Letícia Sorg – Revista Época
Fez 15 dias que estou de volta ao Brasil depois de uma temporada de sete meses fora. Nem deu ainda para matar a saudade de todas as pessoas queridas por aqui, mas confesso que já sinto saudades de lá. Na verdade, não sinto saudades de Oxford nem da Europa. Também não sinto saudades da rotina de estudo. Nem mesmo dos amigos que fiz por lá (porque com esses consigo falar com certa regularidade, graças à internet). Embora tenha gostado muito de tudo isso, sinto falta mesmo de uma coisa imaterial: da convivência com outras culturas.
Quando, nove anos atrás, saí do interior para São Paulo, não só o número de carros, a poluição ou os prédios me impressionaram na capital. O que mais me chamou a atenção foi a diversidade. Não que todo mundo em Limeira seja igual, longe disso, mas ter contato com tanta gente diferente, vinda de outros estados, com outras histórias, valores e ambições, foi muito rico. Aprendi com outros interioramos como eu, com paulistanos, com mineiro e até com uma carioca-japonesa!
Sair do país, de certa forma, foi reviver essa experiência bacana de entrar em contato com o diferente. E, desta vez, os diferentes vinham de milhares de quilômetros de distância e não falavam a minha língua. Mas me contaram histórias que achei fascinantes. A russa tentou explicar como identificar um agente do serviço secreto do seu país – segundo ela, parece que eles enxergam até seu estômago olhando para os seus olhos. A suíça tentou me explicar como as pessoas encaram a neutralidade de seu país, tão pequeno, tão poderoso e tão em cima do muro. A finlandesa me revelou que Nokia é uma cidade e que, nacionalmente, é famosa também por produzir botas de borracha, além de celulares. O cara da Caxemira – além de explicar um pouco o conflito complicadíssimo que afeta sua região – dividiu conosco como é namorar por anos a fio sem ter praticamente nenhuma intimidade e chegar aos 30 sem nunca ter bebido álcool.
Sinto falta de, na mesa de bar, no café, durante o almoço ou num seminário, topar com histórias como essas. Mas, outro dia, na internet, topei com um relato que conseguiu me transportar para uma outra realidade. Foi escrito por Sher Bano, uma estudante paquistanesa de 17 anos que, depois de passar um ano nos Estados Unidos, voltou a Peshawar. Tendo estado de um lado e de outro, ela agora escreve sobre suas experiências como convidada no blog de Nicholas Kristof, do New York Times.
Depois de um primeiro post em que tenta aproximar os Estados Unidos do Paquistão, Sher escreveu sobre oscasamentos arranjados. Achei o ponto de vista diferente de tudo o que eu estava esperando ler sobre o assunto. Traduzo aqui quase todo o texto:
“Quando estava nos Estados Unidos, num primeiro momento, me arrependi de dizer para a amiga com quem estava morando que vários dos meus parentes eram casados com primos de primeiro grau, porque isso quase a fez entrar em choque. Para quem, como eu, não sabia: o casamento entre primos de primeiro grau é ilegal em Illionois [Sher morou nesse estado americano, em Evanston]. A ideia de que eu tenho contato com casais ilegais me perturbou no começo. Mas, depois, me lembrei: não sou de Illionois, mas de Peshawar!
Alguns dos meus amigos americanos têm namorados/namoradas e eu sempre ficava interessada em vê-los com seus parceiros. Mas eu mesma nunca tive um namorado porque todo o drama, as expectativas e as explicações me pareceram bem cansativo. Eu poderia ter uma queda por alguém, mas tentava ao máximo não demonstrar, porque era contra a minha religião e a minha cultura.
Eu sempre pensava comigo mesma que as paixonites adolescentes são comuns e não devem ser levadas a sério. Além disso, eu teria um casamento arranjado, uma tendência comum na minha família e na minha região. Quando eu dizia isso aos meus amigos americanos, eles tinham pena de mim. As reações deles me surpreenderam, porque a perspectiva de um casamento desse tipo me parecia bem interessante. E eu estava determinada a corrigir esse conceito errado de que os casamentos arranjados são atos de crueldade. Por causa disso, eu dei palestras e participei de discussões.
De acordo com o dicionário, o casamento arranjado é um casamento orquestrado por outra pessoa que não os noivos, suprimindo o processo de namoro. Mas o significado é um pouco diferente em minha cidade. Um casamento arranjado é diferente de um forçado. No arranjado, consultar a opinião do menino e da menina que estão se casando é uma parte importante da decisão. O costume diz que os pais do garoto pedem a mão de uma garota que tanto os pais como o filho concordam que é um bom partido. Se os pais da menina acharem que o garoto “serve” – é capaz de dar a ela uma boa vida, por exemplo –, eles perguntam a opinião da filha. Se ela concorda, a decisão está tomada. Se ela vetar, é hora de considerar outra pessoa para ela. Portanto, o casamento não é imposto. Ainda há casamentos forçados na área e esses, sim, podem ser chamados de cruéis, com razão.
Sei que a perspectiva de casar com alguém que você ama soa atraente e romântica! (afinal de contas, sou uma menina que passou um ano nos Estados Unidos!) E perguntei uma vez à minha tia: “Como você pode ser feliz casada com um homem que você não ama?” E ela respondeu: “Eu aprendi a amar!”. Achei a resposta confusa. Mas, depois, entendi a sabedoria por trás dela. Afinal de contas, nem o amor nem um casamento arranjado são capazes de garantir a felicidade. Raymond Hull, um famoso escritor canadense, disse uma vez: “Todos os casamentos são felizes. É viver junto depois dele que causa todos os problemas.”
Não se pode negar os benefícios do casamento arranjado. Se um casal cujo casamento foi arranjado em Peshawar encontrar problemas, há muitas pessoas, como suas famílias, para dar apoio. Há mais chances de que a relação seja mais madura e dure mais, porque os pais, mais vividos, têm um papel importante na decisão (uma das razões para as baixas taxas de divórcio). Também não é necessário preocupar-se com ficar para a titia ou em como convidar alguém para sair (algo que percebi que é uma grande preocupação nos EUA). Não tenho nada contra casamentos arranjados, mas quero que saibam dos benefícios dos casamentos arranjados.
Como disse antes, é bastante comum que os casamentos aconteçam entre parentes, especialmente primos. As complicações reprodutivas decorrentes desse tipo de casamento não é segredo hoje em dia. Mas a maioria das pessoas em Peshawar não dá atenção a isso. Eles enfatizam a manutenção da herança dentro da família e a proximidade entre os parentes. Porém, por causa das preocupações com doenças hereditárias, muitas pessoas estão mudando suas atitudes. Não vou dizer que o casamento dentro da família é errado, eu mesma nasci de um casal de parentes. Mas eu não quero correr o mesmo risco.
Outra grande diferença entre casamentos americanos e paquistaneses é a idade. A maioria das pessoas acha que a idade para uma mulhere se casar em Peshawar é aos 20 e poucos anos. Nos EUA, notei que muitas pessoas se sentem confortáveis sendo solteiras até quase os 30. Aqui, a maioria das mulheres se casa com homens mais velhos porque eles, em geral, têm uma vida mais centrada e empregos melhores. Chuto que os maridos são mais velhos que as mulheres em 99% do tempo. Conheço dois casais com mais de 20 anos de diferença entre si.
Em que lugar você se sente melhor: Estados Unidos ou Paquistão? Muitas vezes me fizeram essa pergunta. Mas ainda não fui capaz de encontrar uma resposta para ela. Afinal de contas, quem sou eu para julgar culturas? Uma pessoa pode apenas aceitá-la, e, se possível, tentar melhorá-la e admirá-la. Casamentos em Peshawar e em Illionois têm lados bons e ruins.”
Não concordo com muitos dos argumentos de Sher, mas achei o texto interessante. Me fez pensar em como, muitas vezes, precisamos do outro para olhar para nós mesmos. E você, já tinha pensado sobre os benefícios do casamento arranjado em relação ao casamento “romântico”?