As dificuldades atuais do relacionamento afetivo

Carlos Messa – Revista Psique

São heroicas as tentativas de manter um casamento satisfatório atualmente. Nem sempre esses valores são compatíveis ou ao menos consistentes com o modelo que, como um arquétipo, ainda define nosso horizonte relacional e parental. Sonhamos com a cultura francesa, mas copiamos a norte-americana. Fantasiamos a harmonia ainda utópica nas relações afetivo-sexuais e nestas, brigamos por uma igualdade pouco entendida. Oscilamos entre a fraternidade (romântica) francesa e a objetividade dos valores individuais da cultura norte-americana.

 

Liberdade, Igualdade e Fraternidade apresentam inúmeros pontos de dificuldade de compreensão, contradições e ambivalências mesmo nos âmbitos social e econômico. Quando adentramos à microssociedade (família), vemos que esses ideais estão ainda distantes.

Superficialmente nossa sociedade vive, sim, sob uma boa dose de liberdade, significativos avanços quanto à igualdade e uma imensa dúvida quanto ao significado, amplitude e real valor da fraternidade. Esse quadro colore, também, uma grande parte dos casamentos.

Liberdade
O casamento que conhecemos passou a ter a chancela legal do Estado por volta de 1750 na Europa e ganhou um grande impulso com os ideais da Revolução Francesa (1789). Ele esteve em vigor por cerca de 200 anos, período em que nós, individualmente, passamos a ter liberdade de escolher nosso par. O “amor” – a livre escolha – foi o ponto de partida das uniões afetivo-sexuais duradouras apenas depois de 1800 porque a liberdade individual, antes desse período, se fazia acontecer, em boa parte, após o casamento. Não é puro acaso a coincidência de datas entre o dístico da revolução francesa (Liberté, Egalité, Fraternité), e a liberdade da escolha do cônjuge. A liberdade se propagou com bastante rapidez estimulada pela revolução francesa e, a partir dela, os jovens foram aos poucos fazendo suas escolhas, possivelmente ainda dentro dos padrões paternos, mas já acobertadas pelo amor.

A escolha de um cônjuge sempre se fez por interesse e isso é visto em qualquer âmbito e época, desde os animais irracionais entre os quais a fêmea escolhe o macho pelos indicadores de que é capaz de produzir filhos sadios (fortes), passando pela futura esposa-padrão do século passado que escolhia para marido um homem bem-sucedido e, ainda hoje, quando a busca é por homens inteligentes, estáveis, maduros ou equilibrados. Da mesma forma, o homem sempre buscou uma mulher que pudesse ser “boa mãe”, mesmo que de maneira inconsciente. A diferença que ocorreu nos diversos momentos da história recente foi a alternância entre o interesse do indivíduo e o interesse de seus responsáveis. A elite econômica (e cultural) europeia, antes de 1800, estabelecia contratos quanto aos pares que se casariam com seus filhos, em função dos interesses familiares (predominantemente econômicos). Nesse período também na classe social mais elevada, o casamento acontecia cedo, ainda na adolescência, quando a dependência dos pais era praticamente total. A rebeldia adolescente só veio a acontecer recentemente, na época pós-industrial e com o advento da universalização da educação formal.

Naturalmente essa descrição é generalista já que cada cultura e cada família mantêm intramuros os seus costumes. No oriente, o costume de pais estabelecerem acordos para o casamento dos filhos foi comum até 1950 e ainda pode ser encontrado. No Brasil, no século XXI, nas capitais metropolitanas de melhor nível econômico e cultural, ainda há pais que impedem, dificultando a qualquer preço, o casamento de suas filhas adultas, graduadas no nível superior, com um pretendente não aprovado por eles.

Royal Collection, Windsor
O casamento passou a ter a chancela legal do Estado por volta de 1750 na Europa. Naquela época, o casamento era arranjado de acordo com interesses econômicos

Naturalmente, um casamento que se realizava por um acordo prévio de terceiros, com objetivos econômico-sociais estava propenso a não gerar intimidade, compromisso, parceria (ao menos inicialmente) e, por isso, a nova possibilidade de, com liberdadeamor, a felicidade estará garantida.
Pelos duzentos anos que se seguiram, as pessoas que puderam escolher seus cônjuges por amor acreditaram nessa possibilidade e a esmagadora maioria delas se desencantou logo cedo ou pouco mais tarde. O casamento enfrentou então sua grande crise, continua nessa crise há mais de 50 anos e vem sofrendo mudanças em todo esse período.

Na primeira metade do século passado surgiram sinais importantes de que tomávamos consciência desse engano. Em 1936, Wilhelm Reich publicou A Revolução Sexual que se insurgia contra alguns dos pilares do casamento, que nesse livro ele chamava de burguês. Depois disso, inúmeros livros, artigos, pesquisas e conversas em bares afirmavam que o casamento havia falido. Era uma afirmação bombástica que buscava causar impacto, porém com o tempo vemos que é apenas ridícula, pois não há como afirmar que a união de duas pessoas, uma de cada um dos sexos, está falida. O que havia de errado era a expectativa de que, com a liberdade conquistada, ao escolher o par por amor, a felicidade seria consequência obrigatória. Não é. O relacionamento de boa qualidade se constrói; a felicidade acontece mais frequentemente quando vamos buscá-la.

Perceber que escolhemos alguém por amor e que, apesar disso, nossos sonhos se derreteram tão rápido quanto a neve nos trópicos nos causa profundo impacto. O mais frequente é culpar o outro; há também somatizações variadas, dores no peito, acessos de ira, pânico, depressão, insônia além das eventuais infelizes tentativas de suicídio. Também é frequente o caminho mais fácil: trocar de parceiro. Neste caso, é alta a probabilidade de se encontrar diante do mesmo problema algum tempo depois.

Troca de papéis
A CPFL promoveu, em 2009, um Café Filosófico com o psicanalista Contardo Calligaris, que discorreu sobre a mudança dos papéis dos gêneros através do tempo. Ele fala que por muitas décadas o homem viveu fechado em seus ternos representando o papel do macho provedor. Estava muito à vontade com um modelo de relacionamento onde os homens desejam e as mulheres são desejadas. Só quando o desejo das mulheres entrou em cena é que o homem descobriu que, embaixo do seu terno, tinha um corpo desejável. Assista à palestra, na íntegra, pelo site www.cpflcultura.com.br. Procure por O corpo masculino ou A crise do macho.

Igualdade
A igualdade de direitos inscrita na Declaração Universal dos Direitos do Homem se replicou na Constituição de inúmeros países. Efetivamente ela ainda caminha claudicante já que o poder continua a atuar marginal (acima) das regras sociais, fazendo com que a igualdade exista, sim, porém seus limites sejam bem delineados (o que está se tornando mais visível a cada dia).
No âmbito do relacionamento afetivo, a igualdade acabou por penetrar nos papéis de cada membro do casal e praticamente implodi-los ainda no século passado e, hoje, mais do que nunca, confunde o relacionamento familiar. Pior: a igualdade de direitos bem como uma certa equalização de poderes é confundida frequentemente com a igualdade absoluta entre os gêneros. Não somos iguais fisicamente, intelectualmente nem emocionalmente. Talvez boa parte das diferenças se deva à formação, aos papéis sociais, etc., mas independentemente da causa, somos diferentes. No casamento antigo, essa diferença era aceita e isso era bom no aspecto do relacionamento afetivo, apesar de admitirmos hoje ser incorreto no aspecto social (domínio do homem sobre a mulher). A aceitação das diferenças individuais expandidas para os diferentes papéis, facilitava a aceitação do outro – seu par – (aceitação genuína e não a tolerância). A clara distribuição de atividades, direitos e poderes entre os papéis era internalizada pelos filhos em um modelo de sociedade, na qual eles viriam a se incorporar e nela interagir (sem essa internalização, hoje), sem um modelo, as crianças não definem limites para si, tornam-se adolescentes perdidos e adultos egocentrados, deprimidos ou ansiosos.

Intracasal, superficialmente, nos incomodamos desde o “terceiro turno” do trabalho feminino, que todos aceitam formalmente não ser adequado (não deveria ser feminino), passando pelo desconforto das tarefas que a mulher rejeita como suas (lavar louça, roupas etc.) e que alguns poucos homens assumem, quase nunca de bom grado.

 

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Até mesmo na cadeia dos animais irracionais, a fêmea escolhe o macho pelos indicadores de que ele é capaz de produzir filhos sadios. A escolha de um cônjuge sempre se fez por interesse, independentemente do âmbito e da época

 

Igualdade entre homens e mulheres?

Há incontáveis pontos onde o balanço contábil dessa igualdade não fecha:
A começar pelo já citado acima e mais discutido ponto: o terceiro turno de trabalho feminino;
A entrada da mulher no mercado de trabalho pode ser vista sob o ângulo da redução do nível de emprego em 50%. O resultado foi a queda dos salários. Poucas décadas atrás a boa educação formal era oferecida pelo Estado e os serviços de saúde públicos eram, no mínimo, aceitáveis. Hoje, o rendimento masculino não é suficiente para a manutenção de uma família de 4 pessoas (escolas particulares e seguro-saúde). O trabalho (rendimento) feminino tornou-se, então, indispensável. O sentimento entre os dois gêneros é de insatisfação;
O homem continua se sentindo responsável pelo sustento da família. A mulher também continua sentindo que o responsável pelo sustento da família é o homem. Dois exemplos:
A mulher que tem mais sucesso profissional que o marido, sente-se mal por “não estar sendo cuidada” por ele! Sente-se mal também ao pagar despesas de lazer (cinema, restaurante, viagens);
Algumas mulheres podem sentir que deveriam ficar com os filhos por alguns anos ao invés de retornar ao trabalho;
Entre a classe A assalariada há um novo conceito bastante interessante: a mulher considera que o básico do orçamento doméstico deve ser coberto pelo homem; a mulher supriria o adicional ou o supérfluo. Com isso restaria de seus ganhos um pouco para as suas coisas;
Muitos homens continuam a sentir que a mulher tem obrigações conjugais (sexo);
Muitas mulheres começam a cobrar que o marido cumpra suas obrigações conjugais (sexo);
Frequentemente ambos sentem-se cobrados, insuficientes e impotentes diante da realidade;
Negar-se ao outro deixa de ser apenas uma vingança, mas frequentemente reflete apenas um profundo desencanto;

 

De acordo com as regras fraternais, dentro do conceito de família, um apoia e defende o outro. Hoje, porém, ampliou-se o individualismo e o distanciamento afetivo, com a contabilização de quem tem crédito ou débito

Fraternidade
Trocamos a “guerra conjugal” pela guerra entre os gêneros. Se no antigo casamento havia a queixa feminina frequente ante as regalias masculinas (e podemos incluir aí o direito a eventuais escapadas sexuais), hoje a queixa é mútua, mas não contra o marido ou a esposa e, sim, contra o homem ou a mulher. Não nos sentimos mais “no mesmo barco”.
No casamento antigo, no qual os papéis estavam bem definidos pelo pai institucional, podíamos culpar o outro, o indivíduo, por não cumprir o seu papel. Hoje, não há definição de papéis, o que a princípio parece bom, mas nos sentimos sem rumo. Com isso, sequer podemos culpar a “outra parte” do relacionamento. Surge a angústia. Ficamos sós e não sabemos onde nos refugiar. Não há mais o porto-seguro. Não há mais aquele irmão que, apesar das brigas, continuaria sendo sempre o irmão.
Homens e mulheres mudaram. Mulheres expostas à concorrência do mercado de trabalho se tornaram mais agressivas, objetivas e lógicas. Descobrem o prazer do sexo-pelo-sexo (sem a afetividade). Muitas já percebem a armadilha da hipervalorização da beleza, que a torna condição sine qua non ou, pior, seu único atributo. Os homens se tornaram capazes de discriminar mais suas emoções, deixando de se sentirem apenas bem com sua capacidade de prover o lar, assumindo também que desejam ser queridos e que são também (pasmem), românticos. O lado B é que já se percebem sendo usados e reagem a isso. Já se torna evidente uma dificuldade em optar pelo casamento e, no limite, isso é disfarçado através do “morar junto”. Cresceu no final do século passado e se amplia rapidamente a atitude masculina de se negar sexualmente à mulher (inconcebível anteriormente). A decepção masculina com a mulher, rara e que ocorria quase apenas depois dos sessenta anos, surge cada vez mais cedo.
O conceito de comunhão universal de bens, no casamento, faliu apesar de ainda existir; a comunhão parcial, que define a equivalência dentro dos diferentes papéis e atividades dos dois gêneros em um casal, é automaticamente assumida pelo Estado nos casos de união informal.

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As mulheres expostas à concorrência do mercado de trabalho se tornaram mais agressivas, objetivas e lógicas e os homens se tornaram capazes de discriminar mais suas emoções

Por outro lado, é crescente o número das pessoas que valorizam suas emoções e estas apontam para a busca de um relacionamento que contenha alguns atributos do conceito de fraternidade: sentir-se relativo ao outro (pertinens); prazer em oferecer, contribuir, em fazer o outro feliz; sentir-se parte de um conjunto maior (família) o que implica que, ao fazer ao outro se faz também a si mesmo (proteção, felicidade, etc.). O pragmatismo obviamente lentifica esse movimento.
Não se justifica apoiar questões da natureza emocional do ser humano sobre nossas habilidades racionais já que somos mais que racionais; nossas emoções existem e não representam um conjunto de aspectos negativos ou prejudiciais à nossa natureza. Ao contrário, nos permitem, por exemplo, conviver com contradições e nos levam a superar nossa natureza animal, assumindo os aparentemente utópicos valores humanos. A formação de um casal e a reprodução são exemplos de utopias que só têm apoio no âmbito emocional já que desde a invenção da imprensa ou, mais precisamente, apenas cinquenta anos depois do surgimento dela, foi impresso o primeiro livro que citava a loucura que é casar e, mais ainda, ter filhos (O Elogio da Loucura, Erasmo de Rotterdan).
A melhor resposta às questões acima foi do poeta Vinícius de Morais que reconhece as emoções e, no Soneto do Amor Eterno, expõe nossa capacidade de conciliar uma contradição (no nível racional) e alcançar o equilíbrio na ambivalência (emocional):

(…que)
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja  imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

 

 

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