Aparecida Gonçalves – Secretária de Enfrentamento à Violência contra a Mulher
Ana Paula Schwelm – Ouvidora da Secretaria de Políticas para as Mulheres
Jornal do Brasil – 8 de Agosto/2010
A Lei Maria da Penha chega ao seu quarto aniversário num contexto de perplexidade e indignação da sociedade brasileira em relação ao número divulgado de assassinatos de mulheres pela pesquisa do Instituto Sangari “Mapa da Violência 2010”, coordenada por Julio Jacovo Waiselfisz. Desfecho mais perverso da dominação de gênero, o feminicídio vitimou mais de 41 mil de mulheres brasileiras, entre 1997 e 2007, conforme o Datasus. Seus primeiros sinais são as falsas manifestações de afeto que encobrem o controle do corpo e do desejo das mulheres. Ameaças que desencadeiam uma crescente onda de agressões, espancamentos, cárcere privado e outras violações até atingir o óbito.
De sessões de tortura psicológica e física a anos de sofrimentos inomináveis, as mulheres em situação de violência clamam por proteção e justiça para que suas vidas não sejam interrompidas. A impunidade e a falta de consciência em relação à gravidade da violência contra as mulheres transformam denúncias de agressões em mortes anunciadas. Uma espécie de permissão ao feminicídio. Desde a década 1970, os movimentos feminista e de mulheres se mobilizam contra a violência. Tomaram ruas e espaços públicos, cobraram respostas do Estado e mostraram ao país casos que ficavam restritos à intimidade e sob a nebulosa esfera da patologia mental, passionalidade ou defesa da honra, como revelam as defesas dos agressores de Ângela Diniz, e mais recentemente de Sandra Gomide e Eloá dos Santos.
Amplamente debatida entre a sociedade civil e o Poder Público, a Lei Maria da Penha é um marco da legislação recente e é classificada pela ONU como umas das três melhores leis do mundo na área de violência. Expressa o compromisso do Estado brasileiro em conter e enfrentar o avanço da violência contra as mulheres. É popular e está na boca do povo. Segundo o IBOPE, a Lei Maria da Penha é conhecida por 78% da população brasileira e 44% acreditam no seu efeito.
Entretanto, esta lei também expõe a profundidade do problema da violência por meio das falhas do sistema público, condicionadas pelas relações de gênero, tais como desestímulo para registro da queixa-crime, subnotificações em inquéritos policiais, subestimação do depoimento da vítima e das solicitações de medidas protetivas. Esses são elementos comuns em casos emblemáticos sob plena vigência da Lei Maria da Penha: Marina Sanches Garnero, Maria Islaine de Morais, Mércia Nakashima, Eliza Samudio, entre tantas mulheres.
Em 2005, o governo federal criou a Central 180 de Atendimento à Mulher, serviço gratuito disponível 24 horas e sete dias por semana, para receber denúncias e orientar as vítimas de violência de todo Brasil. Ao longo deste período, foram registrados 1,2 milhão de atendimentos. Há três anos a Secretaria de Políticas para as Mulheres consolidou uma estratégia por meio do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres que tem um efeito cascata nos estados brasileiros através de ações articuladas vertical e horizontalmente nos três níveis de governo e alinhadas à realidade local para o fim da violência contra as mulheres.
Com investimentos substantivos, a SPM contribuiu para a melhoria de instalações, através de reformas e aquisição de equipamentos e veículos para as delegacias especializadas; fortaleceu a rede de atendimento à mulher vítima de violência composta por casas-abrigo, centros de referência e núcleos especializados das defensorias e ministérios públicos; e capacitou profissionais das áreas de saúde, segurança pública e assistência social. Atuou na sensibilização do Judiciário e dos operadores de direito para aplicação da Lei Maria da Penha. Realizou diversas campanhas pelo fim da violência contra as mulheres com focos em diferentes públicos, como as mulheres do campo e da floresta e os homens, está intitulada Homens Unidos pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Embora tenhamos resultados significativos deste trabalho, é preciso muito mais. Encarar a violência em todas as suas dimensões , estágios e gradações, exige o envolvimento constante de toda a sociedade e do Poder Público. Enquanto que as três esferas do Executivo devem canalizar recursos para fortalecer e aumentar os serviços públicos de atendimento à mulher, as instâncias do Legislativo e do Judiciário devem atuar e assegurar as condições para a aplicação da Lei Maria da Penha e melhoria do sistema público.
À sociedade, cabe a total intolerância de todas as manifestações de violência. As mulheres assassinadas são reais. Podem estar distantes no noticiário, mas estão muito perto de nós: irmãs, mães, filhas, tias, companheiras, vizinhas, colegas de escola e trabalho, amigas. Sua dor, ao mesmo tempo em que nos comove, deve nos instar a tomarmos uma atitude diante da violência. Acabar com a cultura de violência não é um ato individual e solitário. A solidariedade da sociedade e a intervenção firme do Estado são o caminho para que as mulheres que hoje vivem a violência possam reconstruir suas vidas com autonomia, dignidade e igualdade de direitos.