Questão de saúde pública

Debora Diniz e Marcelo Medeiros
Coordenadores da Pesquisa Nacional de Aborto e professores da Universidade de Brasília (UnB)

Uma em cada sete mulheres brasileiras já fez aborto. Imagine essa mulher como sendo sua mãe, sua filha, sua irmã, sua esposa, se não for você mesma. A mulher que aborta está entre nós, não é a outra descrita pela moral que criminaliza o aborto. Ela é casada, religiosa e tem filhos. É uma jovem mulher com a experiência da maternidade, que atualiza o sentido de “planejamento familiar” no próprio corpo e luta contra a opressão de uma lei penal que a ameaça de prisão por abortar ilegalmente. Metade das mulheres aborta com medicamentos e outra metade finaliza o aborto em hospitais. Não é à toa que todos nós conhecemos mulheres que já abortaram alguma vez durante sua vida reprodutiva. Elas são hoje mais de cinco milhões de mulheres.

A Pesquisa Nacional de Aborto rompe com alguns mitos sobre o aborto no Brasil. O primeiro deles é apresentar a mulher que aborta como uma mulher comum e não como alguém que recusa a essência do feminino. Ela nega a singularidade imposta pelo imaginário religioso que descreve o aborto como uma prática abominável. O caráter ordinário dessa mulher não está apenas em sua expressão estatística na população (22% das mulheres com 40 anos), mas em sua inserção familiar, religiosa e de classe. Ela é casada ou vive com seu companheiro. Vivencia o cuidado de uma criança não como uma teoria sobre a reprodução biológica e social defendida por homens que jamais experimentarão a paternidade, mas como uma condição de vida. Mulheres pobres e ricas igualmente abortam, o que exclui a ideia de que o aborto seria um capricho reprodutivo de mulheres mais abastadas.

Uma importante descoberta da pesquisa foi mostrar como as mulheres abortam. Quase a metade delas abortou com medicamentos, embora a pesquisa não tenha mostrado como e onde essas mulheres têm acesso aos medicamentos para aborto. O aborto medicamentoso é um dos métodos mais seguros em países onde a prática é legalizada. Não é possível dizer quais os medicamentos utilizados por essas mulheres, muito embora se possa conjeturar tratar-se do misoprostol, também conhecido pelo nome de fantasia Citotec.

Desde 2008, o misoprostol compõe a lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial de Saúde, exatamente para a realização do aborto seguro. No Brasil, ele é utilizado pelos serviços de saúde para o aborto legal, isto é, para os casos de aborto por estupro ou para salvar a vida da mulher. A pesquisa não mostrou, no entanto, como e onde essas mulheres têm acesso aos medicamentos para aborto.

Mesmo com a entrada do misoprostol no comércio das práticas ilegais abortivas, metade das mulheres precisou ser internada para finalizar o aborto. Essa informação não pode ser menosprezada dado o impacto para a saúde das mulheres e para a organização dos serviços de saúde no Brasil. Se há um conteúdo preciso para a afirmação de que “o aborto é uma questão de saúde pública” é a revelação de que uma em cada treze mulheres brasileiras foi internada para a finalização de um aborto. No Brasil, a saúde pública não se define apenas pelo caráter gratuito e universal de seus serviços, mas por um compromisso ético em proteger as necessidades de saúde das pessoas. É nesse contexto que o aborto legal e seguro precisa ser entendido pelas políticas públicas como uma proteção a uma necessidade de saúde exclusiva das mulheres em idade reprodutiva.

Nem todas as demandas por serviços de saúde são demandas legítimas, pois podem não resultar de necessidades de saúde. Algumas cirurgias cosméticas estão nessa fronteira tênue entre necessidades e escolhas: uma cirurgia de implante capilar para um homem com baixa autoestima em razão da calvície não seria uma necessidade, mas um gosto dispendioso. A magnitude do aborto no Brasil é um dado irrefutável sobre a demanda pelo aborto seguro como de proteção a uma necessidade básica para as mulheres: indiferente à lei penal, as mulheres abortam, põem suas vidas em risco e vivem sob a ameaça de prisão. Não estamos falando de poucas mulheres, mas de uma experiência compartilhada por uma em cada sete mulheres em idade reprodutiva.

As mulheres abortam e desafiam o Estado que as castiga moral e penalmente. Elas exigem o acolhimento de suas necessidades de saúde, nem que seja por um percurso perverso em que elas iniciam o aborto solitariamente e o finalizam nos hospitais. Em um momento em que as políticas públicas de saúde devem se pautar em evidências para definir suas prioridades de assistência, o aborto inseguro alcança o topo das urgências em saúde pública no Brasil.

 

artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 17/7/2010

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