A longa sombra da escravidão doméstica

Hannah Rubenstein, da IPS

Nova York, 7/7/2010 (IPS/TerraViva) – Ayana acorda antes do sol surgir. Toma banho, se veste e sai de casa quando suas filhas ainda dormem. Pega um ônibus, depois um trem e um táxi. Uma hora depois chega a um luxuoso apartamento onde cuida de uma família em troca de um salário miserável. No trabalho, prepara o café da manhã para as crianças, prepara seus lanches e as arruma para a escola, limpa o apartamento, lava a roupa, pega as crianças, as leva para aulas de piano e futebol, volta ao apartamento, dá banho nelas e as veste, prepara o jantar, controla as lições escolares delas e lava os pratos.


O céu volta a ficar escuro 12 horas depois, quando Ayana entra no trem de volta. Ao chegar em casa, suas filhas já estão na cama. Dá um beijo de boa noite nelas e apaga as luzes. Durante a semana, Ayana passa mais de 50 horas cuidando de uma casa e de crianças que não são suas. Por seu trabalho, recebe um salário baixo, que ronda a linha de pobreza estabelecida em nível federal. Não recebe hora extra, nem tem folga, nem seguro-saúde. Não tem contrato de trabalho e, provavelmente, não recebe em dia.

Com seu mísero salário, deve manter um lar de quatro pessoas e enviar parte para sua família original, que vive em Trinidad e Tobago. E, novamente, voltará a atrasar o aluguel. A situação de Ayana não é a exceção à regra. Sua vida resume a de muitas empregadas domésticas nos Estados Unidos, a maioria delas imigrantes, de pele mais escura, exploradas em troca de baixos salários. Ela é a doméstica média, uma das cerca de 2,5 milhões que vivem e trabalham nos Estados Unidos.

Ayana é representativa da força de trabalho doméstica urbana, definida como qualquer pessoa empregada para trabalhar em uma casa particular por parte do chefe, ou chefes, de família. Entre elas, babás, acompanhantes de idosos, faxineiras e cozinheiras, em quantidade estimada entre 200 mil e 600 mil na cidade de Nova York, especulando-se que inclusive pode ser maior. Jill Shenker, principal organizadora da Aliança Nacional de Trabalhadoras Domésticas, disse à IPS/TerraViva que “uma das realidades desta força de trabalho em todo o mundo é que não é muito bem compreendida”.

Atualmente, não há dados completos sobre a situação em nível nacional, embora a Aliança pretenda lançar em 2011 uma pesquisa em todo o país para obter estatísticas a respeito. O que se sabe sobre as domésticas é que são obrigadas a trabalhar demais e receber pouco. Um informe de 2006, da organização Trabalhadoras de Casa Unidas que forneceu os dados mais concludentes sobre esta força de trabalho, entrevistou 547 empregadas domésticas de Nova York, procedentes de 42 países.

O estudo mostra que 99% das pessoas que fazem esse trabalho são estrangeiras, 95% mestiças e 93% mulheres. A maioria é da América Latina, Caribe e Filipinas. Não surpreende que o mercado do trabalho doméstico nos Estados Unidos tenha suas raízes na escravidão, pois após a abolição esta ocupação foi desempenhada predominantemente por mulheres de origem africana. Depois, nos anos 1970, o movimento pelos direitos civis expandiu as opções trabalhistas para as mulheres negras, e estas aumentaram as filas dos trabalhos domésticos, buscando fugir da pobreza reinante em seus lugares de origem.

Devido à sua tensa história, o trabalho doméstico – como o rural, outra ocupação típica de escravos nos Estados Unidos – nunca esteve sujeito a nenhuma proteção legal. Estas empregadas são excluídas da Lei Nacional de Relações Trabalhistas, Lei de Padrões Trabalhistas Justos, Lei de Segurança e Saúde Ocupacional, Lei de Direitos Civis, Lei de Norte-Americanos com Deficiências, e Lei de Discriminação por Idade no Emprego. Organizações como Trabalhadoras de Casa Unidas e a rede que integram, a Aliança Nacional de Trabalhadoras Domésticas, lutam por uma mudança.

Em 1° de junho, o Senado do Estado de Nova York foi o primeiro no país a aprovar um projeto de lei de Direitos das Trabalhadoras Domésticas, com 33 votos contra 28. A lei garante proteção no local de trabalho e padrões básicos para as domésticas, vencendo a oposição dos legisladores, que defendiam que seu eleitorado não podia se dar ao luxo de pagar hora extra e indenizações por demissão. A Assembleia do mesmo Estado aprovou medida semelhante no ano passado. Uma vez fundidos os dois textos, o governador David Paterson sancionará a lei, como já anunciou.

Em outros Estados, como na Califórnia ou no Colorado, organizações de defesa dos direitos deste setor fazem campanha pela aprovação de legislações semelhantes. Shenker disse que a medida mais benéfica seria uma legislação federal nesse sentido. Sob o projeto de lei de Direito das Trabalhadoras Domésticas, que muitos ativistas esperam que crie o precedente para a lei federal, Ayana receberá como extra o tempo que exceder as 40 horas semanais. Também terá um dia de folga por semana, poderá desfrutar de férias pagas e faltar por doença, além de ter direito a indenização em caso de demissão e proteção contra a discriminação no trabalho, entre outros benefícios.

* Este artigo foi publicado originalmente por IPS/TerraViva com apoio do Unifem e do Dutch MDG3 Fund.

(IPS/Envolverde)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *