Viviane Vaz – Correio Braziliense
Com 33 votos a favor, 27 contra e três abstenções, Senado aprova lei histórica. Presidenta comemora a decisão
Às 4h04 de ontem, sob um frio de 5°C e após 15 horas de debate, a Argentina tornou-se o primeiro país da América Latina a legalizar o casamento homossexual. Em meio a uma forte oposição da Igreja Católica, o Senado aprovou o casamento gay em uma votação apertada. Foram 33 votos a favor, 27 contra e três abstenções. Em Buenos Aires, ativistas gays e simpatizantes entoavam o hino argentino e gritavam: “Fizemos história!”. Em visita oficial à China, a presidenta Cristina Kirchner também comemorou a decisão e indicou que sancionará a nova lei. “A Argentina colocou-se em uma posição de vanguarda na discussão e na reivindicação dos direitos de toda a América”, destacou a presidenta.
Apesar das discussões acaloradas, o tema conseguiu unir senadores de diferentes partidos. “É um dia histórico, que se recordará como um fato positivo de um Congresso que decidiu avançar sobre a discriminação e dar direitos a quem não os tinha”, disse ontem Rubén Giustiniani, senador do bloco socialista. “A história é a conquista de direitos”, resumiu o senador Daniel Filmus, do partido oficialista. Também o líder do bloco da oposição radical, Gerardo Morales, ressaltou que era hora “de sancionar normas que se adaptem a novos modelos de vínculos familiares, diferentes dos que tínhamos há 30 ou 40 anos”.
Na América Latina, o Uruguai e a Cidade do México deram o primeiro passo, ao permitir a união civil entre homossexuais. No entanto, a lei argentina é a primeira a autorizar o casamento — que garante todos os direitos sobre patrimônio, procriação e sucessão. No ranking mundial, a Argentina é o 10º país a aprovar o matrimônio, depois de países europeus, do Canadá e da África do Sul (veja o mapa). “A aprovação dessa medida torna a Argentina um país muito mais justo e um exemplo para toda a América Latina”, disse à reportagem, por telefone, o advogado guatemalteco Fernando García, homossexual assumido.
Fernando, porém, lamenta que a discussão sobre a “igualdade” dos direitos matrimoniais não tenha avançado na Guatemala e em outros países da América Central. “Não se discute o tema aqui e, inclusive, houve projetos para proibir o casamento gay”, conta Fernando. Na Costa Rica, um grupo de católicos e evangélicos radicais também propõe um referendo a fim de vetar uma legislação que permita o casamento gay. “Estamos acudindo à Sala Constitucional e pedindo a instâncias internacionais de direitos humanos para evitar que se realize o referendo”, disse o jornalista costarriquenho e defensor dos direitos humanos Enrique Sanchez Víquez. O ativista colombiano Andrés Duque vive em Nova York e também luta pela legalização do casamento gay na América Latina. Para ele, a aprovação da lei na Argentina não significa que a discriminação acabou. No entanto, reconhece avanços legais para estender a proteção dos direitos.
No Brasil, a ex-prefeita de São Paulo, ex-ministra do Turismo e sexóloga Marta Suplicy parabenizou os parlamentares da Argentina “pela coragem e decisão” e a presidenta argentina “por seu depoimento que antecedeu a votação da lei, que ajudou bastante”. “A Argentina tomou a dianteira em todos os setores referentes ao respeito à sexualidade e aos direitos das pessoas, tanto é que Buenos Aires é considerada uma cidade gay friendly (amigável com os homossexuais)”, declarou a parlamentar ao Correio.
Apesar da boa recepção entre políticos brasileiros, a nova legislação no país vizinho, em um primeiro momento, pode provocar problemas para os casais gays argentinos que desejarem ingressar no Brasil. “Para um documento internacional ter validade no Brasil, é preciso que ele esteja dentro de parâmetros brasileiros, o que não ocorre com as uniões homoafetivas”, explica Suzana Viegas, professora de direito da Universidade de Brasília. “De início pode haver problemas em situações onde a certidão de casamento é um documento obrigatório, como para solicitar residência permanente ou para viajar com crianças, mas com o tempo as autoridades brasileiras devem se adaptar e a situação se normalizar”, conclui.
LUA DE MEL COMO PRESENTE
» A secretaria de Turismo da Cidade do México ofereceu ontem uma lua de mel gratuita ao primeiro casal gay que contrair matrimônio na Argentina. A oferta é “um reconhecimento à tolerância, mas também visa promover o turismo ‘gay friendly’ na Cidade do México”, disse o secretário de Turismo, Alejandro Rojas. Segundo ele, autoridades da capital mexicana ofereceram passagens aéreas ao primeiro casal gay argentino e procuram o patrocínio de hotéis e de restaurantes na Cidade do México e no resort de Cancún. “Cerca de 15% do turismo mundial —150 milhões de turistas por ano— é ‘gay friendly’ e os turistas gays são considerados respeitosos e generosos, gastando 47% mais que os turistas heterossexuais”, disse Rojas. O governo esquerdista da Cidade do México tem sido pioneiro em aprovar leis liberais nos últimos 13 anos, incluindo a descriminalização do aborto, em 2007.
Colaborou Rodrigo Craveiro
Brasil debate propostas desde 1995
Enquanto o debate sobre a união civil de pessoas do mesmo sexo corria acalorado na Argentina, no Brasil a situação não é a mesma. Por aqui ainda vale a tradição das mudanças lentas e graduais. Há mais de 15 anos tramitam propostas semelhantes à do país vizinho, mas que nunca chegaram a ser aprovadas. A mais recente — o Projeto de Lei 4914/09, de autoria de 12 deputados de partidos diferentes liderados por José Genoino (PT-SP) — deve ser votada no segundo semestre. De acordo com o texto, todos os direitos válidos em uniões estáveis heterossexuais se estendem a todos os casais formados por pessoas do mesmo sexo.
Para o principal autor do projeto, a previsão é que a proposta comece a ser analisada pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados apenas depois das eleições. “No período eleitoral esse tipo de discussão acaba sendo ‘contaminado’ por questões políticas, por isso esperaremos o fim do pleito para começar a debater a proposta”, afirma Genoino.
De acordo com o parlamentar, a legislação brasileira sobre os direitos dos homossexuais é antiquada. “No Brasil, temos um conservadorismo para falar desse tema. Nosso projeto pretende tratar essa questão sob o ponto de vista d
a segurança civil, para que essas pessoas tenham assegurados direitos como a herança, a aposentadoria, a repartição de bens e a compra de imóveis”, explica.
Tendência
Segundo Maria Berenice Dias, vice-presidenta do Instituto Brasileiro de Direito da Família, a adoção de leis favoráveis ao casamento gay em outros países pode contribuir para a aprovação da legislação brasileira. “Isso mostra uma tendência mundial, primeiro na Europa, em países como Portugal e Espanha; depois em lugares mais próximos, como a Argentina. É uma realidade que está se aproximando de nós”, afirma. Por sua vez, o presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis, defende que a população homossexual tenha assegurados mais direitos. “Perdemos o bonde da história, tínhamos a chance de nos tornar pioneiros em todo o mundo, mas acabamos ficando para trás”, conta, referindo-se ao projeto da então deputada Marta Suplicy (PT-SP) em 1995 — um dos primeiros desse tipo.
A proposta de Marta chegou a ser aprovada nas comissões e seguiu para a apreciação no plenário, mas jamais foi votada. “Nossa proposta era bem mais acanhada, se comparada com a aprovada na Argentina, mas foi uma das mais modernas da época. Hoje, vemos que o Judiciário avançou muito mais na questão do que o Legislativo”, diz Marta. “O Brasil, o primeiro a propor uma lei desse tipo, acabará se tornando um dos últimos a aprová-la”, alerta Genoino.