Estrella Gutiérrez, da IPS
Caracas, Venezuela, 22/7/2010 – “Vivemos a transição de um modelo baseado em uma inflexível divisão sexual do trabalho para um novo pacto social, com regras mais iguais para homens e mulheres”, afirmou Gladys Acosta, chefe do Fundo das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) para a América Latina e o Caribe, em entrevista à IPS. Gladys, advogada e socióloga peruana com três décadas de luta feminista, sintetizou assim sua percepção sobre os debates na XI Conferência Regional sobre a Mulher, convocada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), realizada entre os dias 13 e 16 em Brasília.
O encontro foi concluído com o chamado Consenso de Brasília, que fixa as prioridades regionais a favor da igualdade de gênero até 2013, quando acontecerá, em Santo Domingo, a próxima Conferência, informou Gladys.
IPS: Por que o Consenso de Brasília dá protagonismo ao poder econômico das mulheres?
GLADYS ACOSTA: Nos últimos três anos, estudos ilustraram profundamente sobre o impacto que este tema tem na agenda de gênero, e foi possível visualizar, por exemplo, que a proteção social que as mulheres recebem ainda não é suficiente para torná-las atoras econômicas de pleno direito. Elas estudam mais, havendo inclusive uma feminização das universidades, e estão melhor preparadas do que os homens. O mercado de trabalho, contudo, continua sem absorvê-las adequadamente, e sua presença no setor formal, onde há direitos trabalhistas, é muito baixa. O grande êxito em educação, sem uma consequente inserção profissional, é como barrá-las na porta.
IPS: E por que não entram?
GA: Há um assunto fundamental. O uso do tempo, gerado pelo conceito da divisão sexual do trabalho: os homens cuidam do público e as mulheres do privado. Eles são provedores e elas cuidadoras. Persiste a noção de que as mulheres devem cuidar do que diz respeito à reprodução humana e da esfera do cuidado (de crianças, doentes e idosos), e recai sobre elas como trabalho não remunerado. A sociedade é beneficiada, em altíssimo grau, pelo trabalho não remunerado exercido pelas mulheres por serem mulheres. Isso pesa tanto em suas vidas que, na hora de trabalhar, sua grande preocupação é como compatibilizar trabalho e o cuidado da família. Além disso, o mercado profissional mudou muito, nunca houve tantas médicas e advogadas, por exemplo. Curiosamente, quando se feminiza uma profissão sua remuneração cai. Os padrões culturais continuam orientando a segmentação do estudo e da renda. Surge então outro problema muito interessante, das mulheres sem renda própria. Ao aprofundar a questão, se vê que são as cuidadoras por excelência as mais sobrecarregadas por essa tarefa não remunerada.
IPS: Como dar valor econômico a esse trabalho?
GA: É preciso monetarizar a tarefa de alguma forma para saber seu peso, mas não quer dizer que, se for dado um salário às mulheres, o problema acaba. Se algum dia chegarmos a dar um salário às cuidadoras e ficarmos nisso, seria muito negativo porque consolidaríamos uma desigualdade. Não queremos isso, mas um ato de justiça. As mulheres que passam sua vida cuidando dos outros precisam de um reconhecimento do Estado de que sua função merece apoio econômico. Devemos incentivar leis a respeito.
IPS: Como se traduziria esse reconhecimento?
GA: Em assistência social ou algum tipo de remuneração. Estão surgindo legislações, embora bastante imperfeitas. Mas, não importa, o importante é começar. Por exemplo, na Bolívia foi criada uma aposentadoria universal. As pessoas com 60 anos ou mais que nunca tiveram renda terão uma pensão. E se multiplicarão iniciativas semelhantes, porque esta deixou de ser uma discussão das mulheres para ser uma discussão dos Estados e das sociedades.
IPS: E como impulsionar a autonomia econômica e a inserção profissional?
GA: As mulheres devem ser trabalhadoras ao lado dos homens, sob o princípio de salário igual para trabalho igual, porque são capazes e objetivamente mais preparadas. Trata-se de dinamizar sua incorporação à economia, como cidadãs ativas, com direito ao trabalho e, paralelamente, a uma proteção quando se dedicam à maternidade ou ao cuidado. É preciso aumentar sua presença na área pública, especialmente na política, porque sem participação das mulheres em todas as esferas do poder, da mais local à chefia do Estado, não haverá mudanças. É preciso quebrar outro telhado de vidro, o da falta de conciliação entre trabalho e família. Não vencem um nível por causa da responsabilidade de cuidar da família e do padrão cultural que mantém o homem como o provedor principal e a renda feminina como complemento. E já não é mais assim. Em média, 30% das chefias familiares são femininas na região. Mulheres e homens já dividem a entrada de renda e vivemos uma transição civilizatória onde compartilharão muito mais as tarefas domésticas e elas estarão muito mais presentes na política e na economia. Mas é uma mudança lenta e tem inércia contrária, porque o status quo precedente anda para trás. Por isso, os Estados têm de assumir uma tarefa muito proativa e multiplicar ações positivas e romper a inércia da desigualdade.
IPS: E os Estados têm essa vontade?
GA: A vontade política é uma construção, depende de certas condições. Quanto mais democrática e aberta é uma sociedade, mais fácil é a mudança. A relação entre o Estado e a sociedade é primordial, porque, quando o Estado se torna autista e o governo se fecha e não permite a participação popular, tudo é dificultado. Devemos vigiar os vínculos do Estado com a sociedade e também com a esfera privada e com o mundo econômico, porque a política de emprego, por exemplo, depende da relação entre Estado e mercado.
IPS: Então, há razões para ser otimista?
GA: Absolutamente. Estamos em transição, de um modelo baseado em uma inflexível divisão sexual do trabalho para um novo pacto social, com regras mais iguais para homens e mulheres. Será apagada tal divisão porque chegam gerações masculinas mais sensíveis em temas como paternidade ou compartilhar tarefas. É uma mudança civilizatória e esta região avançando diante das novidades. A própria visão de gênero das mulheres agora está aberta aos homens. É algo que não se pode deter. Entramos em um novo trato e novos modelos, para beneficio de toda a sociedade, porque, quando melhoram direitos de setores discriminados, melhoram os direitos de todos. Agora, saímos de Brasília com a convicção de que é preciso acelerar o passo. IPS/Envolverde
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Crédito: Gentileza Unifem
Legenda: Gladys Acosta, chefe do Fundo das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) para a América Latina e o Caribe.
(IPS/Envolverde)