Por Fabiana Frayssinet, da IPSd
Rio de Janeiro, 12/7/2010 – Dizem que “mãe só tem uma”, mas no Brasil existem mais de 200 formas de maternidade, uma para cada uma das etnias do país. Promover a saúde materna sem passar por cima dessas características culturais é um desafio sanitário. Silvia Angelice de Almeida, técnica do Departamento de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), sabe disso por sua experiência como enfermeira. Para alguns povos, a placenta deve retornar à comunidade após o parto. Para outros, é importante que as pessoas nasçam e morram em sua terra.
Em certas aldeias existem cuidados especiais para as grávidas, como cortes de cabelo e pinturas. “Temos diretrizes gerais de saúde materno-infantil, mas vimos a necessidade de ter outras específicas para os povos indígenas”, disse Silvia à IPS. “Trata-se de “cuidados interculturais”, que incluem o respeito aos pajés e xamãs, às parteiras tradicionais e à medicina natural. “A ideia da gravidez é outra. O pessoal de campo tem que fazer um treinamento para poder trabalhar estas questões”, ressaltou.
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), no Brasil há 460 mil indígenas distribuídos em 215 grupos, que representam 0,25% da população nacional de mais de 193 milhões de pessoas. E pode haver entre cem mil e 190 mil nativos vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas, e outros ainda não contatados, estima a Funai. A população indígena registrada está distribuída em 24 Estados, 336 polos, 4.413 aldeias e 615 terras indígenas, que compreendem 107 milhões de hectares, 12,6% do território nacional. A maioria fica em pequenos municípios na selva amazônica.
As condições geográficas determinam muitas deficiências de infraestrutura e dificultam o acesso do pessoal de saúde, e do Estado em geral. Para Silvia, o objetivo é garantir “um sistema de saúde de qualidade em nível nacional”, mas isso não é tão fácil em regiões inacessíveis como a Amazônia. Os agentes sanitários podem passar uma vez por mês em cada aldeia, mas quem se encarrega da saúde das mães são as parteiras tradicionais ou os próprios parentes.
As diferenças também emergem em questões como a amamentação, estimulada pelo Estado. Em algumas etnias, as mães não podem dar seu primeiro leite ao recém-nascido e quem inicialmente amamenta é a avó. Por isso, explica Silvia, o programa de saúde materna indígena foi concebido com antropólogos, pajés, parteiras e chefes espirituais nativos. Cada etnia tem uma concepção de saúde integral que incorpora dimensões espirituais.
Diante de uma paciente indígena com febre, os médicos diagnosticaram uma inflamação e receitaram um remédio. Mas os pajés da aldeia trataram o problema com rituais, porque para eles a cura também é espiritual, contou Silvia. “Temos que trabalhar em conjunto, o pajé, a cura espiritual e nós, o lado físico”, acrescentou. Os indígenas nem sempre aceitam os métodos da medicina ocidental.
Quando uma agente de saúde, mesmo formada dentro da comunidade, detecta uma gravidez de risco, deve encaminhar a mulher a um hospital, o que em alguns casos exige transporte aéreo ou de barco. Para evitar o choque cultural, foram criadas casas de apoio próximo das aldeias, para onde, às vezes, se muda toda a família para não separá-la da mulher grávida. Quando a gestação não apresenta riscos, é estimulado o parto tradicional. Também são discutidos outros temas de saúde, como prevenção do colo de útero e de mama, aids, sífilis e inclusive questões de gênero como violência doméstica, às vezes ligada a problemas de alcoolismo.
A mortalidade materna brasileira passou de 140 mortes em cem mil nascidos vivos em 1990 para 75 em cada cem mil em 2007. Segundo a Funasa, a mortalidade infantil caiu 40% entre os indígenas desde 1999, como parte de um longo processo, que deve vencer barreiras culturais de um lado e de outro. Contudo, as mortes infantis por infecções digestivas e respiratórias são muito mais altas entre os nativos do que no restante da população.
Como muitas mulheres não aceitam que um médico as atenda, o departamento de saúde indígena aumentou o número de agentes femininas, que hoje são 30% do total. “Há coisas íntimas que as mulheres não se atrevem a falar com um homem e tampouco com uma parteira de sua aldeia, que pode ser sua sogra”, explicou Silvia. Uma pesquisa da Funasa mostra que 46% das grávidas indígenas têm sua primeira consulta médica nos três primeiros meses de gestação, 45% no segundo e quase 9% nos últimos três meses. A anemia afeta mais de 35% das nativas grávidas.
Porém, falta informação específica sobre a saúde destas mulheres, algo reclamado pelas Nações Unidas por ocasião do Dia Mundial da População, celebrado todo 11 de julho. O grupo feminista Curumim, do Estado de Pernambuco, tenta cobrir o que sua diretora, Paula Viana chama de “vazios” do sistema de saúde indígena. Sua iniciativa “Parteiras Tradicionais” busca proporcionar uma assistência segura e humanizada que respeite as diversidades. Desde 2000 treinou 1.150 parteiras e 892 profissionais de saúde em 14 Estados, com ajuda do Ministério da Saúde.
Paula critica o enfoque que prevalece na política de saúde indígena desde 1940, centrado no hospital, sem considerar as particularidades culturais. São registrados entre 32 mil e 34 mil nascimentos com parteiras tradicionais por ano, embora o número possa duplicar, informou, ressaltando que, mesmo assim, “as parteiras tradicionais ainda são muito discriminadas”. Sua iniciativa leva em conta também aspectos religiosos. “Fazemos com que as decisões das pacientes sejam respeitadas. Em algumas etnias, no momento em que sai a placenta o grupo reza. Se isso não interfere com o procedimento e pode ser incorporado sem dano à saúde, o respeitamos”, disse.
Em sua opinião, o Ministério da Saúde deveria estabelecer “diretrizes mais firmes” para o sistema de saúde indígena. Parte do pessoal médico e de enfermagem não respeita as culturas locais, apesar das orientações gerais que recebe. Para afinar essa política, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério, para hierarquizar as funções antes assumidas pela Funasa. O católico Conselho Missionário Indigenista tem dúvidas de que a nova proposta melhore a situação sanitária destes povos, entre outras razões porque “foram deixados fora das definições mais importantes”. IPS/Envolverde
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Crédito: Gentileza Edmar Chaperman/Funasa
Legenda: Mulher da etnia marubo controla sua pressão arterial.
(IPS/Envolverde)