Fabiana Frayssinet, da IPS
Rio de Janeiro, 3/5/2010 – Politicamente incorreto na hora de negociar votos e alianças com a direita, a despenalização do aborto saiu do plano de Direitos Humanos do governo brasileiro e do debate eleitoral, inclusive entre os candidatos mais abertos ao tema.
Congelaram-se os aplausos ao movimento das mulheres diante da efêmera incorporação dos direitos sexuais e reprodutivos femininos no projeto governamental do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3).
O governo decidiu revisar o texto do projeto depois de uma campanha encabeçada pela Igreja Católica, que chegou a chamar de “Herodes” o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em referência à lei da Judeia que ordenou a morte de um grupo de crianças depois do nascimento de Jesus Cristo.
O promotor do PNDH3 e ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, qualificou de “saudável retrocesso” a exclusão da despenalização do aborto fundamentada na “autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos”. O “próprio presidente Lula não tem essa visão”, acrescentou.
Em 2007, durante a visita do papa Bento 16 ao Brasil, o país com mais católicos no mundo, Lula assegurou que seu governo não enviaria ao Congresso nenhuma pauta para despenalizar o aborto, que só é permitido em casos de violação ou quando a vida da mãe corre perigo.
Também foram retiradas propostas como mediação de conflitos agrários, criação de uma Comissão da Verdade para investigar violações dos direitos humanos durante a ditadura (1964-1985) e a proibição de símbolos religiosos em espaços públicos.
O Senado está para iniciar a discussão do projeto do PNDH3 depois de duas discussões na Câmara Federal e passagem por várias comissões, mas não é previsível ainda quando será aprovado pelo Congresso.
As quatro iniciativas excluídas têm em comum o fato de terem sido endemoniadas por uma “ofensiva conservadora”, explicam ativistas sociais.
“São pressões oportunistas, no contexto da disputa para as eleições presidenciais de outubro, de setores conservadores situados na cúpula da estrutura de poder vigente”, disse à IPS Kauara Rodrigues, assessora das áreas de saúde, direitos sexuais e reprodutivos, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria.
A campanha para decidir o sucessor de Lula começa oficialmente em junho, mas já domina a agenda brasileira e movimenta partidos e dirigentes.
As pressões teriam por trás uma aliança de ruralistas (que defendem os interesses dos latifundiários), grandes empresas da área de comunicação, militares e o episcopado católico.
Outro fator comum das propostas retiradas é que responderam a reiteradas reclamações feitas pela sociedade civil durante a longa consulta que antecedeu a elaboração do projeto.
As organizações feministas sentiram como uma “vitória” o “reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos”, lamentou Rodrigues.
Durante o trâmite parlamentar, Vannuchi pretende uma saída intermediária sobre o aborto para que não desagrade a todos, já que não pode agradar a todos.
Em uma audiência na Câmara dos Deputados, o ministro disse que tentará fazer com que o programa incorpore a discussão pela sociedade civil da despenalização, segundo as recomendações da Organização das Nações Unidas.
Para isso, ressaltará que se trata de um assunto de utilidade pública e que as leis proibitivas não solucionam o problema do aborto em parte alguma, explicou.
Beatriz Galli, da organização internacional Ipas, destacou que ao menos assim será mantida “a linguagem” da ONU. Mas descartou que o PNDH3 reincorpore no Congresso o que o país tem de “mais avançado”sobre o aborto, com alusão explicita à despenalização.
No Brasil, com 190 milhões de habitantes, há pelo menos um milhão de abortos clandestinos por ano, que levam a 250 mil entradas em centros públicos de saúde para tratar complicações decorrentes dessas inseguras interrupções da gravidez, que constituem, além do mais, uma das quatro primeiras causas de morte materna.
A penalização do aborto favorece variadas violações dos Direitos Humanos das mulheres, “que são perseguidas, maltratadas, humilhadas e muitas vezes morrem devido à falta de assistência adequada por parte do Estado”, disse Rodrigues.
Galli também atribuiu a atitude do governo às pressões próprias de um ano eleitoral. A aprovação de um tema tão polêmico seria um erro estratégico para seus interesses, acrescentou.
Por isso, a questão é igualmente evitada pelos candidatos presidenciais.
Dilma Roussef, candidata do Partido dos Trabalhadores, agora não se refere ao aborto, embora no ano passado afirmasse que “abortar não é fácil para nenhuma mulher”, e que duvidava que “isso possa justificar a falta de legalização”.
José Serra, do PMDB e líder nas pesquisas, tampouco menciona o aborto, apesar de como ministro da Saúde ter influenciado na aprovação de uma lei que orienta os profissionais da saúde sobre a interrupção da gravidez em razão de violência sexual.
Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente de Lula e candidata pelo PV, segue com sua postura ambígua. Qualifica o aborto como tema “complexo” vinculado à espiritualidade e, ao mesmo tempo, propõe que a sociedade civil deve debater como trata-la e também um plebiscito, disse Galli.
Uma porta-voz da ministra da Secretaria Especial da Mulher, Nilcéa Freire, disse à IPS que ela “não está se pronunciando sobre o tema”, quando foi pedido seu ponto de vista.
O argumento da porta-voz é o de não mostrar diferenças dentro do governo sobre a questão.
A cor da penalização
Estudo recente do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro revela que o risco de morrer por aborto é muito maior entre as mulheres negras e mulatas do que entre as grávidas brancas.
O estudo diz que a possibilidade de morte de uma mulher negra cuja gestação acabou em aborto é 2,5 vezes maior do que de uma branca.
“As mulheres negras são mais vulneráveis. Não têm recursos para ir a clínicas clandestinas e usam métodos perigosos de aborto, que aumentam os riscos e as complicações”, destacou Mario Monteiro, coautor do estudo.
Por exemplo, no Estado da Bahia, onde a população é majoritariamente negra, o aborto é a primeira causa de morte materna desde o começo da década de 90, segundo dados do Ipas.
O estudo faz refletir sobre “a criminalização do aborto estar condenando à morte as mulheres negras”, disse Margareth Arilha, diretora-executiva da Comissão de Cidadania e Reprodução do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.
Os pesquisadores estão convencidos de que a despenalização do aborto ajudaria a reduzir a taxa de complicações e mortes que sua ilegalidade provoca. IPS/Envolverde
(IPS/Envolverde)