Maria Dolores de Brito Mota *
Adital – Os assassinatos de mulheres por seus parceiros ou ex-parceiros amorosos são crimes frequentemente denominados de passionais e marcados por atitudes dos assassinos relacionadas com manifestações de ciúme, de inconformismo com a separação, disputa de bens ou de filhos, contrariedade com o pagamento de pensão, entre outros decorrentes do estabelecimento do relacionamento ou de sua dissolução. A primeira questão a ser considerada é o significado da palavra “passional”, que designa paixão e emoção, mas não pode ser automaticamente associada a amor. A segunda questão é que quase sempre esses crimes não ocorrem sobre forte tensão emocional, no meio de uma briga em que os ânimos se exaltam; mas, sim, em situações que mostram claramente que havia uma intenção prévia do homem de matar a mulher. Esse aspecto afetivo passional deve ser desmistificado para compreendermos o significado e as determinações do feminicídio, não como um resultado trágico de um amor ou paixão intensa, de emoções incontroláveis, mas como alternativa construída por elementos de uma cultura de dominação masculina em que a violência é um de seus componentes.
Vejamos algumas questões relacionadas às tramas afetivas tangentes no feminicídio: a violência como elemento das relações históricas entre homens e mulheres; o amor como uma construção social; o amor romântico e apaixonado no contexto de relações de dominação e desigualdade de gênero.
A violência como elemento das relações históricas entre homens e mulheres
Na história do processo civilizatório, a violência dos homens contra mulheres não diminuiu; ao contrário, foi se tornando mais intensa e evidente. Nas sociedades pré-modernas havia um controle exercido sobre as mulheres que eram consideradas propriedade de clãs, de famílias ou de grupos sociais, mas nem sempre isso tinha uma relação direta com uma violência praticada contra elas. Entretanto, a própria condição de propriedade que era trocada em acordos comerciais ou políticos não seria já uma violência? Além disso, nessas circunstâncias o estupro era uma das faces de uma violência comumente exercida pelos homens, já que agredir as mulheres de um território em disputa ou em guerra era uma maneira de atingir os homens com os quais tais mulheres tinham relações familiares ou afetivas, uma vez que estas lhes pertenciam.
Parece haver uma relação entre violência e a dominação masculina, como se a violência estivesse integrada ao modelo de uma sexualidade masculina radicada na força e no controle da mulher, sendo o “esteio do controle dos homens”. Essa violência dos homens contra mulheres está relacionada a várias formas de “intimidação”, de “perseguição” e de “desqualificação”, que nos fazem alvo de inúmeras agressões. Entender como essa violência se constituiu em diferentes épocas e sociedades é uma possibilidade de conhecermos os mecanismos que a engendram e a desenvolvem de modo a buscarmos os mecanismos de sua desconstrução.
O amor como uma construção social
O amor não é apenas um sentimento, mas é um construto da sociedade. O sentimento é despertado, sentido e formatado de acordo com códigos sociais. Assim, desde a idade média até o presente momento, várias representações de amor se constituíram na história, como o amor cortês, o amor romântico, o amor paixão, e mais recentemente novas formas de amor estão em curso como o amor confluência e o amor construção. O amor cortês conhecido como idealizado, galanteador, era uma contradição entre o desejo erótico e o sentido de realização espiritual “um amor ao mesmo tempo ilícito e moralmente elevado, passional e autodisciplinado, humilhante e exaltante, em que o homem faria tudo por sua amada, mas não se realizava numa relação possível. O amor romântico é uma forma de amar que se pretende a única relação íntima válida, supondo que duas pessoas se amem mutuamente, sempre na incerteza por uma busca constante pela verdade do amor do outro, esperando uma união total de duas pessoas suprimindo-se as diferenças entre elas. O amor como paixão emerge no contexto de vigência do amor romântico, acentuando a experiência de amar como um sofrimento, em que o apaixonado se submete ao seu comando, ao mesmo tempo em que deve se empenhar na conquista.
Esse amor representa auto-sofrimento, prisão, martírio, controle e desregramento no desejo de estar sempre experimentando essa força avassaladora empolgando e corroendo, perseguindo o controle do outro e descontrolando-se. Outras formas de amor estão se desenvolvendo a partir de mudanças sociais decorrentes das lutas das mulheres por direitos e por cidadania, que estão sendo denominadas de amor confluente ou amor construção. O amor confluente é definido como baseado em valores de igualdade entre homens e mulheres, em confiança e negociação mútua e sentimentos partilhados por parceiros com papéis cada vez mais próximos socialmente. O amor construção é entendido como um processo, em que o amor e a paixão são o pretexto inicial, mas que vai se “transformando num sentimento mais estável, mais ‘construído’.
Amor e desigualdade de gênero
O amor romântico e o amor paixão predominantes no nosso imaginário social, integrados a relações de gênero desiguais tornam-se avassaladoras para as mulheres ao acentuarem a sua sujeição às exigências de um amor que estabelece o homem como o conquistador, o condutor da relação, determinando como desejo amoroso da mulher ser o objeto de desejo do homem. Em geral as pessoas acreditam que se o homem gosta e quer a mulher, esta não deve recusar, deve sentir-se agraciada por isso. Ditos populares como “ruim com ele, pior sem ele”, exprimem essa idéia. O amor como uma construção social emerge de “uma teia de relações sociais de poder, cujas dinâmicas estão na origem da desigualdade, da discriminação e da violência”. A vivência do amor reproduz as relações de poder desiguais entre homens e mulheres, de maneira que os discursos amorosos podem garantir ações que legitimam a continuidade do sistema patriarcal e se tornam “discurso de risco para as mulheres”.
Estamos vivendo tempos de mudanças sociais fortemente influenciadas por transformações nos papéis sociais das mulheres que não se enquadram nos limites do amor romântico nem do amor paixão. Já não é suficiente ser a cara metade, ou a banda de uma laranja, é preciso ser uma pessoa inteira. Mesmo que sonhem com os príncipes românticos e apa
ixonados, a realidade de um amor vivido requer o encontro de duas pessoas inteiras, com identidades próprias e independência econômica. As mulheres já não conseguem ficar atrás de grandes homens, querem realizar e crescer lado a lado. Diante da vontade e desejos próprios das mulheres, muitos homens não se reconhecem como tais, pois foram socializados para uma relação de dominação, sujeição e punição; impossibilitados de cumprirem esse papel destroem com intenso ódio o ser que lhe interdita.
A luta contra o patriarcalismo e o enfrentamento da violência de gênero praticada contra as mulheres, que muitas vezes tem culminado no feminicidio, requer também uma crítica ao amor romântico e ao amor paixão, e a ativação e estímulo a formas libertárias de amar. O fim do feminicídio exige a plena igualdade e justiça de gênero e formas de amar que não dividam e tornem dependentes e inseguras as pessoas que constituem a relação amorosa, mas sim que as fortaleçam e reconheçam em sua singularidade e autonomia.
* Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NEGIF