Por Marcela Valente, da IPS
Buenos Aires, 21/6/2010 – A Argentina foi o primeiro país no mundo a ter uma lei de cotas para promover a participação da mulher nos poderes públicos colegiados. Quase 20 anos depois, a lei que inspirou o restante da América Latina ainda encontra resistência em uma província.
Trata-se de Jujuy, na fronteira com Chile e Bolívia, considerada um reduto conservador e machista por integrantes de movimentos femininos e sociais.
“Jujuy é uma província onde a construção do poder tem características quase feudais, com caudilhos fortes e muito conservadores”, disse à IPS María Inês Zigarán, professora de jornalismo e membro do movimento provincial de mulheres.
“E não é por acaso que não temos lei de cota feminina. É uma província hostil e resistente à promoção dos novos direitos incorporados à Constituição na reforma de 1994”, acrescentou referindo-se aos direitos das mulheres ou indígenas.
Na Argentina, a lei de cotas para a participação política da mulher estabelece um mínimo de 30% de candidatas para cargos eletivos colegiados. Quando foi aprovada, em 1991, o Congresso contava com 5% de mulheres na Câmara de Deputados e 4% no Senado.
Atualmente, 38% da câmara baixa e 36% da alta são de mulheres. Leis com o mesmo espírito foram sendo aprovadas nas 24 províncias do país, menos em Jujuy.
Porém, essa resistência mostra rachaduras e este mês colocou em confronto os poderes Legislativo e Judicial de Jujuy, em uma crise cujo final é imprevisível.
Um grupo de mulheres apresentou, em 2009, um recurso de amparo junto à justiça da província para obrigar os poderes públicos a adotarem leis favoráveis a uma participação política igualitária.
Em maio, o Tribunal Contencioso Administrativo de Jujuy acolheu o recurso e condenou os poderes Executivo e Legislativo a “cumprir o mandato constitucional” expresso no artigo 37 da reformada carta magna.
Os três juízes do tribunal deram prazo de três meses para os legisladores aprovarem a lei, “sob pena de sofrerem sanções” não especificadas.
O artigo 37 determina que “a igualdade real de oportunidades entre homens e mulheres para o acesso a cargos eletivos e partidários se garantirá por ações positivas na regulação dos partidos políticos e no regime eleitoral”.
O promotor provincial de Jujuy, Alberto Matuk, e um grupo de legisladores reagiram duramente. “Os juízes se excederam em suas funções e vamos apelar ao Tribunal Superior de Justiça da província”, disse à IPS.
“Não podem ordenar que se aprove uma lei que fixa cota de 50%”, protestou o promotor, cargo que, nas províncias, tem seu ocupante indicado pelo governador. Na realidade, a sentença não fala em porcentagens e apenas exige que se cumpra o mandato constitucional mediante uma ação positiva a favor da igualdade de gênero.
Matuk defendeu a negativa do Legislativo em estabelecer cotas porque o parlamento provincial já conta com 15 deputadas, mais de 30% de seus 48 membros. E disse que este ano “a lei de cotas será examinada”, quando o parlamento ainda nada falou a esse respeito.
Além das porcentagens atuais, as mulheres querem uma lei que garanta sua participação e que seja aplicável nos 16 departamentos e 61 municípios em que se divide Jujuy. “No norte da província, são 39 comissões municipais e 34 não têm nenhuma mulher”, disse à IPS Alicia Chabale.
Chabale, advogada do grupo que entrou com o pedido de amparo, concorda que Jujuy é uma província “absolutamente machista” onde as mulheres que conseguem participar da política são qualificadas pelos dirigentes como “ingovernáveis”.
“O poder aqui é manejado por eles, sobretudo pelo (governante) Partido Justicialista, que tem uma mesa pequena de três dirigentes que decidem como repartir os cargos. E, claro, têm muitos compromissos com muita gente”, afirmou a advogada.
O parlamento provincial, dominado pelo justicialismo (peronismo) foi além da rejeição à sentença. Doze legisladores pediram, no dia 8, o “jury” (votação de aprovação) de um julgamento político dos três magistrados por “atuações incompatíveis com suas funções”.
O bloco justicialista, como a promotoria, considera que os juizes “invadiram a jurisdição” do Legislativo ao ordenarem a aprovação de uma lei com a ameaça de punir os deputados.
Entretanto, as pressões contra o jury começaram a receber golpes do restante da Argentina, e não será fácil para os deputados de Jujuy processarem os magistrados por uma sentença contrária às suas posições e não por uma conduta pessoal imprópria.
Cinco organizações não governamentais de prestígio, entre elas a Equipe Latino-Americana de Justiça e Gênero (Ela), divulgaram um pronunciamento contra o pedido de jury, ao qual já se somaram dezenas de personalidades e associações de juízes e advogados, entre outras.
O documento afirma que o poder político de Jujuy pretende “invadir a área de atuação do Poder Judicial” por determinar que a Constituição seja cumprida.
“O problema é gravíssimo porque vai além do conteúdo da sentença, se o parlamento não concorda o que deve fazer é apelar, não perseguir os juizes”, disse à IPS Natalia Gherardi, diretora-executiva da Ela, que assessorou as organizações de Jujuy em seu pedido de amparo.
“Uma coisa é ir ao Tribunal Superior de Justiça e outra, muito diferente, é ameaçar os juizes com julgamento político por não concordarem com uma sentença”, ressaltou.
A professora Zigarán considerou que a crise evidencia a posição dos legisladores contra a cota. “Há dez anos que a reclamamos, a cada ano são apresentados projetos e sempre ficam na gaveta”, disse.
Acrescentou que, apesar de o machismo ser transversal em todos os partidos políticos em Jujuy, concentram-se no justicialismo as forças mais reacionárias à histórica posição argentina a favor da participação feminina na política.
Eva Duarte (1919-1952), a segunda mulher do fundador do partido e três vezes presidente Juan Domingo Perón, foi a líder mais carismática da história argentina. A atual presidente, Cristina Fernández, também é peronista.
Jujuy é uma das províncias com maior índice de mortalidade materna por abortos sépticos e de crime contra a integridade sexual em todo o país.
Para Zigarán, o tribunal questionado tem antecedentes independentes e progressistas. “Com o jury, o que buscam é castigar os juízes, domesticá-los para que nunca mais emitam uma sentença independente”, alertou. IPS/Envolverde
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Crédito: Cortesia de Cecilia Sandoval
Legenda: Manifestantes em San Salvador de Jujuy reivindicam lei de cotas.
(IPS/Envolverde)