Maria Dolores de Brito Mota *
Adital – O enfrentamento à violência de gênero praticada contra as mulheres tem se ampliado desde 1985 quando foi criada a primeira Delegacia de Defesa da Mulher em São Paulo, resultado de um ciclo de 10 anos de luta feminista e social.
Essa violência havia se tornado mais evidente desde o assassinato de Ângela Diniz por seu parceiro Doca Street, no réveillon de 1976, acontecimento que, envolvendo personagens da alta sociedade carioca, desvelou a prática de agressões e de assassinatos de mulheres por parceiros como uma questão presente em todas as classes sociais. Desde então os movimentos de mulheres e feministas têm atuado na pressão e no acompanhamento à implementação de políticas públicas voltadas para a prevenção, o combate e a punição da violência sexista contra as mulheres. Segundo a Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República, em 2008 existiam no país 418 delegacias especializadas para o atendimento a mulheres, 216 conselhos estaduais e municipais da mulher, cerca de 234 órgãos governamentais e 229 não governamentais de atendimento às mulheres. Com a criação e implementação da Lei Maria da Penha, de combate e prevenção à violência doméstica contra as mulheres, em setembro de 2006, aumentaram os equipamentos, projetos e ações voltados para a defesa e garantia dos direitos das mulheres. Assim, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo ampliaram-se os esforços para o combate e a prevenção da violência contra mulheres, consolidando os seus direitos humanos e formando uma nova consciência social sobre os papeis e significados de ser homem e ser mulher.
No entanto, na medida em que ocorrem esses avanços, tornam-se mais visíveis os mecanismos de dominação e violação dos direitos das mulheres, passíveis de novas formas de sujeição de gênero. É nesse âmbito que nos deparamos com o aumento das denúncias dos assassinatos de mulheres que em vários lugares do mundo estão sendo denominados ‘feminicídio’; um conceito ainda em construção, introduzido na teoria feminista por Diana Russel e Jane Caputi no artigo “Femicide: Speaking the Unspeakable”, publicado em 1990 e depois no livro “Femicide: The politcs of women killing”, de Diana Russell e Jill Radford, em 1992(1). O eixo da discussão que as autoras estabelecem é a natureza dos assassinatos das mulheres por homens, sobretudo, seus parceiros amorosos(2).
A morte de mulheres emerge como resultado da cultura patriarcal, que normaliza e reforça atitudes de controle e de violação das mulheres por parte dos homens, estabelecendo a engrenagem social para a prática de violências contra as mulheres, pelo fato de serem mulheres; chegando até a sua forma mais bárbara no feminicídio. Para Russel e Caputi (1990) o feminicidio “é o extremo de um continuum de terror antifeminino, e inclui uma ampla variedade de abusos verbais e físicos… Sempre que estas formas de terrorismo resultam em morte, elas se transformam em feminicidio”. Segundo Segato (2006), a intenção das autoras é “desmascarar o patriarcado como uma instituição que sustenta o controle do corpo e a capacidade punitiva sobre as mulheres e mostrar a dimensão política de todos os assassinatos de mulheres que resultam desse controle e capacidade punitiva, sem exceção”.
As questões introduzidas pelas ideias das autoras referidas -Russel, Caputi, Segato- deslocam o entendimento dos assassinatos passionais de mulheres do âmbito da tragédia e do descontrole de homens imersos em paixões descontroladas, para o âmbito da cultura patriarcal, cujos valores e práticas colocam os homens em posição de posse e controle do corpo (e da vontade) feminino; atribuindo-lhes capacidade (e legitimidade) punitiva para as situações em que as mulheres reagem, ou se opõem a esse controle. Segato introduz em seu texto a discussão sobre qual dos crimes contra mulheres podem ser considerados feminicídios de modo a distinguir os crimes de gênero daqueles decorrentes de outras formas de criminalidade. Argumenta a favor do uso da categoria feminicídio retirando os crimes contra mulheres da categoria de homicídios, de modo a demarcar, frente aos meios de comunicação e a toda a sociedade, os crimes do patriarcado contra as mulheres.
Assim, a força política da categoria feminicídio se evidencia por sua capacidade de ampliar o entendimento sobre os assassinatos de mulheres que decorrem dos padrões sociais e dos traços simbólicos que legitimam a dominação masculina. Torna possível compreender os mecanismos sociais e simbólicos que constroem esses crimes, revelando-os como engendrados, decorrentes de relações de gênero, patriarcais, revelando-os como crimes culturais contra as mulheres, um crime político.
Notas:
(1) SEGATO, 2006.
(2) O artigo “Feminicide” de Diana Russel e Jane Caputi está disponível no endereço da internet: http://www.dianarussell.com/femicide.html
Referências bibliográficas
CENTRO de la Mujer Peruana Flora Tristan. La violencia contra la mujer: feminicidio en el Perú. 2005.
RUSSELL, Diana e CAPUTI, Jane. Feminicide. Disponível em: http://www.dianarussell.com/femicide.html
SEGATO. Rita Laura. ¿Qué es un feminicidio? Notas para un debate emergente. Série Antropologia nº 401, UNB, Brasília, 2006.
* Socióloga, Profª da UFC, Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família, NE
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