Fabiana Frayssinet, da IPS
Rio de Janeiro, Brasil, 22/7/2010 – É noite de sexta-feira e, em uma favela desta cidade, um grupo de homens, após a dura semana, relaxa saboreando uma cerveja, enquanto em meio ao movimento habitual se ouve uma canção. A letra com ritmo de samba fala de temas tão típicos como futebol e mulheres, mas também de violência de gênero, e se mistura com a fumaça da carne assando em uma grelha improvisada, em uma das vielas da favela Santa Marta, sul da cidade do Rio de Janeiro.
Muitos seguem o ritmo e cantarolam a letra, que fala de um homem que briga com sua mulher porque, preocupada em pagar o aluguel, se esqueceu de lavar o uniforme de futebol. “Um problema entre marido e mulher é normal. Mas não me venha com agressão física ou verbal”, diz o refrão. A música faz parte da estratégia da organização não governamental Promundo para sensibilizar os homens da favela Santa Marta por meio de dois símbolos culturais do Brasil, futebol e música, para abordar outro de seus temas principais: as mulheres, mas com outro olhar.
Esse samba também é o hino informal de um campeonato de futebol que há seis meses se desenvolve nesta favela de dez mil habitantes. Para jogar só tem uma condição: participar de um painel sobre violência contra a mulher e sobre a masculinidade. “O projeto quebrou paradigmas para conversar sobre estes temas de homem para homem”, explicou Gilson*, um cantor de rap de 32 anos, na noite em que a IPS participou na favela, com um grupo de 119 integrantes, dos paineis e das equipes de futebol local.
“A gente faz o que mais gosta que é jogar bola”, acrescentou Gilson, mostrando orgulhoso uma foto sua vestindo a camisa do time com um lema sobre a violência contra a mulher escrito na parte de trás, destacada em um jornal comunitário da Promundo, organização de nível nacional. Gilson, acomodado no balcão de um pequeno bar, conversa com outros jogadores sobre a final do campeonato “Vamos fazer um churrasco aqui na favela, para todos”, propõe Samuel Marques, um dos coordenadores comunitários.
Samuel, oriundo do morro Santa Marta, lembrou que no começo ninguém queria se inscrever nos grupos, que abordam temas como violência de gênero, sexualidade, divisão de tarefas domésticas, saúde do homem e homofobia. Fábio Verani, assistente sênior da Promundo, contou que “a ideia é envolver os homens na discussão sobre a igualdade de gênero” que se integra na “Campanha do Laço Branco”, uma iniciativa surgida, em 1991, no Canadá, contra a violência machista, que se estendeu a muitos outros países. Finalmente, a participação nos paineis foi maciça e as ausências eram exceções. “Um enorme sucesso”, disse Samuel.
Leandro*, de 29 anos, casado, pai de quatro filhos e desempregado, reconheceu que no começo “causava desconfiança” falar de sua vida com os outros. “Isso de contar o que acontece em sua casa, na intimidade, é complicado no início”, disse. Depois aprendeu a ver as relações de casal e de família de maneira diferente. “Não só a mulher tem de aprender a cuidar dos filhos, o homem também. Porque se um coloca feijão e arroz dentro de casa não significa que isso não é trabalho do outro”, afirmou.
Agora, Leandro leva os filhos à pracinha para que sua mulher possa estudar em casa, lê histórias para eles, ou brincam juntos. “Minha filha prepara comidinhas de brincadeira e me diz papai coma, e eu como”, disse, destacando que “as reuniões abriram minha cabeça”. Samuel explicou que é preciso desmontar um modelo imposto e reproduzido socialmente, tanto por homens como por mulheres, família e instituições como a igreja, onde se ensina que o papel masculino é o de “proteção e sustento familiar”.
Para Verônica Moura, também coordenadora comunitária, a violência contra a mulher se alimenta do que chama de “sociedade machista”. Já Leandro diz que “isso pode vir de dentro de casa. O pai agride a mãe, ou a mãe agride o pai, e o filho faz o mesmo com sua noiva ou esposa, porque é o que viu desde que nasceu”. Por sua vez, Fábio se surpreende pelo fato de muitos homens não estarem conscientes de que exercem a violência ou a veem como algo aceitável socialmente. A Promundo quantificou que entre 20% e 25% dos homens dos grupos espalhados por todo o Brasil relataram atos de violência contra sua companheira. E Samuel destacou que são muitos os que acreditam que insultar não é agredir ou justificam a violência como forma de “disciplinar a mulher”.
No Brasil, desde 2006, a lei Maria da Penha combate a violência contra a mulher e a família e estabelece penas de três meses a três anos de prisão quando há lesões, entre outras punições. Gilson admitiu que os paineis “foram minha salvação, porque não queria ser violento, mas não sabia como mudar essa situação. Já me encontrei com ex-noivas que em seu momento me tiraram do sério. Agora penso e me acalmo”, comemorou.
A agressividade masculina se deve ao fato de “ser fechado por ideologia”, acrescentou Gilson. “Paramos na porta do bar e conversamos sobre futebol e mulheres, mas nunca sobre sexualidade, filhos, em ajudar nas tarefas de casa”. Ele está consciente de que a violência não acaba de um dia para outro. Entretanto, assegurou que “é possível trabalhar isso com as crianças, que serão os adultos de amanhã, conversando com eles sobre sexualidade, sobre violência contra a mulher, sobre criar os filhos juntos”. A Promundo avaliará os paineis quando o campeonato terminar, no final deste mês, mas já há resultados visíveis. “O torneio de futebol é dos mais pacíficos da história do Santa Marta”, disse Fábio.
Ana Claudia Pereira, consultora de violência de gênero do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, disse à IPS que estes projetos são importantes para “atrair os homens para o debate”. Contudo, criticou que “muitas vezes, em uma situação de emergência, de preservação da vida das mulheres, e quando as políticas públicas têm recursos tão limitados, se perca o foco da necessidade de reforçar a assistência às vitimas e à sua integridade física”. IPS/Envolverde
* Os sobrenomes dos participantes dos paineis foram omitidos a pedido deles.
FOTO
Crédito: Fabiana Frayssinet/IPS
Legenda: Homens pelo fim da violência contra a mulher, diz a camiseta de um morador do morro Santa Marta.
(IPS/Envolverde)