ELIANE BRUM – revista ÉPOCA
Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.
Duas reportagens publicadas na Folha de S. Paulo na semana passada são chocantes pelo que revelam – e pelo despudor com que revelam. A primeira saiu na coluna de Mônica Bergamo. E conta sobre o “produto” Ana Hickmann. A outra é uma matéria sobre uma reunião do Conselho Comunitário de Segurança de Santa Cecília, em São Paulo, assinada por Afonso Benites. Nela, moradores e comerciantes anunciaram uma campanha oposta àquela com que Betinho uniu o país nos anos 90: a deles é para pressionar ONGs e restaurantes a parar de dar comida aos sem-teto que vivem nas calçadas. Nesta, que pode ser chamada de “campanha pela fome”, ou os mendigos morrem de inanição ou vão assombrar ruas fora das fronteiras do bairro.
Pelas reportagens, descobrimos que Ana Hickmann, a modelo e apresentadora da Record, é uma coisa, decidiu ser uma coisa. E que os bons cidadãos de Santa Cecília consideram os mendigos não uma coisa, mas gente. É por ser gente – e não coisas – que devem ser expulsos. Ou desinfetados, como anunciou uma comerciante. Com o despudor de quem tem a certeza de que está do lado certo da força, ela contou que lança desinfetante nos que vivem em frente à sua loja.
Olhamos para Ana Hickmann, fisicamente tão bela, tão perfeita, com pernas de 94 centímetros. “Uma elfa”, como diz um amigo meu que um dia a encontrou nos corredores da Record. E aí ouvimos Ana Hickmann falar sobre como vê a si mesma. Ela diz: “Sempre me considerei um produto. Parece cruel, mas é verdade”. Diz mais: “O Alê (marido e sócio) me chama de general. Fala que sou truculenta pra caramba. E sou mesmo. Exigente, como sempre foram comigo. Nunca me deram a chance de errar”. Alexandre Corrêa, o Alê, dispara uma sequência de frases antológicas sobre a mulher e sócia: “A gente vai entregar para o mercado uma Ana Hickmann diferente, sem esses problemas (referindo-se a dificuldades de dicção, que estão sendo corrigidos por uma fonoaudióloga)”; “A palavra ‘perder’ não está no nosso dicionário”; “A Ana Hickmann tem que ir para o domingo para matar ou morrer. Tem que acordar todos os dias com sangue nos olhos. Se não odiar o concorrente, você é um frouxo. Com mão mole, não machuca ninguém. Fere, mas não tira a pessoa de combate”. O romantismo foi deixado de lado, ele explica: “por um tempo pra gente investir e enxergar nosso crescimento sem deslumbramento. Porque com romantismo vêm férias em Paris, esquiar em Aspen, fazer compras em Nova York. E o trabalho e as obrigações ficam para trás. Se ficar com ‘mela mela’, todo problema profissional vira sentimental. O circo pegando fogo e você ‘amorzinho’, abraçando o outro para se lamentar? Ah, por favor!”
Ana Hickmann e seu sócio-marido falam sobre “o produto Ana Hickmann” sem nenhum pudor. Se dizem o que dizem para um jornal de âmbito nacional, é porque acreditam que estão dizendo aquilo que é certo dizer. Mais do que certo – já que o certo ou errado não parece ser lá uma questão muito relevante nesse contexto: dizem aquilo que é valorizado no discurso contemporâneo. Algo que deveria, no seu modo de ver o mundo, despertar admiração no público. Afinal, eles são “produtos” de um mundo em que tudo pode – e deve – ser coisificado para ser consumido. E tudo o que tem valor só tem valor porque é mercadoria.
Ao contrário de como Ana Hickmann vê a si mesma, os moradores e comerciantes de Santa Cecília não veem os mendigos como “coisas”. Se fossem coisas, teriam valor, nem que fosse o valor de vendê-las para a reciclagem. Como são gente, a solução é suspender sua comida. Sim, porque gente come. Ao decidirem interromper o acesso à alimentação, eles acreditam que encontraram a solução para seus problemas. E seus problemas resumem-se a gente que não serve para nada. Nem para virar coisa.
Se alguém contraria esse discurso, em ambos os casos, pode ser acusado de hipócrita. Ou ingênuo. Porque, afinal, é assim que o mundo funciona. Ou você produz, ainda que como mercadoria com alto valor agregado, como é o caso de Ana Hickmann, ou você deve ser eliminados dos olhos e do mundo de quem produz – com desinfetante ou por inanição. Em ambos os casos, o que é humano atrapalha. Tem de ser eliminado da vida do produto Ana Hickmann, tem de ser eliminado das calçadas dos moradores e comerciantes de Santa Cecília.
Na vida do produto Ana Hickmann, são os sentimentos que têm de ser eliminados – os ligados à gente frouxa, pelo menos, que atrapalham o sucesso, já que ódio, ambição, “sangue nos olhos” são valorizados. Devem ser eliminados o romantismo, o erro, a condição falível do humano, o que seu sócio-marido tão bem define como “mela mela”. Na vida cotidiana dos moradores de Santa Cecília, o que tem de ser eliminado é gente que não produz, que não toma banho, que não se veste bem, que faz sujeira, que às vezes é mal-educada, xinga e briga. Gente que pede coisas e não tem dinheiro para pagar pelas coisas.
Ninguém gosta de ver pessoas morando na rua diante de sua casa ou pedindo comida na sua porta. Sempre imaginei que fosse porque o sofrimento do outro, a indignidade desta condição, nos afeta. Ainda que não gostemos também porque algumas dessas pessoas façam sujeira na rua e não se espera que alguém aprecie sujeira diante da sua casa ou da sua loja, o que espanta é achar que não temos nada a ver com isso. Não se trata aqui de achar que todo morador de rua é bonzinho ou de que todo sentimento humano é agradável. Trata-se sim de pensar sobre o que faz com que se acredite que ambos devam ser exterminados – da vida cotidiana do bairro, da vida de cada um.
O que espanta é acreditar que pessoas e sentimentos são sujeira, lixo orgânico, lixo não reciclável – e, portanto, sem valor. O que espanta é que Ana Hickmann se anuncie como produto e isso seja confundido com sucesso. Que pessoas vivam sem condições mínimas e um grupo de pessoas acredite que o que pode fazer de melhor é lhes tirar a comida. Ou que se sinta tão impotente a ponto de acreditar que a fome pode ser a solução. Espanta também que na reunião estivessem presentes representantes de várias instâncias do poder público: polícia, subprefeitura da Sé e guarda civil. E também do hospital Santa Casa. E que nenhuma voz tenha se manifestado contra a proposta.
Descobrir que pessoas como Ana Hickmann se veem como coisas nos dá pistas para compreender o modo como os moradores e comerciantes de Santa Cecília veem os mendigos. É como coisa que Ana Hickmann vai para a TV entreter millhões todo domingo. Ela, que ganha R$ 300 mil por mês de salário, fora todos os produtos que derivam do produto maior, é um exemplo de sucesso, de self-made woman. Ou self-made thing. Se tudo der certo e nenhum sentimento humano indesejável atrapalhar a trajetória do produto, como diz seu sócio-marido, um dia ela será “a Oprah Winfrey do Brasil, loira e de olhos azuis, num país de gente parda”.
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Tudo isso é revelado, Ana Hickmann diz que é um produto, os comerciantes de Santa Cecília anunciam que vão deixar os moradores de rua sem comida. Tudo isso é estampado no jornal e, fora uma ou outra repercussão, passa, vira a página. Se passa, sem grandes alardes ou questionamentos, o que isso diz sobre nós? Nós também pe
rdemos o pudor? Por que isso não nos espanta? Significa que é assim que olhamos para o outro e para nós mesmos? Ou achamos que podemos nos safar sem nos posicionarmos diante do mundo? Que isso não nos diz respeito?
Se alguém acredita que essa forma de ver o mundo, a si mesmo e ao outro, com a qual compactuamos em geral por omissão, não afeta sua vida, cada minuto da sua vida, desde que acorda e vai para o trabalho até a hora de ir dormir, está bem iludido. Ou de onde viria toda essa dor de existir, que transformou a depressão numa epidemia mundial? Em algum lugar desse corpo materializado em coisa, reduzido à mercadoria, há um resquício de humanidade. E é essa ínfima porção latejante, encarnada, mas desligada de toda carne que não seja a própria, que dói.
Concordar com Ana Hickmann e com os cidadãos de Santa Cecília é acreditar que nossa humanidade é um tumor que deve ser extirpado de nosso corpo coisificado. Uma sujeira que, como os mendigos, deve ser eliminada por fome e esterilizada com desinfetante. De fome, acho que muitos de nós estão se matando mesmo. Não a fome que vem da falta de comida, mas a que vem da falta de espírito, de transcendência, de sonho, de projeto coletivo, de potência transformadora, de tudo que não é estranho ao humano – só às coisas. Mas a esterilização ou anestesia por medicamentos, esta parece que não está adiantando muito.
A Ana Hickmann e ao seu sócio-marido, desejo que um dia tenham tempo para o que não é da ordem das coisas, mas do humano. Para o romantismo, o sentimento sem serventia ou controle, o vacilo. Que quando o que há de humano em Ana Hickmann errar, a agenda lhe permita se encostar ao ombro do marido e fazer o que chamam de “mela mela”. Aos bons cidadãos de Santa Cecília, peço emprestada a fala de um homem sábio que conheci. Ele se chama Muhammad Ashafa e é um líder muçulmano da Nigéria. Uniu-se a um líder cristão num país onde adeptos das duas religiões costumam se matar entre si. Juntos, estes homens que no passado quase mataram um ao outro têm defendido pelo mundo um “dia do perdão”. Contei sua história nesta coluna há quase um ano.
Deixo sua mensagem como sugestão de pauta para a próxima reunião do Conselho de Segurança de Santa Cecília, quando pensarem numa alternativa para o seu vizinho da rua que não seja lhes tirar o acesso à comida, uma que inclua ver moradores de rua como gente não descartável, mais parecida com eles mesmos do que gostariam: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.
Um tempo atrás, eu levava minha filha para o aeroporto numa das muitas manhãs cinzentas de São Paulo. Estava frio e garoava. Nós íamos caladas no banco de trás do táxi. De repente, o carro foi obrigado a parar por causa do trânsito. Testemunhamos então uma cena que guardei para a minha vida como um diamante da memória, daqueles que não podem ser comprados ou vendidos. Debaixo da marquise de uma loja, meio encoberto por papelões, um morador de rua erguia um bebê para cima com tanta alegria e tanto amor no olhar que o tempo parecia ter parado com o trânsito. Era um homem mais velho ou parecia mais velho pela brutalidade das ruas. Mas ele estava alheio ao mundo ao seu redor, à sua situação de rua, ao frio e à garoa, a tudo o que aconteceria depois. Seus olhos, seu rosto inteiro, brilhavam a ponto de chamar a atenção de quem passava. Seus olhos brilhavam de alegria pela criança que tinha nas mãos. Naquele momento, ele era um homem sem idade, sem classe social, sem classificação. Naquele momento, ele era só um homem diante do milagre da vida.
O trânsito avançou, o carro seguiu. E a cena ficou encarnada em mim. Desde aquele dia, meses atrás, eu queria contar essa história aqui, mas não encontrava jeito. Lembrei dela agora, diante de tanta gente bruta, com acesso à casa, à educação e a tudo o que o dinheiro pode comprar, mas que perdeu o acesso a si mesma. Nos cantos de mundo, nos cantos da rua, nos cantos de cada um de nós a humanidade resiste. Resiste onde menos se espera, resiste mesmo contra a nossa vontade. Resiste até mesmo quando supostamente atrapalha nossa produção, nossa performance ou nossa “coisicidade”.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)