'Ele cavou uma cova para mim', diz mulher vítima de violência

Mariana Oliveira – Do G1, em São Paulo
G1 visitou abrigo onde moram mulheres ameaçadas pelos ex-companheiros. Elas temem reencontrar os agressores e esperam recomeçar a vida.

Ana Cláudia tem pouco menos de 30 anos e passou quase um terço da vida sendo agredida pelo ex-companheiro. Um dia, chegou em casa do trabalho e havia uma cova no quintal. Era uma maneira encontrada pelo ex para intimidá-la.

“[Ele] me ameaçava de morte. Teve um dia que cheguei do serviço e no fundo do meu quintal tinha um terreno e tinha um buraco onde ele ia me enterrar. Várias vezes falou que ia me matar, dar facadas, cortar meu corpo em pedacinho, ia enterrar e que ninguém ia me encontrar. (…) Ele cavou uma cova. (…) No dia que vi aquele buraco, você não tem noção de como fiquei apavorada. Eu só estou viva hoje porque eu procurei ajuda, eu fui na delegacia da mulher e eles me encaminharam para o abrigo, senão eu não estava viva hoje”, disse – confira no vídeo ao lado.

“Ele cavou uma cova. (…) No dia que vi aquele buraco, você não tem noção de como fiquei apavorada. Eu só estou viva hoje porque eu procurei ajuda”
Ana Cláudia, vítima de violência doméstica


A história de Ana Cláudia é uma entre as de muitas mulheres vítimas de violência. Atualmente, os noticiários dão destaque aos casos de Eliza Samudio, ex-amante do ex-goleiro do Flamengo Bruno Souza, desaparecida há mais de um mês, e da advogada Mércia, encontrada morta em junho. Mas a maioria dos casos não aparece no noticiário.

G1 visitou uma casa-abrigo onde moram mulheres e seus filhos, que fugiram dos companheiros e tentam recomeçar uma nova vida após agressões e ameaças. Os nomes das mulheres vítimas de violência citadas na reportagem foram alterados a pedido das entrevistadas.

As ameaças e agressões contra Ana Cláudia começaram quando ela começou a trabalhar.

“Ele não acreditava em mim, achou que eu ficava com homens no meio da rua. Um dia ele judiou muito de mim, fez machucado bem grande na minha cabeça. Ele arrancou a porta, jogou na minha perna. Arrancou metade dos meus cabelos. (…) Ainda tô fazendo tratamento psicológico. Para ter ânimo. Um dia juntei todos os comprimidos e fiquei três dias dormindo, tipo um coma de três dias. Não acordava. Eu não via mais razão para viver, eu queria destruir aquela vida, porque não estava mais fazendo sentido para mim.”

Ela mora no abrigo e atualmente faz curso na área de construção civil. O maior medo é reencontrar o ex-companheiro, que ela classifica como “perigoso”. “Eu tenho muito medo dele, da família, de tudo, dos amigos, de tudo dele eu tenho medo, eu saio e fico que nem doida no meio da rua, toda hora olhando para trás, se alguém olha muito eu tenho que sair de perto.”

O medo de Ana Cláudia tem razão de existir, de acordo com a advogada Maria Aparecida da Silva, especializada em violência contra mulher. Ela conta que a ida ao abrigo é necessária nos casos em que a mulher corre risco de morte e que, na maioria das vezes, os ex-companheiros insistem em procurar as mulheres. Por isso, elas vivem sob absoluto sigilo, sem poder contar nem mesmo a parentes onde estão. Quando chegam, passam cerca de 30 dias sem contato com o mundo externo. Depois da “trintena”, podem fazer ligações sob a supervisão de educadoras para garantir que não vão revelar o próprio paradeiro.

A coordenadora da casa-abrigo visitada pelo G1, que cuida da organização da casa e recepciona pessoalmente as mulheres – o nome dela foi preservado pela segurança do local -, diz que o trabalho sobre a importância de manter o sigilo da casa é constante.

“A tendência é esquecer o risco. Por isso a gente trabalha todo dia com elas, não no sentido de aterrorizar. Trabalhar o medo saudável. Tem dois tipos de medo: o que paralisa é horroroso, a pessoa nunca mais caminha. O medo saudável é aquele que preserva minha vida, minha segurança e ao mesmo tempo me permite ir à luta”, diz a coordenadora.

O abrigo visitado pela reportagem fica na Grande São Paulo. É uma casa normal em uma rua tranquila, sem muito movimento. Há vários quartos – algumas famílias maiores ficam em um único ambiente e outras dividem o espaço -, refeitório, sala de TV, cozinha, copa, lavanderia e quintal para as crianças brincarem. Algumas mulheres estão sozinhas, outras com seus filhos. Vítimas de violência doméstica, estão ali porque psicólogos e assistentes sociais identificaram que havia risco de morte.

Refeitório de abrigo para mulheres vítimas de violência na Grande São Paulo
Refeitório de abrigo para mulheres vítimas de violência na Grande São Paulo (Foto: Mariana Oliveira / G1)

Fracasso
A coordenadora do abrigo conta que as mulheres chegam no local com “sentimento de fracasso”. “A nossa sociedade nos ensinou que somos responsáveis pelo sucesso do casamento, pelo sucesso dos filhos, dessa vida familiar. Então, quando chegam aqui, além da perda material, da perda dos objetos pessoais, chegam com muita raiva, outras com muita tristeza. O sentimento de fracasso é geral e na maioria das vezes elas saem agressivas no sentido de defesa. Elas chegam muito indignadas, ‘eu não dei certo’, ‘eu fracassei’, ‘ele é um criminoso, mas está lá fora solto e eu estou aqui presa’.”

Para a advogada Maria Aparecida da Silva, é uma distorção as mulheres ficarem privadas de liberdade enquanto seus agressores ficam soltos. “É injusto e desumano uma mulher ter que se retirar de sua condição de mãe, de esposa, da família, ser retirada de seu conv

ívio, de sua comunidade, para ter de ficar presa enquanto agressor fica solto, é injusto.”

Ana Cláudia afirmou que, quando conheceu o ex-companheiro, ele não era violento. “Ele nunca mostra quem é no começo, sabe a pessoa tem várias faces, tem palavra para tudo que perguntam. É boa para as pessoas na rua, quem vê fala ‘nossa essa pessoa não é assim’.Tem estudo, profissão boa, tem tudo para ser uma pessoa educada, sabe conversar com mendigo até prefeito, governador. Mas com companheira dele em casa, quando abre a porta, deixa tudo de bom que tinha lá fora.”

“Sofri em minha casa durante 10 anos. Eu sofri vários tipos de violência, psicológica e agressões físicas. Eu não aguentava mais. Eu decidi que tinha de denunciá-lo e através da minha denúncia vim para o abrigo”
Lúcia, vítima de violência doméstica

Lúcia, que também falou com o G1, passou mais de dez anos em situação de violência. “Ele me batia muito, usava armas, me ameaçou com armas. Me intimidava, a primeira coisa que fazia era me apontar um revólver. Convivi durante todo o tempo com esse tipo de situação. (…) Sofri em minha casa durante 10 anos. Eu sofri vários tipos de violência, psicológica e agressões físicas. Eu não aguentava mais. Eu decidi que tinha de denunciá-lo e através da minha denúncia vim para o abrigo. Eu descobri que [ele] era violento depois de um ano de casado, aí descobri quem era a pessoa dele.”

Assim como Ana Cláudia, Lúcia também teme encontrar o ex-companheiro. “Por incrível que pareça, estou dois anos afastada e ele ainda me procura. Eu tenho muito medo, de ele me encontrar se ele chegar a me encontrar. Porque ele pode me matar, onde ele me achar ele me mata.”

De acordo com especialistas, as mulheres que sofrem violência podem buscar informações no disque-denúncia 180. Devem ainda buscar orientação dos centros de referência de apoio à mulher em seus municípios, que orientam sobre as medidas de abrigamento e as medidas judiciais contra o ex-companheiro.

Nos abrigos, as mulheres fazem cursos e aprendem profissões. Elas ficam nas casas por, no máximo, um ano e meio. Nesse período, técnicos ajudam para a obtenção de um emprego e também auxiliam para que a pessoa regularize a sua documentação pessoal. Depois, cada uma segue a sua vida, muitas vezes em cidades diferentes.

Medo de perder os filhos
Cristina é uma das pessoas que está há menos tempo no abrigo visitado pela reportagem. Ela chegou ao local com os filhos, mas relutou em buscar ajuda por medo de perder a guarda. “Eu não denunciava porque tinha medo que pudessem tomar meus filhos de mim.”

“Ele tinha muito ciúme, até do filho quando mamava, porque o menino só queria a mãe”
Cristina, vítima de violência doméstica

Ela conta que o marido batia também nas crianças. “Ele tinha muito ciúme, até do filho quando mamava, porque o menino só queria a mãe. Com o menor, chegou a espetar o garfo no céu na boca porque não queria comer feijão. O pintinho do meu filho ele puxava, torturava mesmo.”

Após ligar no disque-denúncia, recebeu a orientação de que não perderia a guarda dos filhos e resolveu denunciar o próprio marido. “Ele me batia muito, resolvi denunciar no dia que ele disse que ia quebrar minhas pernas e me matar.”

Cristina disse que o marido não bebia, não fumava e não usava drogas, mas já demonstrava sinais de violência antes mesmo do casamento. “Era violento com as irmãs, uma vez eu vi ele dando um soco na irmã, mas achei que nunca ia fazer isso comigo.”

‘Príncipe encantado’
Priscila também mora no abrigo com os filhos. Ela conta que o marido a humilhava e chegou a botar fogo na casa. “Ele batia, humilhada, me colocava fora de casa, me deixava tomando chuva. Antes de vir para cá, ele colocou fogo na minha casa e queimou tudo que eu tinha.”

Disse que as drogas o levaram a ser violento. “Quando casamos ele não era violento, falava que me amava, que iria me proteger, não ia deixar ninguém fazer nada de mal para mim. Mas ele começou a usar droga. Antes ele era um sonho, um príncipe encantado.”

Lei Maria da Penha
Criada para proteger mulheres em situação de violência, a Lei Maria da Penha completa quatro anos em agosto.

abrangência da legislação gera divergências dentro do Judiciário, de acordo com magistrados consultados pelo G1. Enquanto alguns juízes entendem que a legislação vale para todos os casos de violência contra a mulher, outros consideram que ela só se aplica a relacionamentos estáveis. Para que a situação seja contornada, magistrados defendem alteração na lei para deixá-la mais clara.

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