Papa não fez nada para prevenir abusos do clero, diz vítima nos EUA

Barbara Blaine preside rede norte-americana de vítimas de pedofilia. Ao G1, ela diz que Bento XVI continuou política de acobertar agressores.

Amauri Arrais Do G1, em São Paulo

Envolto na recente onda de denúncias de abusos sexuais de menores envolvendo padres em vários países, o papa Bento XVI, que completou nesta segunda-feira (19) cinco anos de papado, vem empenhando esforços para minorar os efeitos das acusações.

Nas últimas semanas, o papa escreveu uma carta pedindo perdão aos católicos da Irlanda, disse que a Igreja deve “penitência” pelos seus erros e, no último domingo, encontrou vítimas de abusos em Malta. Mas para a advogada norte-americana Barbara Blaine, que preside a SNAP (Rede de Vítimas de Abusados por Padres, em tradução livre), o pontífice não fez “nada de tangível” para prevenir novos casos.

barbaraBarbara (à direita) com foto dela criança durante protesto em 25 de março no Vaticano. (Foto: Reuters)


“Bento XVI sabe muito bem como os casos de abuso se espalharam pela igreja desde quando ainda concorria ao cargo. Em vez de usar seu papado para proteger as crianças, ele simplesmente continuou a mesma política patética dos seus antecessores, que é a de esconder os crimes, proteger os acusados da lei e transferi-los para outros cargos”, disse Blaine em entrevista ao G1.

Para a americana, “encontrar meia dúzia de vítimas, rezar e derramar lágrimas não vai proteger as crianças”. Ela mesma uma vítima de abuso sexual por um padre na infância, Blaine diz que o efeito do abuso foi “mais devastador” quando descobriu que a Igreja poderia ter evitado que o mesmo ocorresse a outras crianças, mas não o fez.

barbara blaine americana snap vítima abusoA advogada Barbara Blaine, que
preside a rede de vítimas SNAP
(Foto: Divulgação)

“Eles sabiam desde o início de 1969 que o padre estava abusando de meninas, mas permitiram que continuasse a exercer o sacerdócio e abusar de crianças até 1992, quando eu fui convidada para participar do programa da Oprah [Winfrey] e ameacei denunciá-lo. Eles só o afastaram temendo a repercussão negativa, não porque fosse a coisa certa a fazer”, desabafa.

Fundada em 1988 por Blaine em Chicago, a rede informa ter hoje mais de 9 mil membros espalhados por Estados Unidos, Canadá e México. Em seu site, a organização informa que, apesar da palavra “padre” no título, recebe denúncias de abusos cometido por religiosos de várias confissões religiosas. O objetivo da entidade é compartilhar as histórias de vítimas de abusos para diminuir o sofrimento delas, além de, pela educação, tentar prevenir a ocorrência de novos casos.

Leia a seguir mais trechos da entrevista de Barbara Blaine ao G1.

G1 – Por que tantas denúncias de abusos de menores envolvendo padres apareceram recentemente?
Barbara Blaine –
Em parte, porque há centenas de milhares de casos pelo mundo, e, cada vez mais, as vítimas estão tendo coragem e vendo a importância de falar, proteger outras pessoas, expor suas feridas e começar a tratar delas. Quando os relatos de vítimas são publicados, outras decidem fazer o mesmo. Muitas dessas pessoas relatam quão dolorido e difícil foi para elas falar. A grande maioria continua no anonimato e não quer falar publicamente. Muitos não querem que ninguém (mesmo familiares, colegas de trabalho, vizinhos etc.) saibam sobre o abuso.

G1 – Muitos vaticanistas apontam o papado de Bento XVI, que completou cinco anos nesta segunda, como o com maior número de escândalos na história recente da Igreja Católica. Como a senhora vê esse período?
Blaine –
Na melhor perspectiva, é uma oportunidade perdida. Na pior, é trágico, porque nada vem sendo feito para acabar com este tipo de crime contra crianças no futuro e seu acobertamento. Bento XVI sabe muito bem como os casos de abuso se espalharam pela igreja desde os anos que concorreu à papa. Em vez de usar seu papado para proteger as crianças, ele simplesmente continuou a mesma política patética dos seus antecessores, que é a de esconder os crimes, proteger os acusados da lei e transferi-los para outros cargos. Enquanto os companheiros ao redor dele continuam a exaltar seus feitos, nós continuamos a perguntar por evidências. Encontrar meia dúzia de vítimas, rezar e derramar lágrimas não vai proteger as crianças. Apenas passa a aparência de que ele está preocupado sobre o assunto, mas não protege as crianças. Se o papa quisesse protegê-las, pode decidir punir alguns bispos que sabiam de casos de abusos sexuais e transferiram os padres acusados. Bento XVI não fez nada de tangível que faça diferença.

G1 – Houve um aumento no número de denúncias ao SNAP nos últimos meses?
Blaine –
Nós não contabilizamos denúncias, somos um grupo de apoio. Oferecemos informação, apoio e atividades aos sobreviventes e seus familiares e companheiros. Estamos ouvindo vítimas de vários países. Muitas relatam que seus agressores ainda estão em atividade (não muito diferentes dos rapazes que denunciaram padres em Malta que encontraram com o papa no domingo).

O papa Bento XVI cercado de cardeais durante a celebração  desta segunda-feira (19).O papa Bento XVI cercado de cardeais durante a celebração de 5 anos de papado, na segunda-feira (19). (Foto: AP)

G1 – Entidades que defendem a Igreja Católica dizem que há um grande número de abusos de crianças em outras religiões também. A Igreja é mais visada?
Blaine –
Os relatos na mídia são verdadeiros. Representantes da Igreja Católica estão protegendo abusa

dores sexuais e permitindo que eles continuem a trabalhar na Igreja. Não sei que tipo de entidade pode defender esse comportamento. Mas independente disso, nós esperamos que autoridades da Igreja estejam acima disso, já que deveriam estar mais próximas de Deus, serem generosos de espírito etc. Seria infantil para autoridades da Igreja se justificarem dizendo: “Bem, outros também fazem isso”. Nós aprendemos no primário que se outros se comportam mal isso não deve servir de desculpa para fazermos o mesmo.

G1 – O que a senhora achou do discurso do ‘número 2’ do Vaticano, Tarcisio Bertone, que relacionou a pedofilia à homossexualidade?
Blaine –
Me pareceu um esforço para desviar a atenção da realidade. A questão é que bispos estão acobertando abusadores, protegendo-os da polícia e transferindo-os para novas paróquias quando eles abusam de crianças. Se alguns dos bispos que fazem isso fossem punidos, os demais entenderiam que eles devem proteger as crianças. Além disso, o discurso bizarro errou ainda ao não considerar as milhares de mulheres que são abusadas por padres – um insulto a essas vítimas, o que implica que esse tipo de abuso não é significante, só os casos envolvendo homens importam.

G1 – Por outro lado, a senhora acredita que o celibato tem alguma influência nesse tipo de comportamento?
Blaine –
A principal razão por que padres continuam a abusar de crianças é a impunidade. Se bispos pararem de acobertá-los e de permitirem que continuem a exercer o sacerdócio e, em vez

“Eles sabiam desde o início de 1969 que o padre estava abusando de meninas, mas permitiram que continuasse a exercer o sacerdócio e abusar de crianças até 1992, quando eu fui convidada para participar do programa da [apresentadora] Oprah [Winfrey] e ameacei denunciá-lo.”

disso, passarem a denunciá-los à polícia, talvez isso faça com que parem – ou pelo menos não sejam promovidos e transferidos a outros lugares onde possam abusar de mais crianças.

G1 – É possível combater a conivência desses bispos dentro da própria Igreja Católica?
Blaine –
Somente com um grande envolvimento de autoridades da Igreja e a reforma de leis seculares que são favoráveis aos agressores. Se governantes começarem a prender os agressores e aqueles que os protegem, ele vão parar. Além disso, expor a questão – em entrevistas como essa – ajudam na prevenção.

G1 – Em sua biografia no site da SNAP, a senhora diz ter sido vítima de abuso por um padre quando criança. Como isso afetou sua vida?
Blaine –
O impacto foi devastador, quase me matou. Roubou minha infância e prejudicou meu relacionamento com familiares e colegas, o que me obrigou a crescer com um terrível problema de auto-estima, me sentindo inferior, culpada e constrangida por décadas. Ele me fez acreditar que eu tinha culpa, e eu pensava que havia algo errado comigo. Demorou anos para superar o dano, e eu perdi a oportunidade de ter meus próprios filhos. Foi mais devastador descobrir que os representantes da Igreja poderiam ter evitado meu abuso, mas não o fizeram. Eles sabiam desde o início de 1969 que o padre estava abusando de meninas, mas permitiram que continuasse a exercer o sacerdócio e abusar de crianças até 1992, quando eu fui convidada para participar do programa da [apresentadora] Oprah [Winfrey] e ameacei denunciá-lo. Eles só o afastaram temendo a repercussão negativa, não porque fosse a coisa certa a fazer. Eu me reuni com outras vítimas que entenderam minha situação e me ajudaram a superar. Também acho que isso ajuda a proteger outras crianças, já que eu não sou capaz de voltar no tempo e recuperar a minha infância. Acho que o sofrimento que suportei pode ajudar a prevenir que outra criança seja abusada. É por isso que eu trabalho em prevenção.

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