Redação IHU
Ao refletir sobre os crimes de violência contra a mulher, a assistente social Ângela Maria Pereira da Silva define o ato como “um ato de posse, de total possessividade em relação a outro indivíduo, é uma despersonalização do outro. Eu posso dizer que eu sou dona da minha caneta, mas eu não posso dizer que eu sou dona do desejo de outra pessoa“. Em entrevista à IHU On-Line, concedida por telefone, ela fala sobre a realidade do centros de atendimento à mulher que vive uma situação de violência e aponta alguns pontos falhos na Lei Maria da Penha e na atuação das equipes das delegacias da mulher. “Percebemos que, na prática, a realidade é diferente do que preconiza a norma. Nós ainda precisamos avançar muito em relação à rede de proteção à mulher. Até mesmo para que haja aplicabilidade da lei dentro do prazo que ela estipula, que seriam de 48 horas para conceder ou não uma medida protetora de emergência”, revela.
Ângela Maria Pereira da Silva é, atualmente, docente da Fundação Saint Pastous (Porto Alegre/RS) e assistente social da Secretaria Estadual de Assistência Cidadania e Inclusão Social e do Centro Jacobina (São Leopoldo/RS). Realizou o curso de Serviço Social na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). É especialista em Gestão do Capital Humano, pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação Ciências e Letras (Fapa), e obteve o título de mestre em Serviço Social, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A cada 2 horas uma mulher é assassinada no Brasil. Que regiões sofrem mais com o problema da violência contra a mulher?
Ângela Maria Pereira da Silva – Eu atribuo esta realidade a questão da impunidade do homem que está em situação de violência. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha, neste sentido, faz muita diferença. Além da impunidade, outro aspecto importante neste contexto é a questão sócio-cultural da violência entre homens em relação às mulheres. No Rio Grande do Sul, avançamos muito, mas ainda, todos os dias, presenciamos novos fatos de óbito de mulheres por situações de violência doméstica. Entre 2009 e 2010, em São Leopoldo, já tivemos alguns assassinatos, inclusive com requintes de crueldade, de homens que também se sentiram acima da lei e vieram a assassinar mulheres da própria família.
IHU On-Line – Existe um perfil deste homem?
Ângela Maria Pereira da Silva – Não tem como caracterizá-lo. Na realidade, há uma série de fatores que conspiram e que contribuem para uma postura mais agressiva por parte do homem, o que não justifica a prática da violência. Percebemos que muitos dos homens que estão cometendo atos violentos já passaram por situações de violência nas suas próprias vidas, já vêm de lares aonde houve situações de violência contra a mulher e acabam perpetuando isto em suas próprias famílias.
Então, na verdade, esses homens não conseguem ressignificar esta relação de sofrimento e acabam reproduzindo isto com filhos e com suas companheiras. Também temos um número crescente de pessoas que acabam se vinculando à substância psicoativas, o que desperta um comportamento mais agressivo em algumas pessoas. Além disso, o quadro da pobreza e da miserabilidade também afeta o nível de estresse das pessoas e, muitas delas, buscam a força para fazer valer os seus desejos sobre o outro.
IHU On-Line – Por que as mulheres ainda têm medo de denunciar?
Ângela Maria Pereira da Silva – Há um número cada vez mais ampliado de mulheres que estão rompendo com este silêncio. Aqui no Centro Jacobina [1], constatamos que ainda existem fatores que interferem nesse rompimento do silêncio, tais como a dependência econômico-financeira, a questão de não ter uma rede de apoio afetiva, onde a mulher possa recorrer em um episódio de violência. Existe também o fator de um amor que causa perplexidade, é um amor que fere, que maltrata, mas que a mulher quer manter. Nem todos os homens que cometem a violência são os companheiros. Já recebemos denúncias contra netos, filhos, e, às vezes, até mesmo de um empregador. Mas, no âmbito da família, o que nós percebemos é que é uma relação que idealizada pela mulher que, quando acontece uma situação de violência, se desorienta de tal maneira que ela encontra justificativa para os atos do homem.
IHU On-Line – A violência contra a mulher em ambientes que não são familiares se dá de que forma?
Ângela Maria Pereira da Silva – Nós já atendemos situações de violência sexual que acontecem na rua, ou seja, mulheres indo ou retornando do trabalho que foram abordadas e foram violentadas no caminho. Também já denunciaram violência no âmbito do trabalho, ou porque engravidaram e foram constrangidas por isso ou porque em algum momento adoeceram. Atendemos pessoas que trabalham com serviços gerais e foram assediadas por patrões.
IHU On-Line – Em relação à lei Maria da Penha, que falhas essa norma ainda tem?
Ângela Maria Pereira da Silva – A Lei Maria da Penha ainda é muito precoce em relação a outras leis. Mas já percebemos que, na prática, a realidade é diferente do que preconiza a norma. Nós ainda precisamos avançar muito em relação à rede de proteção à mulher. Até mesmo para que haja aplicabilidade da lei dentro do prazo que ela estipula, que seriam de 48 horas para conceder ou não uma medida protetora de emergência. Outra questão importante: se atendemos uma mulher que não tem uma rede de apoio, ela não vai ter para onde ir com seus filhos. O que ela deve fazwer se não tiver suporte?
Temos também um índice crescente de mulheres que estão em constante violência doméstica em função da relação com as drogas e ainda faltam vagas suficientes para internação e desintoxicação do público feminino. Há também uma realidade crescente de mulheres em situação de rua, e, esta situação, sabemos que vai culminar, mais cedo ou mais tarde, numa violência sexual ou física. No entanto, a maioria das vagas em albergues públicos é para o público masculino. Existem muitas questões que precisam avançar para que a Lei seja cumprida na sua totalidade. A lei presume que a educação possa combater a violência.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas que as delegacias da mulher vivem hoje?
Ângela Maria Pereira da Silva – Aqui em São Leopoldo nós não temos ainda uma delegacia especializada para o atendimento da mulher, nem da criança, nem do adolescente. O que eu percebo é que cada vez mais nós temos que olhar não só para o espaço institucional, mas para a questão da qualif
icação, das condições de trabalho das pessoas que atendem os “violentados”. Não adianta termos uma delegacia para a mulher se a equipe não estiver suficientemente capacitada e sensibilizada para realizar o atendimento ao público.
IHU On-Line – São muitos municípios que não possuem Delegacia da Mulher?
Ângela Maria Pereira da Silva – Acredito que tenhamos, aqui no Rio Grande do Sul, em torno de quinze ou vinte delegacias. Então, a delegacia da mulher ainda não é uma realidade se compararmos o estado com São Paulo, por exemplo. Estamos deixando muito a desejar.
IHU On-Line – Como a senhora vê, no caso de Eliza Samudio, o fato de que uma juíza que analisou a primeira denúncia de agressão da moça, mas não concedeu proteção a ela?
Ângela Maria Pereira da Silva – Do meu ponto de vista, como uma assistente social que atua no enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha está aberta a interpretações e, exatamente por isto, por vezes são feitas interpretações equivocadas. Se uma mulher teve uma relação com um homem e daí nasceu um filho, independente de eles estarem vivendo ou não juntos, ela deveria estar sendo amparada pela lei.
Acontece muito, quando se trata da violência de gênero, antes de analisar o fato, surgirem pré-suposições e preconceitos que interferem no julgamento. No caso da Eliza Samudio, a mídia descaracterizou esta mulher dos seus direitos, porque ela tinha um trabalho X, porque tinha relações familiares Y. Enfim, mostrou-a como uma pessoa não digna de direitos. Então, houve um desrespeito em relação a este caso, não só por parte da mídia como por parte do Poder Judiciário.
IHU On-Line – O caso de Eliza é emblemático para compreendermos as relações de gênero na sociedade contemporânea?
Ângela Maria Pereira da Silva – Creio que sim, porque, na realidade, estamos falando de alguém que tem um relativo poder e que já vinha demonstrando, em várias situações, o preconceito de gênero. Parece que isso não foi levado a sério. A prova disso foi a forma como a trataram durante a primeira denúncia que ela fez, quando foi submetida a tomar medicamentos abortivos e foi violentada fisicamente. Por conta disto, me questiono:l qual foi o apoio que esta moça teve do serviço que a atendeu naquele momento Qual foi a rede de apoio afetiva que ela teve? Isso porque, depois das denúncias, ela voltou a confiar neste homem, negando inclusive orientações que a advogada lhe deu. Confiando numa nova promessa, ela vai ao encontro do homem que a ameaçou, sem se resguardar, sem ir com alguém da família ou alguém de sua confiança e, com isso, estava vulnerável ao que supostamente tenha acontecido.
IHU On-Line – Os assassinos de Eliza e da advogada Mércia podem ser considerados produtos de uma sociedade com resquícios patriarcais?
Ângela Maria Pereira da Silva – Sim, podem. Na verdade, eles mostram muito desta esquizofrenia social que vivemos, onde é permitido violar não somente a mulher, mas também a pessoa idosa, os deficientes, ou seja, qualquer pessoa que é dita diferente da maior parte da sociedade em que vivemos. As pessoas não têm paciência, elas sempre estão sendo pressionadas pelo tempo, pelo acúmulo de tarefas. Tudo isso faz com que a pessoa vá se movimentando em um processo de irracionalidade em que não consegue mais entender que o respeito tem que prevalecer nas relações.
IHU On-Line – Podemos dizer que o crime passional é um ato de ódio?
Ângela Maria Pereira da Silva – É, antes de tudo, um ato de posse, de total possessividade em relação a outro indivíduo, é uma despersonalização do outro. Eu posso dizer que eu sou dona da minha caneta, mas eu não posso dizer que eu sou dona do desejo de outra pessoa. E, nestas situações onde a mulhes é assassinada há muito a presença do sentimento de posse, onde o outro não é mais o outro, ela é minha, ela me pertence, se não fica comigo não fica com ninguém.
IHU On-Line – Como modificar os padrões culturais de opressão?
Ângela Maria Pereira da Silva – Temos que pensar nas gerações que estão se formando, porque hoje nós estamos percebendo um nível crescente de violência entre adolescentes. Há mutos casos de, no fim de um namoro, o menino adolescente tirando a vida da ex-namorada, atirando contra a namorada, causando um dano físico ao corpo desta menina. Isso já está acontecendo na geração que está aí. Por isso, temos que atuar na prevenção, trabalhando nas escolas com os pequenos e com as famílias. O atendimento à família faz com que se mude toda uma relação de conflito. Na família pode-se trabalhar todas as diferenças de pertencimento.
(Envolverde/IHU – Instituto Humanitas Unisinos)