozinha, Sandra telefonava para os pais todos os dias, pontualmente às 20h. É disso que Florentino mais sente falta. Já Leonilda sente saudades de quando se fazia mais necessária. Quando Sandra ficava gripada e, ao lado do marido, ela se abalava para a casa da filha a fim de lhe fazer um fumegante e milagroso prato de sopa de mãe. “Preferia ter outro câncer a ter perdido minha filha”, encerra Florentino.
LIBERDADE
Pimenta, em outubro do ano passado, saindo do banco: vida longe das grades
Para a chaga ficar mais incômoda, e a provação, se é que é possível, ainda mais dolorosa, o assassino da filha dos Gomide continua solto, recluso em sua casa, na Chácara Santo Antônio, também na zona sul de São Paulo, mas na região nobre. Aos 73 anos, Pimenta Neves foi condenado a 19 anos de prisão por homicídio duplamente qualificado, mas está solto graças a um habeas corpus obtido em 2001 que lhe deu o direito de aguardar em liberdade até que todos os recursos sejam analisados. E ainda há recursos sendo julgados no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal. Florentino diz que a prisão de Pimenta lhe traria um alívio indescritível. “Cinco anos que ele ficasse na cadeia já estava bom”, diz. Há também uma indenização por danos morais contra Pimenta Neves – R$ 150 mil para cada um dos pais. No julgamento em primeira instância, a Justiça determinou o pagamento de R$ 83 mil, mas os advogados do jornalista recorreram e a ação continua sendo analisada no Tribunal de Justiça. “Pedimos urgência devido ao estado de saúde do casal e à idade avançada, com base no Estatuto do Idoso”, diz o advogado Fábio Barbalho Leite.
Sandra Gomide foi morta por Pimenta porque ele
não se conformou com o fim do relacionamento
Sabe-se que não há conforto, terreno ou divino, para pais que perdem filhos. Ainda mais brutalmente assassinados. Ainda mais na juventude. “Nos casos de morte violenta, costumo dizer que o enlutado é um verdadeiro sobrevivente”, diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, do Laboratório sobre Estudos do Luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Encolhidos na casa humilde em que moram e alimentados por suas lembranças e revoltas, os pais da jornalista Sandra Gomide atravessaram dias e noites, nesses dez anos sem a filha, se amparando um no outro à espera da justiça. Pelo menos ela.