Mércia, Eliza e as outras

  • Flavio Goulart – Professor aposentado de medicina da Universidade de Brasília
  • David Duarte Lima – Professor de medicina da Universidade de Brasília

    violencia-mulher-cbEm aproximadamente 30 dias, duas mortes de mulheres chocaram o imaginário do brasileiro: as de Mércia Nakashima e Eliza Samujo, assassinadas, ao que parece, de maneira covarde por homens com os quais mantinham alguma forma de relacionamento. Lamentável, como todos os crimes contra a vida; mais ainda se as vítimas não têm como se defender, como mostram as evidências factuais. 

    O que ninguém comenta é que nesses mesmos 30 dias a violência permaneceu solta no Brasil. Estatísticas recentes mostram que são assassinadas cerca de 4 mil mulheres por ano no Brasil. Ou seja, mais de 300 assassinatos de cidadãs brasileiras em um único mês, boa parte na mesma faixa etária de Mércia e Eliza. 

    É um verdadeiro absurdo, sem dúvida, com as proporções de um genocídio. As razões são muitas, mas podem ser enfeixadas dentro de uma categoria: o desrespeito — contra a vida, contra as mulheres, contra os direitos humanos, contra a maternidade, contra os mais fracos. Para isso concorre a cultura machista e truculenta, mas também o silêncio e a omissão da sociedade. 

    Mas silêncio e omissão pública não parecem ser o que prevalece no caso das mortes de Mércia e Eliza. Por que será? Não é difícil encontrar a resposta: são casos que encontraram o abrigo da mídia. Uma, por pertencer a uma classe média afluente, por ter um ciclo de relações no qual, certamente, havia advogados, jornalistas e outras pessoas bem relacionadas. Outra, pobre ovelha desgarrada, sem família que cuidasse de seus interesses, mas envolvida com uma celebridade do futebol e a penca de amigos mafiosos dele. 

    No simples intervalo em que essas duas moças morreram, cerca de três centenas de outras mulheres tiveram o mesmo triste destino. Delas, entretanto, só se lembraram as famílias e os amigos mais próximos. Nenhuma nota no jornal, ou talvez apenas uma, dando conta de seu desaparecimento ou do achado do cadáver. Depois, silêncio. E sua cúmplice imediata e íntima, a omissão. 

    A polícia, tão zelosa nos casos recentes, o que teria feito nas demais situações que se repetiram Brasil afora? Abriu uma ocorrência, já se sabe. Ou talvez nem isso, ocupada com suas greves repetidas e prestações de serviços em outras esferas. Aliás, “zelosa”, como escrito acima, é mera força de expressão. O que se viu e ainda se vê é um desfile grotesco em que se misturam vaidade, incompetência, ignorância, corrupção, irresponsabilidade, mancomunação corporativa e com a mídia. Triste retrato! 

    Quando um de nós visitou Québec, alguns anos atrás, ficou impressionado com o fato de que, na primeira página de um jornal de ampla circulação, havia uma notícia sobre uma ignota mulher que fora espancada pelo marido no dia anterior. E era uma matéria detalhada, com fotos da vítima e do agressor, além de depoimentos de vizinhos. A primeira impressão foi que se tratava de provincianismo midiático, nada mais. Com certa ironia, imaginou-se que se a moda chegasse ao Brasil, os jornais abririam suas edições com o caderno de classificados, contendo os espancamentos do dia de mulheres, de Abigail a Zenóbia. 

    Mas logo foi possível compreender que aquilo era um abuso que maltratava não apenas aquela pobre mulher, seus parentes e amigos mais próximos, mas afetava a sociedade quebequense como um todo. Era provincianismo, talvez, mas partia de um povo que, se tinha o hábito de colocar cadeiras nas calçadas para prosear entre vizinhos e passantes em geral, era também capaz de se indignar com a violência contra a vida humana, fosse ela de mulher, criança e homem; nativo ou estrangeiro. 

    Mas voltando às nossas recentes vítimas de Brunos, Macarrões e Mizaéis… Mércias e Elizas não estão sozinhas, certamente. Com elas há um séquito de Marias, de Antônias, de Josefas e tantas mais. A diferença é que esse é um cortejo anônimo, silencioso, imerso nas sombras, distante dos holofotes. E dói vê-lo passar, ou pelo menos saber de sua existência. 

    Não é que a mídia devesse se omitir diante de casos como os recentemente ocorridos. Até o sensacionalismo seria bem-vindo, desde que servisse como demonstração de repugnância e denúncia. Mas pelo menos que se colocasse nos rodapés das notícias, ou como um aposto, toda vez que se mencionasse o nome de uma vítima famosa: “Mas atenção, esta é apenas uma entre as milhares de anônimas que têm o mesmo destino no Brasil, a cada ano que passa”. E que polícia, mídia e sociedade cumprissem, cada uma, o seu papel, nele incluído o pleno exercício de suas responsabilidades. 


  • artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 10/8/2010

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