Uma Esquerda Invertebrada – a Herança Desperdiçada da Itália

Perry Anderson

A esquerda italiana foi em tempos o maior e mais impressionante movimento popular para a mudança social na Europa Ocidental. Compreendendo dois partidos de massas, cada um com a sua própria história e cultura e cada um comprometido não em melhorar mas em superar o capitalismo, a aliança do pós guerra entre Socialistas e Comunistas, PSI e PCI, não sobreviveu ao crescimento explosivo dos anos 50. Em 1963, Pietro Nenni levou os Socialistas para o governo pela primeira vez como associados juniores dos Democratas Cristãos, por um caminho que levaria por fim a Bettino Craxi, deixando o Comunismo italiano no comando indisputado da oposição ao regime Democrata Cristão. Desde o início o PCI tinha sido organizativa e ideologicamente o mais forte dos dois, com uma mais ampla base de massas – mais de dois milhões de membros em meados dos anos 50 – indo de camponeses no Sul, a artesãos e professores no meio do país, a trabalhadores industriais no Norte. Tinha também uma herança intelectual mais rica, nos Cadernos da Prisão de Gramsci recentemente publicados, cujo significado foi imediatamente reconhecido bem para além do partido. No seu auge, o PCI pôde atrair uma extraordinária variedade de energias sociais e morais, combinando raízes populares mais profundas e uma influência intelectual mais ampla do que qualquer outra força no país.

Confinado pela Guerra Fria a quarenta anos de oposição nacional, o partido entrincheirou se em administrações regionais locais e mais tarde em regionais e nas comissões parlamentares pelas quais a legislação italiana tem de passar, entrelaçando se com a ordem dominante em muitos níveis secundários. Mas a sua estratégia subjacente permaneceu mais ou menos estável até ao fim. Depois de 1948 os despojos da Libertação foram divididos. O poder caiu para a DC; a cultura para o PCI. A Democracia Cristã controlou as alavancas do estado, o Comunismo atraiu os talentos da sociedade civil. A capacidade do PCI de polarizar a vida intelectual italiana em sua volta, não só num amplo arco de eruditos, escritores, pensadores e artistas mas num clima geral da opinião progressista, não teve paralelo em mais nenhum lugar da Europa. Graças em parte à sociologia da sua liderança, que diferentemente da dos Partidos Comunistas franceses, alemães, britânicos ou espanhóis, era na sua maioria altamente instruída, e em parte a um manejo relativamente tolerante e flexível da ‘luta de ideias’, o seu domínio nesta esfera foi o activo realmente distintivo do Comunismo italiano. Mas com um preço duplo em relação ao qual o partido permaneceu persistentemente cego.

Já que a extensão da influência do PCI através do mundo do pensamento e da arte era também uma função do grau com o qual ele assimilou e reproduziu a tensão dominante numa cultura italiana pré existente desde há muito. Este era o idealismo que encontrara a sua mais poderosa expressão, mas de forma nenhuma a expressão moderna única, na filosofia de Benedetto Croce, figura que ao longo dos anos adquirira uma posição quase do tipo da de Goethe na vida intelectual do país. Foi o sistema historicista de Croce, com um prestígio subscrito pela atenção que lhe foi dada na prisão por Gramsci, que ficou naturalizado como o éter circum ambiente de muita da cultura italiana do pós guerra à qual o PCI, directa ou indirectamente, presidiu. Mas por trás dele residem tradições muito mais antigas que concederam preeminência ao reino das ideias, concebidas como vontade ou compreensão, na política. Entre a queda do Império Romano e a conclusão do Risorgimento, a Itália nunca conheceu um estado ou uma aristocracia peninsulares e a maior parte do tempo esteve sujeita a um leque de poderes estrangeiros em conflito. O resultado, por longos períodos, foi a criação duma esmagadora sensação de fosso entre a glória passada e a desgraça presente no meio das suas elites instruídas. De Dante para cá, desenvolveu se aí uma tradição de intelectuais com um forte sentido de vocação para recuperar e transmitir a cultura elevada da antiguidade clássica e embebidos da convicção de que o país podia ser endireitado apenas pelo cunho de ideias revivificadoras, das quais só eles poderiam ser os artífices, nas realidades em que caíram. A cultura não era uma esfera distinta do poder: haveria de ser o passaporte para ela.

Em boa medida, o Comunismo italiano herdou este hábito da mente. A nova forma que deu a uma predisposição nacional, se não fiel a Gramsci, foi retirada dele. Nesta versão, ‘hegemonia’ era uma ascendência cultural e moral a ser ganha consensualmente dentro da sociedade civil, como a fundação real da existência social que poderia assegurar por fim a posse pacífica do estado, uma expressão mais externa e superficial da vida colectiva. Nesta visão, a posição de comando que o partido tinha ganho na arena intelectual mostrava que estava no rumo para a vitória política final. Isto não era aquilo em que Gramsci acreditara. Revolucionário da Terceira Internacional, nunca pensara que o capital pudesse ser quebrado sem a força das armas, por mais importante que fosse a necessidade de ganhar o consentimento popular para o derrube da ordem dominante. Mas isto ajustava se ao molde idealista da cultura em geral. Dentro da própria esfera intelectual, para além disso, o PCI reproduziu o viés humanista das elites tradicionais para quem a filosofia, a história e a literatura sempre tinham sido campos de eleição. Ausentes do portfolio do partido estavam as disciplinas mais modernas da economia e da sociologia e os métodos que tentaram pedir emprestados, para melhor ou pior, às ciências naturais. Por formidáveis que as suas posições parecessem do auge duma hierarquia cultural consagrada, eram mais fracas cá em baixo, com sérias consequências em devido tempo.

Porque quando as duas grandes mudanças que alterariam a ecologia do PCI na Itália do pós guerra atingem o partido, ele estava bastante impreparado. A primeira foi a chegada duma cultura de massas completamente comercializada, duma espécie ainda inimaginável no mundo de Togliatti, quanto mais de Gramsci. Mesmo no seu apogeu, tinha havido certos limites óbvios à influência do PCI e, mais geralmente, da esquerda italiana na cena cultural, uma vez que a Igreja ocupava um tão grande espaço na crença popular e na imaginação. Abaixo do nível das universidades, editores, estúdios ou jornais nos quais os movimentos do partido eram tão comuns e distintos dos baluartes da ordem estabelecida burguesa liberal na imprensa, um matagal de revistas conformistas ou espectáculos talhados para os gostos meio sérios ou incultos dos eleitores da DC sempre houvera florescido. Dos seus posicionamentos de vantagem na cultura de elite, o PCI podia ver este universo com uma condescendência tolerante, como expressões do legado dum passado clerical cuja importância Gramsci há muito vincara. Não era ameaçado por ele.

O influxo duma cultura de massas completamente secular, totalmente Americanizada, foi outra questão. Apanhados impreparados, o aparelho do partido e os intelectuais que se tinham formado em volta dele foram atirados para o lado. Embora um compromisso crítico com revistas populares não faltasse em Itália – Umberto Eco foi pioneiro – o PCI não conseguiu estabelecer a ligação. Nenhuma dialéctica criativa, capaz de resistir às ventanias do novo transformando as relações entre sério e popular, se materializou. O caso do cinema, em que a Itália tinha primado sobretudo depois da guerra, pode ser tomado como simbólico. Não houve revezamento da geração de grandes realizadores – Rossellini, Visconti, Antonioni – que se tinham iniciado nos anos 40 ou no princípio dos 50 e cujos últimos trabalhos importantes se agrupam no início dos 60. Em falta a partir daí esteve qualquer cruzamento combustível entre vanguardismo e formas populares que se comparasse com Godard em França ou com Fassbinder na Alemanha; mais tarde, apenas
a bebida fraca que foi Nanni Moretti. O resultado foi um fosso tão grande entre a sensibilidade instruída e popular que o país foi deixado mais ou menos indefeso face à contra revolução cultural do império televisivo de Berlusconi, saturando o imaginário popular com a vaga duma maré dos mais crassos idiotismo e fantasias – lixarada tão baixa que o próprio termo seria demasiado simpático. Incapaz de confrontar ou de inverter a mudança, durante uma década o PCI procurou resistir lhe. O verdadeiro último líder do partido, Enrico Berlinguer, personificou o desprezo austero da auto indulgência e o infantilismo do novo universo de consumo cultural e material. Depois de ele partir, da recusa inflexível à capitulação efusiva foi um curto passo – vindo Walter Veltroni a parecer se com um cromo resplandecente saído dos álbuns dos meninos de escola cujo nome fez ao distribuí los com exemplares do Unità quando se tornou editor do jornal. Se o idealismo do PCI o impediu de agarrar as pulsões materiais do mercado e dos meios de comunicação que transformaram o lazer na Itália, a mesma falta de antenas económicas ou sociológicas impediu o de descobrir mudanças não menos decisivas no local de trabalho. Já no virar dos anos 60 lhes prestava menos atenção do que ao recrutamento de jovens radicais que continuariam a produzir o fenómeno peculiarmente italiano do operaismo, uma das mais estranhas aventuras intelectuais da esquerda europeia desse período [*]. Diferentemente do PCI, o PSI do pós guerra tinha possuído pelo menos uma figura principal, Rodolfo Morandi, cujo Marxismo era dum molde menos idealista, que se concentrou nas estruturas da indústria italiana, da qual foi autor de um estudo famoso. Dentro da geração seguinte encontrou em Raniero Panzieri um sucessor dotado, um militante do PSI que, tendo se deslocado para Turim, começou a investigar a condição de trabalhadores fabris nas fábricas da Fiat, reunindo em volta da sua empresa um grupo de intelectuais mais jovens, muitos (Antonio Negri entre eles) mas não todos a partir originalmente de organizações juvenis Socialistas. Durante a próxima década, o operaismo evolui para uma força proteica, lançando uma sucessão de jornais seminais, ainda que de vida curta – Quaderni rossi, Classe operaia, Gatto selvaggio, Contropiano – explorando as transformações do trabalho e do capital industrial na Itália contemporânea. O PCI não tinha nada de comparável para mostrar e prestou escassa atenção a esta ebulição, embora nesta fase o mais influente dos novos teorizadores fosse um jovem das suas próprias fileiras de Roma, Mario Tronti. Este era um meio cuja cultura era essencialmente alheia ao partido, de facto declaradamente hostil a Gramsci, acusado de espiritualismo e populismo.

O impacto do operaismo vinha não apenas das interrogações ou das ideias dos seus pensadores, mas da sua conexão com a revolta de novos contingentes das classes trabalhadoras: imigrantes jovens do Sul, em revolta contra salários baixos e condições opressivas nas fábricas do Norte – para não falar dos sindicatos liderados por comunistas desconcertados pelas erupções espontâneas de militância ou pelas formas inesperadas de luta. Ter antecipado esta turbulência deu ao operaismo um poderoso vento contrário intelectual. Mas também o fixou no momento do seu discernimento original, levando a uma romanticização da revolta proletária como um fluxo mais ou menos contínuo de lava vindo do chão da fábrica. Em meados dos 70, conscientes de que a indústria italiana se modificava mais uma vez e de que a militância das oficinas estava em declínio, Negri e os outros recorreriam à figura do ‘trabalho social’ em geral – virtualmente qualquer um, empregado ou desempregado pelo capital, onde quer que fosse – como portador da revolução imanente. A abstracção desta noção foi um sinal do desespero e a política apocalíptica que o acompanhou levou esta ala do operaismo a um beco sem saída nos finais dos 70. O PCI, contudo, depois de falhar a mutação dos 60, não tinha aprendido com isso e não ofereceu nada de melhor através duma sociologia industrial. Portanto foi isso que, quando a economia italiana sofreu modificações novas e críticas nos anos 80, com o surgimento de pequenas firmas de exportação e duma economia negra – o ‘segundo milagre italiano’, como foi esperançosamente referido naquele tempo – o partido estava impreparado de novo e desta vez o golpe na sua posição como representante político do trabalhador colectivo revelou se fatal. Vinte anos depois, tal como o triunfo de Forza Italia dramatizaria a sua falha em reagir a tempo de intervir na massificação da cultura popular, assim as vitórias da Liga do Norte revelariam a sua incapacidade em responder a tempo à fragmentação do trabalho pós moderno.

Esses foram défices duma mentalité com fontes mais profundas do que o Marxismo do partido, um sentido clássico de valores intelectuais que, com todas as suas limitações, era à sua própria maneira raramente menos que honroso e muitas vezes admirável. Houve outro lado e um lado mais danoso para o mesmo idealismo, contudo, específico do Comunismo italiano e pelo qual carregava uma responsabilidade política consciente. Foi um reflexo estratégico que nunca realmente se alterou da Libertação em diante e cujas pós convulsões continuam hoje. Quando Togliatti voltou de Moscovo para Salerno na Primavera de 1944, deixou bem claro ao seu partido que não podia haver nenhuma tentativa de fazer uma revolução socialista na Itália logo a seguir à expulsão da Wehrmacht, já previsível. A Resistência no Norte, na qual o PCI desempenhava um papel principal, podia complementar mas não substituir os exércitos anglo americanos no Sul como força principal para expulsar os Alemães do país e o Alto Comando Aliado é que ditaria as regras uma vez a paz restaurada. Depois de vinte anos de repressão e exílio, a tarefa do PCI era construir um partido de massas e desempenhar um papel central numa assembleia eleita para pôr a Itália numa nova base democrática.

Esta era uma leitura realista do equilíbrio de forças na península e da determinação de Washington e de Londres em não permitirem qualquer assalto à capital no seguimento da derrota alemã. Uma insurreição pós guerra não estava na agenda. Togliatti, contudo, foi muito além disto. Na Itália, a monarquia que ajudou a instalar o Fascismo e logo confortavelmente com ele coabitou, tinha desalojado Mussolini no Verão de 1943, receosa de soçobrar com ele depois dos Aliados aterrarem na Sicília. Depois de um breve intervalo, o rei fugiu com Badoglio, o conquistador da Etiópia, para o Sul, onde os Aliados os colocam no topo duma administração regional inalterada, enquanto no Norte os Alemães instalam Mussolini à cabeça dum regime fantoche em Salò. Quando a guerra acabou, a Itália não foi assim tratada como a Alemanha, como um poder derrotado, mas como um “co beligerante” punido. Uma vez que as tropas Aliadas se foram, um governo de coligação, compreendendo o Partito d’Azione liberal de esquerda, os Socialistas, Comunistas e Democratas Cristãos, enfrentou o legado do Fascismo e a monarquia que colaborara com ele. Os Democratas Cristãos, conscientes que os seus potenciais eleitores permaneciam leais à monarquia e reconhecendo que os seus apoios naturais no aparelho de estado tinham sido os instrumentos de rotina do Fascismo, estavam determinados em a prevenir algo comparável à des Nazificação alemã. Mas estavam em minoria no gabinete, onde a esquerda secular detinha mais postos.

Nesta conjuntura o PCI, em vez de pôr a DC na defensiva exigindo uma purga inflexível do estado – limpando todos os funcionários colaboracionistas seniores na burocracia, poder judiciário, exército e polícia – convidou a a encabeçar o governo e mal levantou um dedo para desmantelar o aparelho tradicional do poder de Mussolini. Ao invés de isolar a Democracia Cristã, Togliatti manobrou para pôr na chefia do governo o seu líder, de Gasperi, e depois

juntou se à DC – para indignação dos Socialistas – na confirmação do Tratado de Latrão que Mussolini selara com o Vaticano. Os prefeitos, juízes e polícias que tinham servido o Duce foram deixados virtualmente intocados. Ainda em 1960, 62 dos 64 prefeitos tinham sido serviçais do Fascismo e todos os 135 chefes de polícia do país o foram. Quanto a juízes e funcionários, os tribunais por reconstruir absolveram os torturadores do regime e condenaram os resistentes que tinham lutado contra eles, retrospectivamente declarando os combatentes da República Fascista de Salò beligerantes legítimos, e os da Resistência ilegítimos – os últimos sujeitos como tal a execução sumária depois de 1943, sem sanções penais depois de 1945 para os primeiros. Essas enormidades foram uma consequência directa das acções do PCI. Foi o próprio Togliatti que, enquanto ministro da justiça, promulgou em Junho de 1946 a amnistia que os tornou aptos. Um ano depois, o partido foi recompensado com uma ejecção do governo sem cerimónias por de Gasperi, que já não precisava disso.

A história da Itália do pós guerra ia assim ser inteiramente diferentemente da da Alemanha, onde não houve qualquer Resistência popular. O nazismo foi destruído tanto pelo extremo da derrota militar como pelo extermínio com as ocupações Aliadas subsequentes. Na República Federal, o Fascismo não pôde mais voltar a levantar a cabeça. Na Itália, em contraste, a Resistência deixou para a posteridade uma ideologia de anti fascismo – patriótico – cuja retórica oficial ubíqua, no que o PCI tomou a dianteira, cobriu as continuidades reais do Fascismo, quer como aparelho de leis e funcionários herdado, quer como credo abertamente proclamado e movimento. Reconstituído como MSI, o partido Fascista ia sentar se em breve novamente no Parlamento e acabar por ser recebido na ordem estabelecida sob o seu líder, Giorgio Almirante. Exaltando as leis anti semíticas de Mussolini, esta figura tinha dito aos seus compatriotas em 1938 que ‘o racismo é o mais amplo e valente reconhecimento de si que a Itália alguma vez tentou’ e em 1944, depois de Mussolini ter sido levado via aérea para o Norte pelos Alemães, que se não se alistassem como combatentes pela República de Salò seriam alvejados pelas costas. Quando Almirante morreu nos anos 80, a viúva de Togliatti esteve entre os que o choraram a sua morte no funeral. Hoje Gianfranco Fini, o seu herdeiro designado, é orador na Câmara de Deputados, e sucessor provável de Berlusconi como primeiro ministro.

Para além das repreensões óbvias a esta trajectória, o que há de mais condenável pela parte do PCI nisso é a sua futilidade auto destrutiva. Quando teve uma oportunidade de enfraquecer a Democracia Cristã mergulhando a espada de um anti fascismo intransigente nos seus flancos, cortando o dos eleitorados reaccionários que tinham sustentado o regime de Mussolini, fez precisamente o oposto, ajudando a DC a estabelecer se como a força dominante no país, ao passar uma esponja suavizante sobre a colaboração com o regime. Ao fazê lo simplesmente consolidou o bloco conservador sob comando clerical que o viria a deixar do lado de fora do poder até ao dia da sua morte. Neste fracasso, a conduta do partido não teve desculpas ao nível internacional. A revolução pode ter sido excluída na Itália do pós guerra, mas antes de 1946 os Aliados tinham basicamente deixado o país e não estavam em posição de deter uma purificação do Fascismo. A ingenuidade de Togliatti em ser tão completamente manobrado por de Gasperi com superioridade teve pouco a ver com influências externas. Enraizava se num conceito estratégico que tinha obtido de Gramsci, interpretado pela neblina de Croce e seus antepassados. A persecução do poder político, escrevera Gramsci, tinha requerido dois tipos de estratégia, cujos termos tomou da teoria militar, guerra de posição e guerra de manobra: guerra de trincheira ou de cerco, por oposição a assalto móvel. A Revolução Russa tinha exemplificado a segunda; uma revolução no Ocidente necessitaria da primeira, durante um período considerável, antes de passar por fim à última. Tal como diluíra a noção de hegemonia de Gramsci tão só no seu momento consensual, fixando a essencialmente na sociedade civil, também sob Togliatti o PCI reduziu o seu conceito de estratégia política a uma guerra de posição apenas, à aquisição lenta de influência na sociedade civil, como se nenhuma guerra de manobra – emboscada, carga súbita, rapidamente desviar o ataque para todo o terreno, apanhar de surpresa inimigos de classe ou o estado – fosse já necessária no Ocidente. Em 1946 47 de Gasperi e os seus colegas não cometeram o mesmo erro.

Por volta de 1948 o élan popular da Libertação quebrou se. O ataque da Guerra Fria trouxe a derrota eleitoral e foram precisos vinte anos até que outra onda de revolta política formasse crista na Itália. Quando chegou, a rebelião geracional do final dos 60, abraçando tanto estudantes como trabalhadores jovens, foi mais ao fundo e durou mais do que em qualquer outro sítio da Europa. Sob o sucessor de Togliatti, Luigi Longo, que tinha um pouco mais de lutador do que de diplomata, o PCI não reagiu tão negativamente à revolta juvenil como o PCF em França. Mas também não respondeu criativamente, não conseguindo ligar se a uma cultura de rua em que sério e popular – os clássicos do passado Marxista e Bolchevique, os graffitti de lata de spray do presente – durante um tempo interagiram dinamicamente, nem renovar o seu stock cada vez mais estacionário de conceitos estratégicos. Quando emergiu dentro do partido a oposição crítica à sua inércia sob a forma do grupo Manifesto – de aspecto mais genuinamente gramsciano e com uma inteligência política muito maior do que os operaisti fora dele – a liderança do PCI não perdeu tempo na sua expulsão.

A excomunhão veio a propósito da invasão soviética da Checoslováquia que o Manifesto condenou sem reservas. Aqui, a par do idealismo nativo da sua formação, reside a segunda razão para a paralisia estratégica perdurante do Comunismo italiano. Por mais flexível que fosse noutros aspectos, o PCI permanecia estalinista tanto nas suas estruturas internas como nos laços externos com o estado soviético. Desesperando com a ordem unipartidária duma Democracia Cristã entorpecida, os admiradores liberais do partido – dois quais haveria muitos ao longo dos anos – exprimiriam repetidamente admiração pela moderação interna sensata do PCI, mas exasperação por comprometer um registo, afora isso excelente, de conexões à URSS e às normas organizativas que se seguiram. Na realidade as duas estavam estruturalmente relacionadas. De Salerno em diante, a moderação do partido foi uma compensação pelas relações com Moscovo, não uma contradição com elas. Só porque podia ser sempre reprovado por um parentesco suspeito com a terra da Revolução de Outubro, tinha de se exceder a comprovar a inocência em relação a qualquer desejo de emular aquele modelo de mudança demasiado famoso. O peso duma culpa imputada e a busca duma respeitabilidade exoneradora andavam de mãos dadas. O mais abertamente direitista do partido, o aterrorizante Giorgio Amendola, que fazia avisos contra qualquer tolerância para com a revolta estudantil enquanto regularmente se refugiava na Bulgária para as férias com a família, personificou os mecanismos desta dualidade.

Incapaz de assumir ou desenvolver as revoltas dos finais dos 60 e princípios dos anos 70, o PCI virou se antes e uma vez mais para a Democracia Cristã, na esperança saudosa que a DC tivesse mudado os seus modos e estivesse agora preparada para colaborar com ele no governação do país – Catolicismo e Comunismo unindo se num ‘compromisso histórico’ para defender a democracia italiana dos perigos da subversão e das tentações do consumismo. Propondo este pacto em 1973, logo depois se se tornar o novo líder do partido, Berlinguer invocou o exemplo do Chile, onde Allende tinha acabado de ser

derrubado, como aviso duma guerra civil em risco de estourar, se a esquerda – Comunistas e Socialistas combinados – alguma vez tentasse governar o país com base numa mera maioria aritmética do eleitorado. Poucos argumentos poderiam ter sido mais obviamente especiosos. Não havia a menor perspectiva de guerra civil na Itália, onde mesmo erupções de violência como as que tinham ocorrido – a bomba colocada por terroristas direitistas na Piazza Fontana em Milão em 1969 fora o pior caso – tiveram pouca incidência na vida política do país no seu conjunto. Mas, uma vez que o PCI se movimentara para abraçar a DC, os grupos revolucionários à sua esquerda, saídos da rebelião juvenil, previram a emergência duma ordem estabelecida parlamentar monolítica, não tendo o governo oposição, e deslocaram se para a acção directa contra ele. Os primeiros ataques letais das Brigadas Vermelhas começaram no ano seguinte.

Mas o sistema político não estava em perigo. As eleições de 1976, em que o PCI se portou bem, foram perfeitamente tranquilas. Na sua sequência, a DC aceitou cortesmente o apoio comunista aos governos da assim chamada ‘solidariedade nacional’ sob Giulio Andreotti, sem alterar a sua política ou conceder qualquer ministério ao PCI. A legislação repressiva, restringindo liberdades civis de forma gratuita, teve uma escalada. Dois anos depois as Brigadas Vermelhas detiveram o líder mais influente da DC, Aldo Moro, em Roma, exigindo a entrega dos seus presos em troca de o libertarem. Durante os 55 dias do cativeiro, temendo ser abandonado pelo seu próprio partido, Moro escreveu cartas cada vez mais amargas aos seus colegas, colocando uma ameaça clara a Andreotti caso viesse a ser libertado. Nesta crise o PCI mais uma vez não mostrou nem humanidade nem senso comum, denunciando qualquer negociação para assegurar a entrega de Moro mais veementemente do que a própria liderança da DC que ficou compreensivelmente dilacerada.

Moro foi devidamente deixado ao seu destino. Se lhe tivessem permitido viver, o seu regresso teria certamente divido a Democracia Cristã e provavelmente terminado a carreira de Andreotti. O preço da sua salvação era desprezível. As Brigadas Vermelhas, pequeno grupo que em nenhum sentido objectivo era ameaça significativa à democracia italiana, dificilmente seria fortalecido pela libertação de uns poucos membros, que teriam ficado sob vigilância policial contínua mal saíssem da cadeia. A noção de que o prestígio do estado não sobreviveria a tal rendição ou de que milhares de novos terroristas teriam irrompido na sua sequência, não foi mais do que uma histeria interessada. Os Socialistas compreenderam isto e defenderam negociações. Plus royalistes que le roi 1, os Comunistas, na sua ansiedade em provar que eram os mais firmes dos bastiões do estado, sacrificaram uma vida e salvaram a sua nemesis 2 em vão. A DC não mostrou gratidão alguma. Depois de os usar, Andreotti – um mestre em sentido de oportunidade superior ao próprio de Gasperi – rebaixou os. Quando chegaram as eleições, em 1979, o PCI perdeu um milhão e meio de votos e foi novamente deixado de fora. O ‘compromisso histórico’ não lhe tinha rendido nada para além da desilusão dos seus eleitores e dum enfraquecimento da sua base. Quando Berlinguer no ano seguinte apelou aos funcionários da Fiat, ameaçados com despedimentos em massa, para ocuparem as suas fábricas, o apelo caiu em orelhas moucas. A última grande acção industrial na qual o partido alguma vez se ocuparia foi rapidamente esmagada.

Há cinco anos, reflectindo amargamente sobre a política do seu país, Giovanni Sartori fez notar que Gramsci tivera razão ao distinguir entre guerra de posição e guerra de manobra. Grandes líderes – Churchill ou de Gaulle – entenderam a necessidade de guerras da manobra. Em Itália, os políticos conheciam apenas guerras da posição. Ele próprio sempre achara que o título do livro famoso de Ortega y Gasset, España Invertebrada, seria ainda mais adequado na Itália em que a Contra Reforma tinha criado hábitos profundos de conformismo e invasões estrangeiras e conquistas contínuas tinham tornado os Italianos em especialistas em sobrevivência ao curvarem se até ao chão. Na falta de quaisquer elites de fibra, esta era uma nação sem um só osso no corpo. Sartori não falava ao acaso. Os destinatários eram a classe política que descreveu. Por esta altura o PCI desaparecera, Berlusconi estava no poder e os seus objectivos centrais eram claros: proteger sea si e ao seu império da lei. As medidas ad personam 3 para defender ambos, com adopção forçada no Parlamento, aterraram na secretária do presidente. A presidência italiana não é um posto puramente honorífico. O Quirinale não só nomeia o primeiro ministro, que tem de ser ratificado pelo Parlamento, como pode também reter a aprovação de ministros e recusar se a assinar a legislação. Em 2003 o beneficiado foi o antigo banqueiro central Carlo Azeglio Ciampi, um ornamento do centro esquerda que havia encabeçado o governo final da Primeira República, servido como ministro das finanças sob Prodi e que é hoje senador do Partido Democrático.

Imperturbavelmente, Ciampi assinou a legislação excepcional não só para consolidar a mão de Berlusconi na televisão, mas para lhe garantir imunidade processual – imunidade da qual o próprio Ciampi, como presidente, foi também beneficiário, ao apender a sua assinatura. Fora do Quirinale, apelos angustiados na rua, à luz de velas, pediram lhe que não o fizesse. Mas os herdeiros do Comunismo não apresentaram objecção alguma. De facto tinha sido das fileiras do próprio centro esquerda que o primeiro esboço de lei da imunidade tinha vindo. Se houve torcer de mãos na imprensa a propósito da lei, o presidente – supostamente super partes do ponto de vista constitucional e tratado com a devida reverência – não foi posto em questão. Só uma voz nacional significativa se levantou, não em lamento, mas com severidade contra Ciampi. Ela veio de Sartori, um liberal conservador, que publicamente perguntou a Ciampi se ele realmente existia, desdenhosamente alcunhando o de coelho pela sua covardia.

Nos dias de hoje é um antigo Comunista – Giorgio Napolitano – o líder da facção mais direitista do PCI depois da morte de Amendola – quem se senta no Quirinale. No momento em que foi eleito, a primeira lei de imunidade tinha sido derrubada pelo Tribunal Constitucional. Mas quando lhe deram uma nova embalagem – à moda de Lisboa, poder se ia dizer – e a substância da mesma lei foi aceite por votação novamente pela maioria de Berlusconi no Parlamento, o líder da bancada pós comunista no Senado, longe de se lhe opor, explicou que o Partido Democrático não tinha qualquer objecção de princípio, embora talvez devesse entrar em vigor apenas na legislatura seguinte. Napolitano não teve tempo para tais points d’honneur 4, assinando a passagem a lei no dia em que a recebeu. Mais uma vez, as únicas vozes a denunciar esta ignomínia foram liberais ou apolíticas, Sartori e um punhado de espíritos livres – imediatamente reprovados na imprensa não só de obediência Democrática, como da Rifondazione, por falta de respeito ao chefe de estado. Tal é a sinistra invertebrata 5 da Itália hoje.

Forças históricas poderosas – o fim da experiência soviética; a contracção ou desintegração da classe trabalhadora tradicional; o enfraquecimento do estado de bem estar; a expansão da videosfera; o declínio de partidos – pesaram muito na esquerda em todo o lado na Europa, não deixando ninguém em forma particularmente boa. A queda do Comunismo Italiano é nesse sentido uma parte duma história mais comprida, para além da censura. Contudo em mais nenhuma parte foi uma herança tão imponente assim completamente desperdiçada. O partido que de Gasperi e Andreotti superaram em esperteza, que não conseguiu purgar o Fascismo ou quebrar o clericalismo, era ainda uma força em expansão com notável vitalidade, qualquer que fosse a sua inocência estratégica. Os
seus descendentes conspiraram com Berlusconi, sem sombra qualquer de desculpa, totalmente conscientes de quem ele era e do que estavam a fazer. Há agora uma literatura abundante expondo Berlusconi, dentro e fora da Itália, inclusive pelo menos três estudos de primeira categoria em inglês. Mas é patente como muito disto se torna amaneirado quando toca no papel do centro esquerda em ajudá lo a limpar a folha e a entrincheirar se no poder. A cumplicidade dos seus presidentes em ofertas sucessivas para o pôr – e a si mesmos – acima da lei não é anomalia alguma, faz parte dum padrão coerente que viu os herdeiros do Comunismo italiano permitirem lhe conservar e estender o seu império de meios de comunicação, desafiando o que foi em tempos lei; não levantando um dedo para lidar com os seus conflitos do interesse; fazendo saltar da cadeia o seu braço direito e não poucos outros criminosos milionários; e repetidamente procurando fazer acordos eleitorais com ele, à custa de todos os princípios democráticos, para tirar benefício. No fim de tudo isto, ficaram não só de mãos tão vazias como os seus predecessores, como mais terminalmente vazios de mente e consciência.

O que acontecera pela sua parte à grande catedral da cultura de esquerda na Itália? Tinha começado a esmigalhar se muito antes, com as fundações minadas pela antiga fortaleza do próprio partido de massas. Como na Alemanha, a viragem à direita deu se inicialmente no campo da história, com uma reavaliação da ditadura entre guerras no país. O primeiro volume da biografia de Mussolini por Renzo de Felice, cobrindo o período até ao fim da Primeira Guerra Mundial, foi publicado em 1965. Mas só depois do quarto ter aparecido em 1974, cobrindo o período da Grande Depressão até à invasão da Etiópia – seguido um ano depois por uma entrevista com o tamanho dum livro com o neo conservador americano Michael Ledeen, posteriormente proeminente na questão Irão Contras – é que este enorme empreendimento teve um impacto importante na esfera pública, atraindo uma barragem de crítica à esquerda por ser uma reabilitação do Fascismo. No momento em que o seu quinto volume saiu, no início dos anos 80, de Felice tinha se tornado uma autoridade aceite, gozando de acesso imediato aos meios de comunicação – apareceria cada vez mais na televisão – encontrando um decrescente desafio dentro do país. Em breve estava a pedir o fim do anti fascismo como ideologia oficial na Itália. Em meados dos 90 explicava que o papel da Resistência no que foi de facto uma guerra civil no Norte, na qual as lealdades à República de Salò tinham sido subestimadas, tinha de ser desmistificado. O seu oitavo e último volume, incompleto à sua morte, saiu em 1997. No total, de Felice dedicou 6500 páginas à vida de Mussolini, mais do triplo da extensão da biografia de Hitler por Ian Kershaw e proporcionalmente mais longas até do que a vida autorizada de Churchill por Martin Gilbert: o maior monumento singular a um líder do século 20.

A escala da obra, mal escrita e muitas vezes arbitrariamente construída, não foi igualada nunca pela sua qualidade. A sua força reside na pesquisa infatigável em arquivos por de Felice e na sua insistência numas poucas verdades irrepreensíveis, principalmente em que os militantes do Fascismo como movimento tinham vindo na maior parte da classe média baixa, que o Fascismo como sistema atraiu o apoio de homens de negócios, de burocratas e das mais altas classes sociais em geral e que no seu apogeu o regime comandou um largo consenso popular. Estes achados, nenhum particularmente original, quedavam na companhia incoerente das afirmações de que o Fascismo brotara do Iluminismo, que não teve nada a ver com o Nazismo, que o seu colapso assistiu à morte da nação italiana, e não menos, de um retrato do próprio Mussolini com dimensões desesperadamente exageradas, indulgente, como um grande político realista- ainda que com falhas. Intelectualmente falando, de Felice teve pouco do equipamento conceptual ou da amplitude do interesse de Ernst Nolte, cujo primeiro livro tinha precedido o seu. Mas o seu impacto foi muito maior, não só por força do peso absoluto da sua erudição, ou até do facto – fundamental por muito que seja óbvio – de que na Alemanha o Fascismo tinha sido desacreditado de forma muito mais absoluta do que na Itália, mas também por no fim da sua carreira haver tão pouca vida na cultura oficial do pós guerra a que ele se tinha pretendido opor. Significativamente, as demolições mais radicais do seu edifício vieram de Denis Mack Smith em Inglaterra e não de qualquer historiador italiano.

Mas se não houve nenhum verdadeiro equivalente ao Historikerstreit na Itália, em que de Felice poderia sentir que tinha realizado a maior parte dos seus objectivos, houve também uma viragem à direita das energias intelectuais em geral com contornos menos nítidos do que na Alemanha. O sucessor principal a de Felice, Emilio Gentile, dedicou se a amplificar o tema familiar de que as políticas de massas do século 20 foram versões secularizadas da fé sobrenatural, dividindo as em marcas malignas – Comunismo, Nazismo, nacionalismo – incluindo de religiões ‘políticas’ fanáticas e formas mais aceitáveis, nomeadamente o patriotismo americano, que constituem religiões ‘civis’: totalitarismo versus democracia em roupagens sagradas. Isto é uma construção que ganhou mais seguimento nos EUA ou no Reino Unido do que na própria Itália. O mesmo, paradoxalmente, poderia dizer se dos últimos frutos à esquerda do operaismo. Aí, o espírito sóbrio da enquête ouvrière 6 tinha falecido com a morte prematura de Panzieri em meados dos 60, e com a impulsão de Tronti e do jovem crítico literário – então igualmente incendiário – Alberto Asor Rosa, a sua perspectiva sofreu duas voltas drásticas.

De Tronti veio a convicção de que a classe trabalhadora, longe de ter de suportar transformações económicas sucessivas às mãos da capital, era o seu demiurgo, impondo a empregadores e ao estado as mudanças estruturais de cada fase de acumulação. O segredo do desenvolvimento não residia nos requisitos económicos impessoais da rentabilidade vinda de cima, mas na pressão condutora da lutas de classes vinda de baixo. De Asor Rosa veio o argumento de que ‘a literatura comprometida’ era um delírio populista, dado que a classe trabalhadora nunca poderia esperar beneficiar com as artes ou as letras dum mundo moderno no qual a cultura como tal era, por definição, irremediavelmente burguesa. Não se seguiu nenhum filistinismo cru, nem tolstoyanismo pobre de espírito. Pelo contrário, era apenas o Alto Modernismo de Mann ou Proust, Kafka ou Svevo, e o vanguardismo radical até, mas não depois, de Brecht que contavam como literatura – mas enquanto testemunhos tantos, de incomparável invenção formal, das contradições internas da existência burguesa, não enquanto legado de uso algum para o mundo do trabalho. A divisória entre os dois não podia ser ligada até pelas melhores intenções revolucionárias de um Mayakovsky: era da sua constituição.

Para fazer boa literatura, o socialismo não foi essencial. Para fazer a revolução, os escritores não serão essenciais. A luta de classes toma um caminho diferente. Tem outras vozes para se exprimir, se fazer entender. E a poesia não pode estar por trás dela. Porque a poesia, quando é grande, fala numa língua na qual as coisas – as coisas difíceis de luta e da existência diárias – assumiram já o valor exclusivo de um símbolo, de uma metáfora gigantesca do mundo: e o preço, muitas vezes trágico, da sua grandeza é que o que diz escapa à prática, para não regressar mais a ela.

Quando isto foi escrito, o objectivo era a linha oficial do PCI, e por trás dela Gramsci, que tinha acreditado que o movimento comunista era o legítimo herdeiro da cultura europeia mais elevada, da Renascença, Reforma e Iluminismo em diante e que entre os problemas ele tinha de resolver na Itália estava a ausência duma literatura popular nacion

al. Mas como os motins do fim dos 60 se desenrolavam, primeiro Tronti e logo Asor Rosa decidiram que fazia mais sentido trabalhar dentro do PCI, onde se podia encontrar a classe trabalhadora organizada no fim de contas, do que fora dele. Ao dar este passo, Tronti transpôs a sua visão da primazia das lutas na fábrica às actividades do partido na sociedade, radicalizando a numa teoria da autonomia da produção da política. Mais jovem do que Asor Rosa ou Tronti, e o mais intelectualmente ambicioso do trio, Massimo Cacciari concluiu então o que eles tinham começado, não meramente separando cultura e economia da política revolucionária, mas propondo uma dissociação sistemática de todas as esferas da vida e do pensamento modernos umas das outras como outros tantos domínios técnicos, cada um intraduzível num outro. Em comum estava apenas a sua crise, igualmente visível na física, economia neoclássica, epistemologia canónica, política liberal do virar de século para não falar da divisão do trabalho, das operações do mercado e da organização do estado. Apenas o ‘pensamento negativo’ tinha sido capaz de agarrar a profundidade desta crise – Schopenhauer, Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger. O que Hegel tinha juntado, eles recusaram: síntese dialéctica de qualquer espécie.

O operaismo sempre fora anti historicista, ele era também anti humanista. Na Krisis de Cacciari (1976), encontrou agora inspiração na linha de pensadores niilistas, dos quais Nietzsche foi inicialmente o mais importante pela sua narrativa da vontade de poder, cuja encarnação contemporânea só podia ser o PCI. Mas não devia haver qualquer irracionalismo. O que a ‘cultura da crise’ exigia eram ordens e formas da racionalidade novas, específicas de cada prática. Assim ao guiar o partido em direcção aos seus objectivos, Weber e Schmitt – não Gramsci – foram os conselheiros indicados, cada um especialista em política como técnica lúcida, fria. Intelectualmente falando, uma rejeição mais meticulosa do Marxismo reverenciado no PCI, impregnado dum espírito hegeliano de síntese, seria difícil de imaginar. Mas, politicamente, a viragem nietzschiana do operaismo provou ser perfeitamente compatível com a linha oficial do partido no princípio dos anos 70. Porque o que poderia a vontade de poder querer dizer na Itália desse tempo? A resposta, argumentou Tronti, era clara: era a vocação do PCI para governar o país como o arquitecto duma aliança entre o trabalho organizado e o grande capital para modernizar a economia e a sociedade, de forma não diversa do New Deal na América, que ele sempre admirara – um pacto de salários e lucros contra o parasitismo das rendas.

O PCI, que sempre fora tolerante com as diferenças teóricas contanto que não ameaçassem com perturbação política, acomodou os defensores do pensamento negativo sem dificuldade – por esta altura não era já capaz de se comprometer criticamente com tais afloramentos exóticos de qualquer modo. Sensível ao prestígio de que estes viriam a gozar, na devida ocasião assegurou lhes honras na esfera política cuja autonomia tinham sustentado. Cacciari tornou se deputado do PCI antes de prosseguir fazendo carreira como prefeito de Veneza, onde está agora colocado; Tronti e Asor Rosa acabaram por ser feitos senadores. Inevitavelmente, o preço de tal integração num partido que tão conspicuamente falhou no terreno do poder em que eles o tinham nomeado, foi o desvanecer do operaismo como um paradigma coerente. Vinte anos depois, o PCI feito agora apenas memória, Asor Rosa comporia um melancólico balanço da esquerda italiana, ao qual ele e Tronti permaneceram fiéis à seu próprio estilo, enquanto Cacciari é hoje um ornamento da direita do Partido Democrático, combinando misticismo e tecnicismo – de forma nada desajustada para um admirador de Wittgenstein – numa política de outro modo muito semelhante à do New Labour. O legado intelectual do pensamento negativo foi pouco mais do que um culto árido de especialização e concomitante despoliticização, para quem veio depois.

Na encruzilhada do final dos 60, Negri seguiu na direcção contrária, defendendo não um compacto entre capital e trabalho organizado, para a modernidade, sob a égide do PCI, mas uma escalada no conflito entre trabalho não organizado – ou desempregado – e o estado, em direcção à luta armada e à guerra civil. Depois do esmagamento da Autonomia da qual tinha sido o teórico, e da sua detenção por um magistrado comunista por acusações fraudulentas de ter idealizado a morte de Moro, o exílio em França produziu uma corrente constante de publicações, a mais notável sobre Spinoza. Aqui se preparou a metamorfose do trabalhador não fabril do fim do século 20 da Autonomia Operaia na figura do século 17 da ‘multidão’ no Império, escrito com Michael Hardt, aparecendo nos Estados Unidos muito antes de se ver impresso em Itália. Desde que famoso, o impacto internacional de Negri foi mais vasto do que a sua influência nacional, embora exista um público seguidor mais jovem. O mesmo é verdade para Giorgio Agamben, uma chegada tardia à constelação, compartilhando muitos pontos de referência com Cacciari – Heidegger, Benjamin, Schmitt – mas com uma inflexão política, pô los à parte.

Vistas comparativamente, as semelhanças do operaismo com filamentos do gauchisme que floria em França na década de meados dos 60 a meados dos 70, são notáveis – ainda mais pela falta de qualquer contacto directo entre eles. Parece ter sido uma concordância objectiva que levou pensadores em volta do Socialisme ou barbarie quase pelo mesmo caminho dos em volta de Contropiano, dum obreirismo 7 radical a um subjectivismo anti fundacional – embora nos Negri ou Agamben mais tardios, com as suas dívidas a Deleuze ou Foucault, correntes franceses e italianas fluíssem directamente para dentro um do outro. O resultado contrastante das duas experiências deverá ser largamente explicado por diferenças na situação nacional. Em França o PCF não oferecia nenhuma tentação e a revolta de Maio Junho de 1968 foi tão breve quanto espectacular. Em Itália, onde a rebelião popular durou muito mais tempo, o comunismo era menos fechado e os pensadores eram significativamente mais jovens, a vida após a morte do operaismo permanece maior, se bem que confinada às margens.

A recuperação do Fascismo à direita, o eclipse do obreirismo à esquerda, mudaram o espaço do centro, no qual as versões seculares e clericais do juste milieu 8 têm tradicionalmente coexistido. Aí, paradoxalmente, o colapso da Democracia Cristã, terminando o domínio dum partido político abertamente Católico, em vez de diminuir o papel da religião na vida pública, redistribuiu o mais equilibradamente através do espectro político do que alguma vez no passado. Pois os votantes da DC não só muitas vezes se dividiram equilibradamente entre o centro direita e o centro esquerda, como também se revelaram o sector singular mais volátil do eleitorado, tornando os um ‘factor de oscilação’ ainda mais ansiosamente prezado pelos blocos em competição. Correndo atrás deles, antigos líderes do PCI, para não falar de ex radicais, caíram no fracasso ao explicar a sua sensibilidade religiosa privada, a assistência à missa desde tenra idade, a vocação espiritual oculta e outros requisitos de uma política pós secular. Com efeito, o que a Igreja perdeu com a passagem dum partido de massas de obediência estrita, ganhou com a difusão de uma influência, se porventura de temperatura mais branda, mais penetrante no conjunto da sociedade. Com isto houve uma descida a níveis da superstição não vistos há muitos anos: o fruto da ocupação por Wojtyla do trono papal, quando mais beatificações foram pronunciadas (798) e mais santos foram feitos (280) do que nos de cinco séculos anteriores todos somados, o número de milagres necessários para a santificação se cortou para metade e o culto grotesco do Padre Pio – um Capuchinho divinamente visitado por estigmas em 1918, autor dum qualquer número

de feitos sobrenaturais – subiu pelos ares, chegando ao ponto da imprensa dominante poder com toda a seriedade discutir a veracidade dos seus triunfos sobre as meras leis da ciência.

Uma cultura secular capaz deste grau da complacência em relação à crença não será provavelmente mais combativa em relação ao poder. Sob a Segunda República, a opinião nos órgãos centrais da cultura editorial italiana desviou se raramente da doxa 9 neoliberal do seu período. A maior parte da sua produção neste período não se distinguia do que se pode encontrar nos jornais neo tablóides da Espanha, França, Alemanha, Inglaterra ou doutro lugar. Nenhum comentarista com auto respeito deixou de pedir reformas que curassem os males de sociedade, para os quais o remédio era sempre a necessidade de mais competição nos serviços e no ensino, mais liberdade para o mercado na produção e consumo e um estado mais disciplinado e simplificado, com variações girando apenas quanto aos adoçantes a serem oferecidos a quem estivesse no extremo da recepção dos ajustamentos necessários. Uma conformidade deste tipo tem sido tão universal que não teria sido razoável ter esperado que colunistas e jornalistas italianos mostrassem mais independência de espírito. A atitude da imprensa em relação à a lei é outra questão. Na vanguarda dos matizes e gritos contra a classe política da Primeira República- depois dos magistrados terem lançado ataque à sua corrupção – a imprensa revelou se notavelmente submissa desde que Berlusconi se estabeleceu como peça central da nova ordem, limitando se na sua maioria a críticas proforma, sem uma ponta da guerre à l’outrance 10 que lhe poderia realmente ter causado danos ou expulso de cena.

Para isso, o seu fogo teria tido de ser dirigido não apenas contra o próprio Berlusconi, mas também contra os juízes que regularmente o absolveram, o estatuto de limitações que esvaziou as acusações contra ele, as presidências que lhe asseguraram imunidade e os partidos de centro esquerda que o tornaram num interlocutor de facto prezado e aceite. Nada pode estar mais longe do sentido geral da imprensa nesses anos, onde as queixas por negligência são regularmente tingidas de medo e servilismo. A debilidade deste registo é realçada pelas raras excepções. Dessas, uma destaca se acima de todas, a do repórter Marco Travaglio, cujas acusações implacáveis não somente das criminalidades de Berlusconi ou Previti, mas do sistema inteiro de conivências que os protegeu, e não somenos as da própria imprensa, têm pouco paralelo no mundo amansado do jornalismo europeu desses anos. Sem surpresa, Travaglio, cujos livros se venderam às centenas de milhares, é uma figura da direita liberal, exprimindo se com uma ferocidade e uma liberdade de tom quase desconhecidos à esquerda [†].

Na Europa – isto não é verdadeiro, pelo menos do mesmo modo que na América – o mundo dos meios de comunicação por via de regra reflecte mais do que cria a condição duma cultura, cuja qualidade depende, no final de contas, muito mais do estado das universidades. Em Itália, notoriamente, estas permaneceram arcaicas e subfinanciadas, muitas reservatórios da intriga burocrática e da clientela baronial dos departamentos. O resultado foi uma perda constante das melhores mentes do país para postos no estrangeiro. Virtualmente cada uma das disciplinas foi afectada, como demonstra o rol de eruditos principais baseados ou a trabalhar por longos períodos nos Estados Unidos: Luca Cavalli Sforza na genética, Giovanni Sartori na ciência política, Franco Modigliani na economia, Carlo Ginzburg na história, Giovanni Arrighi na sociologia, Franco Moretti na literatura, a quem nomes mais jovens poderiam ser acrescentados. Não uma diáspora num sentido forte, uma vez que quase todos mantiveram as suas ligações à Itáia, a maior parte ainda participando dum modo ou doutro na sua vida intelectual, a sua ausêcia contudo enfraqueceu obviamente a cultura que os produziu.

Se é provável algum recrutamento comparável provir das circunstâncias dos últimos anos, está para se ver. A julgar pela aparência, as possibilidades pareceriam fracas. Mas seria um erro subestimar a profundidade das reservas das quais o país pode sacar. Um relance pela Espanha, cuja modernização é agora muitas vezes apoiada por Italianos autocríticos como modelo do que perderam, é uma lembrança delas. Embora o seu crescimento económico fosse mais alto, o sistema de transportes mais rápido, as instituições políticas mais funcionais, o crime organizado menos espalhado e o desenvolvimento regional mais igual – todos os ganhos reais em relação à Itália – a Espanha permanece em comparação uma cultura provinciana, com uma vida intelectual muito mais estreita e mais derivada, cujo relativo atraso é sublinhado pelas modernidades que a rodeiam. Com todo o mau estado do país, a contribuição italiana para as letras contemporâneas é duma ordem diferente. Nenhum país na Europa, de facto, produziu recentemente um monumento de erudição global que iguale os cinco volumes da história internacional e da morfologia do romance editados por Moretti, e publicados pela Einaudi – uma empresa de magnificência peculiarmente italiana, de cuja escala o leitor anglófono tem só um vislumbre na versão de segunda mão, parcimoniosa em compaixão e espírito, editada por Princeton. Nem é tão pouco difícil encontrar exemplos duma capacidade italiana incessante para abanar no estrangeiro os paradigmas recebidos. As ‘Pistas’ de Ginzburg, para não falar do seu ensaio que reconstrói Dumézil, que nenhum historiador francês tentou, seriam um caso; o livro recente do classicista eminente Luciano Canfora sobre a democracia, censurado pelo seu editor indignado na Alemanha, seria outro; a demolição da ‘justiça internacional’ do cientista político Danilo Zolo, um terceiro. Tais tradições não morrem facilmente.

O que há de oposição política, além da ordem estabelecida inter partidos? De meados dos anos 60 em diante, o Comunismo italiano teve outro filamento, nem oficial nem operaista, que permaneceu mais autenticamente gramsciano que qualquer coisa que a sua liderança pudesse oferecer, ou por fim tolerar. Expulso em 1969, o grupo do Manifesto em torno de Lucio Magri, Rossana Rossanda e Luciana Castellina continuou a criar o jornal com aquele nome que permanece, até hoje, o diário genuinamente radical da Europa. Ao longo dos anos, foi esta corrente que produziu de longe a análise estratégica mais coerente e incisiva dos problemas que a esquerda e o país no seu conjunto enfrentam – descendente de Hegel, sem surpresa, fornecendo melhor equipamento para a tarefa do que a fascinação com Heidegger. Hoje o seu legado está no equilíbrio, as suas três figuras principais compondo memoriais da sua experiência, cada um dos quais será significativo. O primeiro a aparecer, a Ragazza del secolo scorso cuidadosamente elegante de Rossanda, tem sido um sucesso de vendas nacional. Mas em 2005 o seu jornal foi fechado, e o diário está agora, no meio do aperto do crédito, em risco de desaparecer. MicroMega, o espesso bimensal editado pelo filósofo Paolo Flores d’Arcais, não está em semelhante perigo, sendo parte do império editorial cujas peças de exibição são o diário romano La repubblica e a revista de notícias semanal L’espresso. Sob a Segunda República, Flores tornou o seu jornal o organizador da frente mais inflexível e eficaz da hostilidade a Berlusconi na Itália, desempenhando um papel político único na UE para uma publicação intelectual deste tipo. Um ano depois da vitória do centro direita em 2001, foi daí que uma onda de protestos de massas contra Berlusconi impressionante foi lançada, de fora e contra a passividade do centro esquerda.

Entre esses, duas outras figuras desempenharam um papel central. Uma foi Nanni Moretti, o actor/realizador mais popular do país, cujo cinema tem seguido a pista da dissolução do PCI e das suas partículas por mais duma década de modo crítico, se bem que

muitas vezes encantador. O outro foi o historiador Paul Ginsborg, autor de duas das mais preponderantes histórias da Itália do pós guerra, um Inglês a dar aulas na Florença distinguido não só como erudito mas agora como cidadão no seu país adoptivo. Na segunda das suas histórias, cobrindo o período de 1980 a 1996, publicada em inglês com o nome Italy and Its Discontents (e nesta edição chegando apenas em 2001), Ginsborg avançou a hipótese de que, com todo o egoísmo e ganância do seu estrato yuppy – os ceti rampanti que floresceram sob Craxi – existia a seu par na classe média italiana um sector de profissionais mais atenciosos, com consciência cívica e de empregados públicos (ceti medi riflessivi) quem eram capazes de acções altruístas e que formaram uma fonte potencial de renovação da democracia italiana. A proposta encontrou algum cepticismo quando a desenvolveu. Mas em 2002 tornou se realidade. Uma vez que foi a camada que ele identificara que essencialmente forneceu as tropas para as manifestações contra Berlusconi desse ano.

Nisso, contudo, também residia a sua limitação. A forma distintiva que assumiam – manifestantes dando se as mãos em volta de edifícios públicos – foi rapidamente alcunhada como girotondi na imprensa, ou canção de vai de roda ‘O Anel’. Pretendendo simbolizar o espírito pacífico, defensivo do movimento, o resultado foi dar lhe o ar demasiado fácil dum jogo de crianças. Os partidos de centro esquerda, não só não gostando da repreensão que lhes era feita, mas temendo a competição política, fizeram pouco para esconder a sua hostilidade. Os girotondini não responderam na mesma moeda. Determinados em evitar qualquer acções tempestuosas do tipo da que fora ao encontro do G7 em Génova e esperando em vão por uma aliança com líderes sindicais penhorados ao centro esquerda, o movimento viu se inibido de montar qualquer ofensiva mais dura contra o governo, menos ainda contra os seus cúmplices da oposição e, por fim, desfeito pela sua auto imagem de bon enfant, não se pôde sustentar.

Quando, para fúria de Veltroni, o MicroMega corajosamente apelou a outra manifestação de massas contra o regresso de Berlusconi ao poder na Piazza Navona no Verão passado, as contradições subjacentes dos girotondini irromperam de forma visível, Moretti e metade da plataforma dissociando se dos oradores mais radicais, que esta vez não pouparam Napolitano, o PD ou a Rifondazione Comunista. Tal como as circunlocuções impenetráveis da Primeira República tardia produziram como reacção as cruezas calculadas da Liga do Norte, também nesta ocasião o puritanismo da maior parte da retórica dos girotondi, mais dados a implorar do que atacar ferozmente, fez detonar o seu contrário, uma rudeza exibicionista em imagem e idioma – as gabarolices de quarto de Berlusconi virtualmente convidam a isso – desde comediantes famosos por detestarem a classe política, ao embaraço agudo dos que pareciam os mais bem comportados da praça, mas aparentemente não, a ajuizar pelas sondagens de opinião, até à maior parte do próprio eleitorado de centro esquerda. Politicamente falando, o episódio pode ser lido como uma micro versão da polarização dos anos 70, ansiosas propiciações de cima mais uma vez provocando explosões iradas a partir de baixo. No Outono, tais tensões dissolveram se na torrente de protestos estudantis contra os cortes no financiamento do ensino e a compressão da escolaridade, aprovada pela votação do centro direita e uma – mais limitada – mobilização de sindicatos contra a resposta económica do governo à recessão global. As concessões ganhas são de menos significado do que a escala dos próprios movimentos. Mas esse padrão de retiradas tácticas de Berlusconi e de vagas temporárias de ira popular contra ele não é novo. Como isto se poderia alterar, à medida que pioram as condições económicas, está para se ver. Deixando para trás os perigosos instrumentos do carpinteiro e do agricultor, a esquerda italiana adoptou um símbolo após outro, do reino vegetal ou saído do nada – a rosa, o carvalho, a oliveira, a margarida, o arco íris. Sem algum lampejo de metalurgia, parece pouco provável que faça muito progresso.

Tradução de Paula Sequeiros

Notas

[*] o termo italiano não tem a conotação anti intelectual de workerism em inglês, ou ouvriérisme em francês [N.T.: ou ainda de obreirismo em português].

[†] L’odore dei soldi, de Marco Travaglio e Elio Veltri (Editori Riuniti, 2001); La scomparsa dei fatti (Il Saggiatore, 2006); Mani sporche, de Marco Travaglio, Gianni Barbacetto e Peter Gomez (Chiarelettere, 914 p., €19.60, 2007, 978 88 6190 002 8); Il bavaglio, de Marco Travaglio, Peter Gomez e Marco Lillo (Chiarelettere, 240 p., €12, 2008, 978 88 6190 062 2).

Notas de tradução:

1 – Mais papistas que o Papa

2 – o pior inimigo de uma pessoa, normalmente alguém ou algo que é exactamente o oposto de si mas que é, também, de algum modo muito semelhante a si. […] algo como o seu arquiinimigo, algo que o anula, mas nutre lhe um grande respeito e admiração. apud Wikipedia

3 – a título pessoal

4 – pontos de honra

5 – esquerda invertebrada

6 – A «enquête ouvrière» (inquérito operário), é uma obra de Marx escrita em 1880 e publicada pela Revue Socialiste; pode saber mais em http://bataillesocialiste.wordpress.com/2008/07/28/lenquete ouvriere de marx rubel 1957/

7 – no original workerism, equivalente inglês de operaismo

8 – o meio certo, entre extremos

9 – crença comum ou opinião popular, apud Wikipedia

10 – guerra total

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