Renata Mariz – Correio Braziliense
Pesquisa de médica-legista de Fortaleza, com 343 casos, mostra que pré-adolescentes de 10 a 14 anos representam 40% dos registros de agressões físicas e abusos sexuais, ao contrário do que relata boa parte dos estudos sobre o tema
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press – 4/11/08 |
Criança vítima de violência no Distrito Federal: detalhe interessante da pesquisa é que as mães praticam maus-tratos contra as jovens na mesma proporção que os pais |
Frágeis e indefesas, crianças nos primeiros anos de vida sempre foram consideradas as vítimas em potencial de violência doméstica. Não são poucos os casos de maus-tratos envolvendo até bebês de colo. Porém tese de doutorado recém-defendida na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) questiona a ideia, corroborada inclusive por grande parte da literatura disponível sobre o assunto. A análise de 343 casos no Instituto de Medicina Legal (IML) de Fortaleza, onde a pesquisadora Helenna Carvalho trabalha, aponta os pré-adolescentes de 10 a 14 anos como 40% das vítimas de agressões físicas e abusos sexuais.
Embora não saiba dizer os motivos exatos de meninos e meninas dessa faixa etária serem a maioria nos registros, a médica-legista Helenna tem algumas suposições. “Eles têm mais independência, conversam com professores, com colegas, têm acesso às informações. As crianças, por sua vez, muitas vezes nem conseguem se dar conta de que estão sendo vítimas de uma violência”, destaca a especialista. Por tudo isso, ressalta, os pré-adolescentes conseguem sair mais da invisibilidade. “Não é que as crianças estão sendo menos vítimas, é que os quase adolescentes estão aparecendo mais”, explica Helenna.
Perfis
O fato de a pesquisa ter sido feita no Ceará, segundo Helenna, não invalida os resultados em outros ambientes. “Temos um contexto de mais pobreza por estarmos no Nordeste, entretanto isso não causa uma interferência determinante. Podemos transpor esse perfis para qualquer cidade brasileira”, diz a especialista. O número de episódios de violência física (172) e sexual (167) verificado foi praticamente igual. A mãe, em 48,4% dos casos, foi quem notificou a agressão contra o filho. Mas também são elas que espancam a criança, praticamente na mesma proporção que os pais. Somente nas situações de abuso sexual é que padastros (32,3%) e pais (30%) aparecem em maior proporção — e quase empatados.
Para Ariel de Castro, vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a maior autonomia dos adolescentes em relação às crianças explica em parte a presença deles, em quantidade superior, nas salas dos IMLs. Mas ele também atribui o fenômeno à forma de educação praticada pelas famílias atualmente. “Muitas vezes esses pais vivem sem tempo para o diálogo e ausentes no que diz respeito a impor limites. E os adolescentes são, naturalmente, mais questionadores. Então, na hora em que surge um conflito, eles acabam tentando estabelecer os limites por meio da violência”, opina Ariel.
Suspeitas
Apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determinar como obrigatórios a notificação e o encaminhamento de suspeitas de casos de violência por parte de educadores e profissionais da saúde, nenhuma das 343 vítimas pesquisadas por Helenna chegou ao IML direcionada por postos ou hospitais. Somente 1,7% dos casos foram notificados por professores. “Existe alguma coisa que não está funcionando bem, talvez falte treinamento. O que percebemos é que parte dos profissionais têm medo de retaliações dos familiares, outros acham que não devem se meter em uma questão familiar. Mas temos que lembrar que a notificação de suspeitas é compulsória”, ressalta a pesquisadora.
Ouça trechos da entrevista com a pesquisadora Helenna Carvalho
Nas famílias tradicionais
Outro dado inesperado do estudo da médica legista Helenna Carvalho é que metade das crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica está inserida em famílias nucleadas, ou seja, formadas por pai, mãe e filhos que convivem na mesma casa. Vice-presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro surpreendeu-se com a informação e levantou dados ainda mais preocupantes. “Essa constatação é muito importante porque demonstra que existe uma conivência, uma omissão ou um objetivo comum de ambos os genitores. Pois quando você tem uma pessoa violenta dentro de casa, o outro a controla. Mas não parece ser isso o que vem ocorrendo”, lamenta Ariel.
Helenna Carvalho, autora do estudo, também estranhou o dado. “A literatura sobre o tema sempre afirmou que a violência ocorre mais frequentemente em famílias sem figuras do pai ou da mãe, as chamadas monoparentais. Ou então nas famílias reconstituídas, em que a mãe se separa e se casa com outro parceiro. Encontramos, no entanto, outra informação”, explica Hellena. Ela destaca que é preciso uma pesquisa mais aprofundada para entender as causas disso. Em última análise, o dado reafirma o que já se sabe. “Não há classe econômica, nível de escolaridade, renda, nada que coloque uma família livre da violência doméstica. Os casos que ocorrem nos lares menos favorecidos são mais percebidos, é verdade. Mas o problema está presente também nas classes média e alta”, diz. (RM)
Conclusões do estudo
Veja o perfil predominante de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica levantado pela pesquisa da USP. Os números se referem à amostra de 343 casos.
Faixa etária
10 a 14 anos – 39,1%
Tipo de violência
Violência física – 172 casos
Violência sexual – 167 casos
Múltiplas violências – 167 casos
O agressor
Pais e padrastos abusam sexualmente de filhas e enteadas na mesma proporção. Confira as estatísticas.
Agressor de abuso sexual
Pai – 30%
Padrasto – 32%
Por sexo
Há uma pequena diferença entre os sexos quando a violência é física. Na violação sexual, as meninas são as mais abusadas.
Vítimas (violência física)
Homens – 45%
Mulheres – 55%
Vítimas (violência sexual)
Homem – 18%
Mulher – 82%