Feminicídio: Uma proposta de tipologia

Maria Dolores de Brito Mota *

ADITAL – Os crimes de morte contra mulheres continuam acontecendo no mundo todo, fazendo com que feministas de muitos países se apropriem da categoria de feminicídio para denunciar os assassinatos de mulheres motivados por gênero e buscando estabelecer as suas características. No México, foram os assassinatos em Ciudad Juárez(1) e outros na América Latina e Caribe que motivaram uma aproximação à categoria de feminicídio. Recentemente, com o aprofundamento do olhar sobre tais crimes, as feministas argentinas estão desenvolvendo a ideia de feminicídio vinculado como referência às vítimas assassinadas pelo feminicida por sua relação com as mulheres que quer atingir/matar, conforme relata Assunção (23/11/2009)(2).


A cada novo olhar sobre os feminicídios, questões novas surgem, ajudando a construir seu conceito. Uma pesquisa que realizei sobre os assassinatos de mulheres no Ceará divulgados em notícias nos dois maiores jornais cearenses evidenciou elementos que permitem sugerir uma classificação para os tipos de feminicídio. Foram identificadas 256 noticias de assassinatos de mulheres entre 2002 e 2006, dos quais 156(3) foram cometidos com características de feminicídio, sendo classificados de acordo com a relação do feminicida com a vítima e com os motivos alegados para o crime, formando os seguintes tipos:


Feminicídio passional – é o tipo clássico do assassinato de mulheres cometido por homens com os quais as mulheres mantinham ou mantiveram envolvimento amoroso. Foram 122 casos, cujos autores foram maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados, ex-namorados e até apaixonados não correspondidos. Estes crimes estão diretamente ligados às formas de amar e de se relacionar, baseados na ideia de posse e sujeição do feminino pelo masculino, podendo envolver também relacionamentos homossexuais. Os motivos envolvem ciúme e resistência à separação; mas, também pode ocorrer por disputa de bens ou de filhos. O surpreendente foram dois assassinatos motivados por paixão não correspondida, sem qualquer envolvimento das mulheres com o assassino.

Feminicídio por vingança – caracteriza-se por ser assassinato de mulheres querendo atingir também pessoas de suas relações com as quais o assassino tinha desavenças. Foram 14 casos relacionados a situações de brigas, disputas ou acerto de contas dos feminicidas com namorados ou parentes das vítimas. São situações em que a mulher é colocada como alvo mais fácil de uma violência que deve atingir outras pessoas pelo sofrimento que sua morte causa, ou por ser considerada uma propriedade que pode ser subtraída do adversário.

Feminicídio matricida – 4 filhos mataram as mães em circunstâncias envolvendo conteúdo de gênero, em que estavam desempenhando seu papel de mãe, cuidando dos filhos para que não bebessem ou por que tinham problemas mentais.

– Feminicidio filicida – três meninas foram assassinadas por seus pais em circunstâncias com conteúdo de gênero. Um matou a filha de 7 anos por ter sido abandonado pela mulher que espancava; tendo bebido e matado a filha a pauladas e ainda trespassando os seios com cabo de vassoura; outro, assassinou a mulher e a filha de 1 ano e dois meses, queimando-as; outro, matou a filha de 17 anos, espancando-a.

Feminicídio triangular – as circunstâncias são estabelecidas pela existência de um triângulo amoroso, onde a raiva e o ódio de uma mulher é dirigido à outra, a sua concorrente amorosa. Houve três casos em que a mulher foi assassinada por uma rival.

Feminicídio por crueldade – em 6 assassinatos de mulheres, os indícios apontavam para uma vinculação dos motivos do crime com a criminalidade social; mas, o diferencial é que a forma de produção da morte das mulheres expressava uma intensa brutalidade, com sinais de tortura, violência sexual, várias modalidades de instrumentos usados simultaneamente (arma de fogo, faca e pau). Em muitos desses crimes, o corpo das mulheres é despido e queimado após o crime ou como parte dele.

Esse aspecto circunstancial do feminicídio permite ampliar o seu entendimento e perceber que se tomarmos a perspectiva de gênero, o número desses crimes aumenta. A dificuldade é encontrar as informações necessárias para aprofundar a análise.

No Ceará, ao mesmo tempo em que as mulheres avançam na conquista de direitos, aumenta sua participação na esfera pública; ampliam-se as políticas públicas para mulheres; também aumentam os casos de feminicídio. A própria Secretaria de Segurança Pública do Ceará – SSP-CE já mostra preocupação em distinguir os assassinatos de mulheres por questões de gênero, embora se concentre apenas naqueles que são cometidos por motivos relacionados a envolvimento amoroso entre o criminoso e a vítima. Segundo divulgou, em dezembro de 2009(4), dos 147 assassinatos de mulheres ocorridos naquele ano, 57, ou seja, 37% foram considerados crimes passionais.

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Faz-se necessária a discussão sobre a adoção da categoria feminicídio para a denúncia e a compreensão dos assassinatos de mulheres por motivações de gênero. Faz-se necessário também conhecer a dinâmica da produção do feminicídio a partir dos instrumentos usados para matar e dos ferimentos provocados com estes nos corpos das mulheres.

NOTAS

1) ISIS Internacional. O avanço dos direitos humanos e a violência contra mulheres. Femicídio/Feminicídio. Disponível em: http://www.isis.cl/temas/vi/activismo/Portugues/feminicidioPORT.pdf

(2) ASSUNÇÃO, Karol. Mais de 170 mulheres foram vítimas de feminicídio este ano. Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=43185

(3) As notícias são muito superficiais, sem muitos detalhes; assim, consideramos apenas aquelas em que foi possível identificar o feminicida e os motivos do crime.

(4) Jornal O Povo. 8/12/2009.

* Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NEGIF

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