O fascínio do estupro

Estamos prestes a ver a Câmara dos Deputados aprovar um projeto de lei que faz o estupro deixar de ser motivo para o aborto. A violência contra a mulher, extremada sempre, mesmo que não pareça para a sociedade machista, dará meia volta na história e retomará o papel de discipliar e submeter as mulheres. O estupro recentemente foi declarado por um bispo católico como um mal menor. O Congresso vai declarar o estupro como “algo não tão mal assim”, má é a mulher que aborta, dizem os homens religiosos que legislarão por todas as mulheres. Nesse momento, nada melhor que ler o artigo de Luís Antônio Giron, da Revista Época, que trata do crescimento do tema da violência sexual no cinema. Leia e reflita, discuta e produza sua própria opinião…



O que leva o cinema a investir na violência sexual
LUÍS ANTÔNIO GIRON – revista ÉPOCA

Revista Época

Luís Antônio Giron
Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV

O cinema tem conjugado sexo e crueldade como nunca. Não me refiro à pornografia, mas aos filmes de autor, aqueles que transportam o espectador a um outro plano, exigindo-lhe reflexão e atitude sobre o que se passa diante de seus olhos. Sequências “autorais” envolvendo sexo, perversão e violência sexual andam ganhando mais adeptos, tanto de quem está atrás das câmeras, como da plateia. A tolerância do público a certas modalidades de tabus parece maior, talvez porque os espectadores as vivenciem no cotidiano. Os cineastas não fazem mais que espelhar – e não raro refratar – a imagem que têm do mundo. Não há inocentes em tal jogo. Há um desejo das audiências e outro de agradar a estas. Assuntos que soavam insuportáveis cinquenta anos atrás hoje são vistos como rotineiros. É preciso então avançar e forçar limites. Que razão há para tamanha obsessão transgressiva? Responder que talvez seja porque não haja mais a figura da transgressão é errado. Não fosse ainda um tabu, não chamaria atenção, não lotaria as salas e não resultaria em grandes bilheterias. Todo mundo sabe que basta estampar a palavra “sexo” em um anúncio, que aparece gente interessada. E o cinema é, entre as artes, o maior campo de testes dos instintos mais básicos do espectador. Então lanço uma questão constrangedora: será que se avançaram os limites até o ponto de sexo e violência se acoplarem e assim fazer com que hoje o estupro no cinema passe por atração erótica?

Mas é preciso responder à pergunta de modo lento, para não ferir suscetibilidades. Comecemos pela história. Desde que surgiu, a arte da imagem em movimento tem mostrado cenas fortes. Vamos lembrar cenas de exibicionismo e luxúria de Intolerância (1916), do pioneiro W.D. Griffiths; corpos nus de nativos dos mares do sul em Tabu (1931), do expressionista alemão WF Murnau, e assim por diante. A quantidade de ousadia só fez aumentar em variedade, intensidade e fusão com a brutalidade. O sexo explícito ganhou status de excelência estética partir de O império dos sentidos, de Nagisa Oshima, lançado em 1976. O filme retrata a obsessão de um casal por sexo, que culmina com uma cena de castração. A novidade estava em que os próprios atores faziam sexo diante das câmeras. Depois veio o canadense David Cronenberg e sua extensa galeria de tarados. Em Crash (1996), um conto sobre pessoas que atingem orgasmos em acidentes de carro, o diretor chegou a colocar a atriz cult Holly Hunter em cenas cruas e repugnantes. Agora são incontáveis os diretores que lançam mão do recurso. Nos anos 90, os diretores dinamarqueses do grupo Dogma abusaram dele. Mesmo em produções pós-Dogma isso acontece. O longa-metragem do diretor dinamarquês (e fundador do Dogma) Lars von Trier, Anticristo, de 2009, contém episódios de mutilação do clitóris da personagem principal, interpretada pela atriz e cantora Charlotte Gainsbourgh, e as habituais sequências “líricas” de cópulas reais – no caso desempenhadas por dublês.

Se o sexo explícito teve seu tempo (que pode voltar, obviamente), a moda atual é o estupro. Até aí nenhuma novidade. Fiz uma busca no site IMDB com a palavra “rape” (estupro em inglês) e o resultado foi 2711 títulos. O número de filmes com cenas de estupro (inclusive pornôs) começa a se multiplicar a partir dos primeiros anos da liberação sexual, na primeira metade da década de 60. Houve uma mudança de mentalidade a partir de então. Não vou arrolar dezenas de longas-metragens de arte que investem em cenas do tipo. Os estupradores começam até a ganhar certa simpatia na filmografia recente. No ano passado, a história da violação de uma adolescente foi às telas na adaptação do diretor Peter Jackson do best-seller Uma vida interrompida (Lovely Bones), de Alice Sebold – e quase rendeu ao ator que fez o estuprador, Stanley Tucci, o Oscar de coadjuvante. A peculiaridade da trama está na forma como ela é contada, pela própria vítima, diretamente do limbo. O que significa que a audiência tem acesso a detalhes ainda mais escabrosos do crime. E as pulsões de amor e morte são tocadas por eles. Vou repetir o argumento de Walter Benjamin: no escuro, cada espectador se projeta na imagem projetada na tela. Assim, o processo de identificação é incontornável. Por isso, Benjamin definiu o cinema como “arte psicanalítica”. Na situação simulada do estupro, somos a um tempo vítima e agressor. Ocupamos os corpos e as almas dos dois lados do ato.

Ultimamente, o gênero estupro seguido por morte tem merecido maior atenção dos diretores. Quero mencionar dois filmes de suspense. Um faz boa carreira nos cinemas e outro entra em cartaz na semana que vem: o argentino O segredo de seus olhos, de Juan José Campanella, ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009, e a produção dinamarquesa Os homens que não amavam as mulheres, do diretor Niels Arden Oplev, suspense baseado no romance homônimo do sueco Stieg Larrson, best-seller mundial.

São produções aparentemente díspares. Apesar de uma ser sul-americana e outra nórdica, ambas guardam pelo menos quatro aspectos em comum, além de abordar o estupro de uma forma intrigante.

O argentino O segredo de seus olhos ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2009

Em primeiro lugar, são enredos de casos criminais arquivados há mais de 25 anos. No filme argentino, a cena se passa em Buenos Aires no ano 2000. O investigador aposentado Benjamin Esposito (Ricar

do Darín) se encontra com sua antiga chefe (e paixão), a juíza Irene Hastings (Soledad Villamil) para tentar reabrir um caso acontecido em 1974: a morte de Liliana Colotto (Carla Quevedo), uma jovem de 23 anos seviciada, violada e morta em sua casa. O filme dinamarquês, ambientado em Estocolmo em 2006, conta as peripécias de um jornalista investigativo de esquerda, Mikael Blomkvist (Michael Nyqvist), é chamado por um rico empresário Henry Vanger (Sven-Bertil Taube) para investigar o desaparecimento de sua sobrinha Cecilia Vanger (Marika Lagercrantz), de 16 anos, durante uma parada de Dias dos Namorados numa ilha sueca em 1966. Blomkvist se une à hacker punk Lisbeth Salander (Noomi Rapace) e descobre que a desaparição da menina é relacionada com uma série de estupros ocorridos nas redondezas num período de 20 anos.

O pano de fundo político responde pelo segundo aspecto convergente. Ambos os casos são acobertados e se relacionam a regimes ditatoriais. Melhor não entrar em detalhes para não estragar a surpresa. Mas basta dizer que os estupros estão ligados à impunidade de criminosos vinculados a determinada conjuntura de poder. A política será determinante para a resolução dos casos. Campanella usa o caso policial para elaborar uma metáfora da Argentina, um país que só depois de muitos anos conseguiu superar o trauma da guerra suja, que levou milhares de inocentes à morte. Já Niels Arden Oplev se vale dos crimes seriais acobertados para mostrar que um país supostamente resolvido como a Suécia oculta uma sociedade doentia, capaz dos atos mais atrozes.

A terceira coincidência repousa na crise da meia-idade e de carreira por que passam os dois protagonista: tanto Esposito como Blomkvist se encontram em fim de carreira e, mesmo assim, continuam obcecados pelo desvendamento de seus respectivos mistérios. Tanto um como outro anseiam pela redenção que a resolução de um enigma pode conter. E os dois são apaixonados por mulheres problemáticas. A juíza é rica e está comprometida com um empresário, e deixa Esposito partir, numa cena melodramática, passada em uma estação de trem. Blomkvyst é praticamente estuprado na cama por Lisbeth, e se encanta por ela – que, aliás, já havia sido estuprada pelo padrasto e pelo tutor, e se vingou ateando fogo ao carro daquele e torturando este.

Finalmente, os dois roteiros são unidos pelo tema do estupro seguido por morte. Em O segredo de seus olhos, o foco está na beleza de Liliana, apesar dos ferimentos profundos deixados pelo assassino. A câmera passeia com volúpia pelo corpo nu violado e ensanguentado, até dar um close up nos olhos vidrados da morta, olhos enormes e… sonhadores. São os olhos do cadáver e do possível criminoso que levam Esposito, fascinado pela beldade morta, a começar a investigação. Em Os homens que não amavam as mulheres, os olhos abertos dos cadáveres colecionados pelos criminosos também são mostrados em detalhe. O filme dinamarquês é pródigo nos requintes sádicos. Os assassinatos são cometidos como rituais satânicos, repletos de símbolos e citações bíblicas. Na trama sueca, não há espaço para sentimentalismo.

Na trama sueca Os homens que não amavam as mulheres, não há espaço para sentimentalismo.

Por fim, os filmes dramatizam os comportamentos macabros e perturbadores. Os estupros que são confessados pelos criminosos como momentos de iluminação e triunfo. Como se obrigar alguém a fazer sexo e depois matar representasse a realização de antigos anseios. O assassino de Liliana confessa o crime diante do investigador e da juíza de uma forma inusitada: exibindo o pênis, ele diz que obteve o maior prazer de sua vida ao fazer sexo e assassinar Liliana Colotto. Uma experiência de suprema transgressão, que também encanta o estuprador do filme sueco. “Estuprar é uma experiência fantástica”, diz ele, enquanto começa a enforcar Blomqvyst. “Não existe nada igual a matá-las. O que mais gosto é o olhar delas no momento em que se decepcionam, ao saber que não vou salvá-las, que elas vão morrer. É um instante maravilhoso.”

Por mais que resista por saber que se trata de ficções, o espectador acaba se deixando levar pelo enredo e, talvez, involuntariamente, conduzido a uma situação-limite que poderia ser real. É o que Aristóteles denomina catarse, de purgação dos desejos por meio de um mecanismo de transferência, para usar um termo mais moderno. Durante o processo, sacrificamos, somos sacrificados e, por último, atingimos a purificação. A operação teria um fundamento pedagógico, e resultaria em bom comportamento social. Não estou tão certo disso. Entre o mistério que se apresenta e a possível remissão dos pecados, o caminho me parece tempestuoso. Entre um e outra, existe o apelo da transgressão. O cinema atual induz o espectador a fantasias proibidas, e entre elas tem enfatizado a do estupro. Ora, o estupro como atração erótica é uma distorção. Para mim, estupro é sexo ruim, mesmo em fantasia. Não há tema vedado à arte, se ela é grande. Agora, porém, os diretores têm confundido a exploração do interdito com excelência estética. O resultado só pode ser o rebaixamento dos sentidos – e da reflexão.

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