Renata Mielli
Tem certas coisas que a gente percebe sem precisar de estatísticas. Uma delas é que a Polícia Militar é uma corporação violenta e racista. Em São Paulo, as evidências das arbitrariedades cometidas pela PM são tantas e tão flagrantes que, infelizmente, já não chocam mais ninguém. As pessoas já encaram essa situação com certa “normalidade”. O ser humano é um animal que se adapta.
Mas alguns são inquietos e querem mudanças. Ainda bem! Um desses é o major da Polícia Militar de São Paulo, Airton Edno Ribeiro, chefe da divisão de ensino do Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES), e que fez um estudo que resultou na dissertação de mestrado sobre “A Relação da Polícia Militar Paulista com a Comunidade Negra e o Respeito à Dignidade Humana: a Questão da Abordagem Policial”. Quem quiser ler na íntegra, o que eu recomendo, clique aqui.
O resultado do trabalho de Airton Edno Ribeiro fui divulgado nesta sexta-feira, pelo jornal Diário de S.Paulo. A reportagem “PM é racista” trás alguns dados da pesquisa desenvolvida pelo major e o comentário do sociólogo predileto da mídia e da elite brasileira: Demétrio Magnoli.
O sociólogo é quem faz o contraponto: “A questão econômica é mais forte que a racial. Os pobres sofrem mais com a polícia do que os ricos. Ninguém comenta os crimes cometidos contra brancos pobres”. Magnoli não deve ter se dado ao trabalho de ler o estudo do major. Se tivesse lido, não diria tal bobagem. Edno Ribeiro mostra em sua dissertação que o recorte social é o primeiro, mas vem acompanhado do recorte racial na hora da abordagem.
Raízes históricas do racismo
Partindo de uma análise muito consciente da construção social brasileira e latino-americana, das raízes históricas do racismo e de como ele permanece impregnado nas instituições e na sociedade, Ribeiro traçou como objetivo geral de sua pesquisa: “conhecer como ocorre a prática social da abordagem policial de negros dos pontos de vista de quem aborda e é abordado. O objetivo específico é conhecer, em São Paulo, que processos educativos são vivenciados pelo policial militar e pela pessoa negra abordada”.
“Desde a libertação dos escravizados, historicamente, foi o próprio descaso governamental em relação aos libertos que transformou o negro e sua cultura em problema de segurança pública. Ainda no final da década de 70 do século passado, por exemplo, não eram raros os relatos de recriminação às manifestações afro-religiosas e culturais, com invasões policiais em “terreiros”, principalmente de candomblé e umbanda, e em locais de ensaios de escolas de samba paulistanas, tanto em quadras próprias como nas ruas ou praças onde ensaiavam, pois a maioria delas não possuía sede”, descreve Ribeiro.
Silêncio na corporação
O autor afirma que até 2004, “havia um silêncio na Polícia Militar paulista sobre os problemas referentes à cor, à negritude e ao racismo, tanto na relação com a população afrodescendente, como dentro da própria Instituição, onde a presença negra sempre foi expressiva entre as praças”.
No seu estudo que é abrangente e trás informações interessantes sobre as práticas policiais de abordagem, ele reitera: “É na realização diária da atividade de polícia ostensiva que se manifesta a individualização dos pensamentos do policial e de seus preceitos humanos, ou seja, estando o policial de serviço na viatura, sozinho ou com um companheiro, ele escolhe diretamente a pessoa a ser abordada ou influencia o outro policial a abordar. E nesse contexto a escolha da pessoa a ser abordada recai sobre o negro em qualquer situação, em sutilezas que tomam conta das condutas dos policiais no exercício do policiamento”.
Veja alguns trechos extraídos da tese:
Ser negro e pobre significa ser criminoso
Para o policial, características étnicas próprias e perfil socioeconômico e cultural diferenciados, dada a convivência com a pobreza, favorecem o surgimento de criminosos.
O policial negro não se vê negro
Esta postura atinge também o policial negro, que não se sente negro ao realizar abordagem em negros, há um encobrimento de sua identidade racial na realização dessa prática social, porque a polícia não ensina nada sobre ser negro. Ao contrário, fazem a gente esquecer isso quando querem mostrar que a polícia não discrimina. A gente faz tudo para não ser o preto da turma, do pelotão, da companhia.
Com este encobrimento, o policial negro não se vê no outro, não consegue colocar-se no lugar do outro e agir de forma diferente na abordagem: sou preto, mas não admito o uso da cor, da raça, para fazer coisa errada. “Neguinho” tem que ser melhor que o branco porque senão vai se dar mal na vida. Mas eu não quero nem saber se é preto ou branco; se é “pra dar mão na cabeça” é todo mundo igual.
Fonte: Vermelho (www.vermelho.org.br)
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