Cerca de 25% dos americanos reprovam pontífice, acusado de ocultar casos de pedofilia
France Press
O papa Bento 16 abençoa fiéis durante procissão; pesquisa de rede de TV dos EUA mostra que 24% dos americanos desaprovam o líder da Igreja Católica
O papa Bento 16 perdeu popularidade entre os americanos após uma série de denúncias de pedofilia contra padres católicos nos Estados Unidos e na Europa, mostra uma pesquisa do canal CBS News.
A sondagem, divulgada nesta sexta-feira (2) e realizada entre 29 de março e 1º de abril, mostra que 24% dos americanos desaprovam o papa, contra apenas 4% registrados em 2006.
O índice de aprovação do pontificado de Bento 16 permanece em 15%, o mesmo percentual dos últimos quatro anos. A sondagem ouviu 858 pessoas e tem margem de erro de 3% para mais ou para menos.
A onda de escândalos de padres pedófilos afeta a Igreja Católica de vários países da Europa, entre eles a Alemanha, país de nascimento do pontífice, assim como os Estados Unidos, onde milhares de casos foram denunciados desde o ano 2000.
Nos EUA, um advogado apresentou do Estado de Kentucky um pedido para que o papa testemunhe sob juramento nos processos contra os padres pedófilos.
Papa não puniu pedófilo quando era bispo
Um dos escândalos mais graves foi denunciado pelo jornal americano The New York Times. Em reportagem publicada no dia 26 de março, o diário afirma que cardeal Joseph Ratzinger, que depois viria a se tornar o papa Bento 16, não fez nada para impedir que um padre acusado de pedofilia retomasse o sacerdócio em uma outra paróquia na Alemanha, em 1980.
Segundo o Times, no final de 1979, em Essen, Alemanha, o padre Peter Hullermann foi suspenso após várias queixas de pais que o acusavam de pedofilia. Uma avaliação psiquiátrica teria reforçado as suspeitas.
Algumas semanas depois, em janeiro de 1980, o cardeal Ratzinger, futuro papa Bento 16, que na época era arcebispo de Munique, dirigiu uma reunião durante a qual a transferência do padre de Essen para Munique foi aprovada. O futuro pontífice recebeu, alguns dias depois, uma nota que informava o retorno de Hullermann ao serviço pastoral.
Em 1986, o mesmo padre foi declarado culpado de ter agredido sexualmente meninos em uma outra paróquia de Munique, após a transferência para a cidade bávara.
Comparação de ataques contra o papa com antissemitismo gera polêmica
Rádio França Internacional/ Reuters
Comunidades judaicas e vítimas de abusos sexuais cometidos por padres reagiram com indignação à comparação dos ataques a Bento 16 por causa dos casos de pedofilia na Igreja com antissemistismo feita por pregador do papa.
O secretário-geral do Conselho Geral dos judeus da Alemanha, Stephan Kramer, qualificou a mensagem do sermão como “impertinência e insulto em relação às vítimas dos abusos sexuais e às vítimas do Holocausto”.
O rabino de Roma, Riccardo Di Segni, disse ao jornal italiano La Stampa que a mensagem lida durante a missa pelo padre Cantalamessa foi “uma falta de bom senso” e considerou a comparação “inapropriada”. Ele também alertou para os rumores que circulam no meio católico de que os ataques teriam sido manobra do lobby judeu.
Fundador do Centro Simon Wiesenthal de luta contra o antissemitismo, Marvin Hier
exige um pedido de desculpas do papa pelo que considerou uma “deformação total da história” e “observações injuriosas e vergonhosas”.
Nos Estados Unidos, David Clohessy, diretor da SNAP, grupo que reúne vítimas americanas de padres pedófilos, lamentou as declarações do pregador do papa. “Dói no coração ver um alto responsável na hierarquia do Vaticano fazer observações tão duras, que são um insulto não apenas para as vítimas dos abusos sexuais como para os judeus”, disse.
A nova polêmica veio à tona momentos antes de o Papa Bento 16 celebrar na Basílica de São Pedro a tradicional vigília pascal.
Vaticano
O porta-voz da Santa Sé, Federico Lombardi, declarou neste sábado que não se deve fazer comparações entre os escândalos de pedofilia atribuídos à Igreja Católica e críticas a Bento 16 com o antissemitismo.
“Fazer um paralelo entre os ataques contra o papa pelos escândalos de pedofilia e o antissemitismo não é a diretriz seguida pela Santa Sé”, disse Lombardi para a Rádio Vaticano em referência à polêmica envolvendo o padre Raniero Cantalamessa.
Na noite de sexta-feira, durante o sermão da liturgia da Paixão de Cristo, o padre franciscano Cantalamessa, pregador do papa, leu uma carta de solidariedade enviada por um amigo judeu ao papa e à Igreja Católica. “Estou revoltado com o ataque violento e concêntrico contra a Igreja (e) o papa”, escreveu o autor da carta. “O uso do estereótipo, a atribuição da responsabilidade e des erros de particulares à um erro coletivo me lembra os aspectos mais vergonhosos do antissemitismo”, acrescentou.
O porta-voz do Vaticano considerou que o padre Cantalamessa quis apenas “tornar pública a solidariedade ao papa expressa por um judeu à luz da experiência da dor sofrida por seu povo”. A Rádio Vaticano publica em seu site a cópia integral da carta do amigo judeu do padre Cantalamessa.
Vários artigos publicados na imprensa da Alemanha e dos Estados Unidos acusam o então cardeal Joseph Ratzinger a manter o silêncio diante de denúncias de abusos de padres contra menores. Na época, ele dirigia a Congregação para a doutrina da fé, órgão responsável pelo destino dos padres na Igreja, antes de se tornar o papa Bento 16, em 2005.
“ACUSAÇÕES AO PAPA”
Editorial da Revista ISTOÉ
Carlos José Marques, diretor editorial
Uma forte discussão toma conta do mundo depois da revelação de que padres conterrâneos do papa, e sob seu comando, quando ele ainda era car deal, praticaram atos de pedofilia. A questão é se o papa, ao saber do ocorrido e ao não tomar providências, foi ou não conivente com o crime. Independentemente da resposta, de uma maneira ou de outra, não caberá qualquer tipo de pena ao sumo pontífice. Pela natureza de sua condição, efetivamente um homem acima do bem e do mal, a ele não são aplicados os trâmites habituais de um processo de investigação e posterior julgamento. O papa é inalcançável pela Justiça terrena. Inimputável por qualquer acusação que lhe seja feita, de qualquer natureza ou gravidade. Afinal, como representante direto de Deus, herdeiro de Pedro, líder máximo dos católicos e do Vaticano, canonicamente carrega virtudes suficientes para cobrir suas eventuais falhas.
A discussão do problema para então por aí? Naturalmente que não. Sobre os templos sagrados da
Igreja – não apenas a católica, é bom lembrar – ainda paira a suspeita de abusos sexuais inaceitáveis, praticados por alguns daqueles que dizem trazer a palavra do Senhor. A aberração é guardada sob o manto do sigilo há séculos, mas o avassalador aumento das práticas de pedofilia levou ao vazamento do problema para fora das grossas paredes dos templos e diz muito do atual estágio de caduquice das regras de conduta impostas aos que abraçam o sacerdócio. A doutrina celibatária que proíbe o casamento de padres, e mesmo de freiras, deveria ser revista à luz dos acontecimentos como maneira de, se não eliminar, ao menos abrandar a escalada do mal. Como demonstração de contemporaneidade, em sintonia com os anseios da sociedade mundial, o papa deveria convocar um novo concílio para debater o tema e, quem sabe, conduzir a reformulação da doutrina que cerceia ao seu corpo eclesiástico aquele que é talvez o mais elementar dos impulsos humanos: o do desejo. Quem sabe assim, com a quebra desse dogma, o distúrbio de práticas sexuais covardes seja enfim banido do ambiente religioso.
Carta a um pedófilo | |||||
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Pedofilia faz católicos questionarem
se não é hora dos padres se casarem
Teólogo suíço diz que o celibato é uma das razões dos abusos; sociólogo católico discorda
Maurício Moraes, do R7
A onda de escândalos sexuais que abala a Igreja Católica fez reabrir a discussão em torno do celibato, a regra quase milenar que proíbe os padres de se casarem. Para o polêmico teólogo suíço Hans Küng, esta é das razões pelas quais centenas de padres abusaram sexualmente de crianças. Já o sociólogo católico Francisco Borba Neto, da PUC-SP, discorda e diz que os casos de p
edofilia não ocorrem em maior frequencia na igreja do que em outros ambientes, como nas escolas.
Küng fez barulho há duas semanas ao publicar o artigo “Acabem com o celibato!” no jornal alemão Sueddeutsche Zeitung. O teólogo disse ao R7, em entrevista por e-mail, que “não quer dissipar suas energias” neste momento, após as críticas que recebeu, mas prometeu voltar ao assunto no aniversário de cinco anos da ordenação de Bento 16, em 19 de abril. Ele e o papa já foram colegas, quando trabalharam como professores de teologia na Universidade de Tübingen, nos anos 60. As posições libertárias de Küng fez o Vaticano impedi-lo de seguir ensinando teologia católica em 1979.
Arcebispo austríaco também levantou a discussão
Mas Küng não é o único a contestar o celibato católico. Na esteira dos abusos sexuais que vieram à tona nas igrejas da Irlanda, da Alemanha e dos EUA, o arcebispo de Viena (Áustria) também ligou o problema à questão do (não) casamento dos padres. No último dia 11 de março, o cardeal Christoph Schonborn disse que entre as causas da pedofilia na Igreja Católica está “a educação dos sacerdotes, assim como as consequências da revolução sexual da geração de 1968 e o celibato como desenvolvimento pessoal”. O religioso pediu uma “mudança de visão” sobre o celibato.
Para o sociólogo católico Francisco Borba Neto, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, autorizar o casamento de padres não vai diminuir o problema da pedofilia na igreja:
– A pedofilia não é um problema maior dentro da igreja do que no do universo das pessoas que trabalham com crianças e adolescentes. Mesmo nas escolas, casos desse tipo são frequentes.
Mas não é o que pensa o teólogo Küng:
“Não se pode negar que casos de abuso [contra menores] são encontrados nas famílias, escolas, associações e [outras] igrejas. Mas porque é tão prevalente precisamente na Igreja Católica, sob liderança de religiosos celibatários? Naturalmente, o celibato não é a única causa deste desvio de conduta. Mas é a mais importante e a mais decisiva expressão de uma antiquada atitude da Igreja [Católica] em relação à sexualidade em geral, postura que também aparece na questão do controle da natalidade [já que o Vaticano proíbe o uso de camisinha, por exemplo].
Até o século 11, o casamento era comum entre os padres católicos, a não ser em algumas ordens religiosas específicas, que pediam a dedicação exclusiva de seus membros à igreja. A norma como se conhece hoje foi confirmada pelo papa Gregório 7, em 1071 d.C..
Segundo Küng, a regra do celibato estabeleceu um grupo “à parte do resto dos cristãos, uma classe única, socialmente dominante, radicalmente superior aos fieis mas completamente subordinada ao papa”.
Escândalos fazem parte da história da igreja
Os escândalos de pedofilia, que envolvem diretamente a figura do papa Bento 16, já são vistos como a pior crise vivida pela igreja desde as suspeitas de que o papa Pio 12 fechou os olhos ao Nazismo, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Bento 16 abrigou padre pedófilo quando era bispo
Borba Neto minimiza o impacto do caso, dizendo que “não faltam escândalos na história da igreja” e que “os escândalos serão digeridos com o tempo e a igreja [Católica] vai seguindo”.
Para o sociólogo, “o problema foi que inicialmente a igreja não soube se colocar de forma adequada diante do problema, antes de 2004 a 2005. Falou clareza para enfrentar o problema e isso tem melhorado nos últimos anos. O divisor de águas é a carta do papa Bento 16 aos católicos irlandeses”.
Segundo Borba Neto, a carta estabelece parâmetros sobre como os bispos devem atuar diante de casos de abusos sexuais contra crianças. Ele diz que a partir de agora, tais casos serão investigados dentro da igreja mas os responsáveis também podem responder na Justiça comum.
– A única coisa que a igreja pode fazer é que se cumpra a lei dos homens. A César o que é de Cesar, a Deus o que é de Deus. A alma dos pedófilos será entregue à ele [Deus].
Bento 16 sabia dos abusos?
Para muitas vítimas de abusos cometidos por padre, o papa Bento 16 sabia dos casos e não fez nada, o que o Vaticano nega. Para a diretora da organização americana Snap, Barbara Dorris, o caso das 200 crianças surdas abusadas por um padre nos EUA foi documentado e enviado ao então futuro papa, o cardeal Ratzinger, na época prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Apesar do pedido de desculpas do papa, endereçado apenas as católicos da Irlanda, num momento em que há casos por toda a parte, não é suficiente, segundo Barbara, que foi estuprada por um padre em Saint Louis, no Estado do Missouri, quando tinha sete anos:
– Não vemos nenhuma mudança [na postura da Igreja Católica]. Eles dizem que estão arrependidos, mas não há indicação de nenhuma ação.
Küng também diz que Bento 16 sabia dos abusos:
“Em 18 de maio de 2001, o cardeal Ratzinger [hoje papa Bento 16] enviou a todos os bispos uma carta (Epistula de delictis gravioribus), sobre sérios crimes, nos quais os casos de abuso foram colocados sob ‘segredo papal’ (“secretum Pontificium”).”
Confira também
Bento 16 condena injustiça do aborto, mas não menciona pedofilia
da Folha Online – 1/4/2010
O papa Bento 16 afirmou nesta quinta-feira, em celebração crismal, que os cristãos não devem aceitar injustiças, como “o assassinato de crianças inocentes que ainda não nasceram”, mas não citou os casos de pedofilia que assolam a Igreja Católica da Europa e Estados Unidos.
Na solenidade, que integra as celebrações da Páscoa e na qual são abençoados os óleos santos, o pontífice defendeu que os direitos devem ser respeitados, já que são “o fundamento da paz”.
“Também hoje é importante os cristãos não aceitarem uma injustiça que é elevada a direito, por exemplo, quando ocorre o assassinato de crianças inocentes que ainda não nasceram”, exemplificou Bento 16, referindo-se à legalização do aborto.
A nova condenação do papa ao aborto coincide na Itália com a chegada aos hospitais do país dos primeiros lotes da pílula abortiva RU486, que teve a comercialização autorizada em dezembro após um longo debate no Parlamento.
O novo presidente da região de Piamonte, Roberto Cota, um político de direita eleito na segunda-feira, aumentou a polêmica ao afirmar que é a favor da defesa da vida e que a pílula deve ficar nos estoques, sem distribuição em sua região.
Durante a missa, celebrada na Basílica de São Pedro, no
Vaticano, o papa comentou que “a luta dos cristãos consistia, e consiste, não no uso da violência, mas no fato que eles estavam, e ainda estão, prontos a sofrer pelo bem, por Deus”.
“Consiste no fato que os cristãos, como bons cidadãos, respeitam o direito e fazem o que é justo e bom. Consiste no fato que repudiam fazer o que nos ordenamentos jurídicos não é direito, mas injustiça”, destacou.
Às 17h30 (12h30 no horário de Brasília), Bento 16 celebrará a Missa da Ceia do Senhor e dará início ao Tríduo Pascal, na Basílica de São João de Latrão.
Injustiças
O pontífice não fez nenhuma menção às recentes denúncias de abusos sexuais contra sacerdotes em dioceses e escolas católicas de diversos países, como Alemanha, país natal do pontífice, Irlanda, México, Itália, Estados Unidos, entre outros.
O escândalo sobre os acobertamentos de abusos sexuais de crianças por parte de padres foi revelado na Igreja Católica da Irlanda e atingiu o Vaticano com intensidade ainda maior que o escândalo semelhante que atingiu os Estados Unidos oito anos atrás.
Desta vez, o escândalo vem chegando perigosamente perto do próprio papa, na medida em que os grupos de vítimas disseram que querem saber como ele tratou desses casos antes de sua eleição a papa, em 2005.
Muitas alegações de acobertamentos de abusos sexuais envolvem Munique, na época em que o papa foi arcebispo da cidade, entre 1977 e 1981. Grupos de vítimas pedem ainda informações sobre as decisões tomadas pelo papa na época em que dirigiu o departamento doutrinal do Vaticano, entre 1981 e 2005.
Os casos de pedofilia atingiram ainda a Holanda, onde a Igreja Católica recebeu 1.100 denúncias de pessoas que afirmam ter sofrido abusos sexuais por parte de membros do clero entre os anos 50, 60 e 70.
Na Alemanha, as denúncias de pedofilia chegam a 120 e teriam ocorrido entre as décadas de 1970 e 1980 em escolas jesuítas locais. O caso envolveu até mesmo o sacerdote Georg Ratzinger, irmão do papa, que liderava os rapazes do coro da catedral de Regensburg. O sacerdote negou saber dos casos de abusos e foi inocentado pelo Vaticano.
Na semana passada, na Áustria, a imprensa local noticiou casos de abusos cometidos em dois institutos religiosos nas décadas de 1970 e 1980.
Na Espanha, o Vaticano disse saber de 14 casos de abuso sexual de crianças, que teriam ocorrido de janeiro de 2001 até março de 2010, na Igreja Católica da Espanha.
De acordo com a imprensa espanhola, entre as suspeitas há pelo menos dez sentenças já emitidas por tribunais civis e quatro processos abertos por abusos similares cometidos por religiosos antes de 2001. No total, são 25 sacerdotes e religiosos espanhóis implicados em pedofilia nos últimos 20 anos.
O jornal “The New York Times” informou em seu site que as maiores autoridades do Vaticano, incluído o então cardeal Joseph Ratzinger, que anos mais tarde se tornaria o papa Bento 16, encobriram um sacerdote americano acusado de abusar sexualmente de 200 crianças surdas.
O jornal teve acesso a documentos que procedem do processo judicial aberta contra o reverendo Lawrence Murphy, que trabalhou durante mais de 20 anos, entre 1950 e 1974, em uma escola para crianças surdas do Estado americano de Wisconsin.
O Vaticano reconheceu ainda os abusos cometidos por dois monsenhores e um padre do município de Arapiraca, a 130 quilômetros de Maceió (AL), depois de terem sido acusados de pedofilia por alunos de um coro e por seus familiares.
Com Ansa e France Presse
Folha Online – 1/4/2010
Pedofilia, demofobia e fotofobia Por Eugênio Bucci* |
No domingo (28/3), o “Segundo Caderno” de O Globo trouxe uma seção de heresias hilariantes. Ou seriam apostasias cômicas? A ver. Na contracapa do caderno, sob o título de “Entrando pelo Vaticano”, na seção de humor assinada pelo fictício “Agamenon Mendes Pedreira”, lá estavam, enfileiradas, piadas impiedosas contra as autoridades eclesiásticas. Ao menos a meu juízo, eram engraçadas.
Também a meu juízo, eram de gosto um tanto duvidoso. De qualquer maneira, não interessa, aqui, saber se elas são ou não são de mau gosto – o que é impossível definir, uma vez que se trata de uma questão, como já se disse, de gosto. Também não interessa a discussão sobre a “qualidade” dessa escola de humorismo. Não importa saber se a sátira, nesse caso, “funciona” ou não funciona. Comigo funcionou. Mas terá funcionado igualmente para todos? Será que o leitor médio do jornal gargalhou ou ficou chocado, tomado por alguma faísca de ira santa? Será difícil saber.
O que interessa, e só por isso toco no assunto, é registrar que uma barreira histórica desmoronou. Há poucos anos, seria impensável que um grande diário publicasse enxovalhos tão corrosivos contra bispos, cardeais e o próprio papa. O jornal pensaria duas, três, oitenta vezes – e depois teria medo de ofender seu leitorado. Teria medo de perdê-lo. Agora, esse medo já não se coloca – e é aí que a barreira caiu.
O noticiário vasto e demolidor sobre crimes sexuais cometidos por sacerdotes – e também sobre as tentativas de abafar esses abusos – já cuidou de nocautear o leitorado mais apegado às tradições católicas e, por isso mesmo, já tratou de legitimar o humorismo. As batinas agora se prestam à galhofa das publicações do mainstream. Já estão bastante indignados com os fatos, os leitores não vão perder tempo com os piadistas. Sabem bem que a falta de respeito não foi inventada pelos humoristas, mas começou pela conduta dos próprios religiosos, tanto os que abusaram de crianças como os que os acobertaram.
No meio disso, a coluna do popular Agamenon serve de sinal dos tempos. Cito um trecho:
“Consternado diante de tantos escândalos sexuais, o Papa Bento XVI centímetros foi até a sacada do Vaticano e perguntou à multidão de fiéis na Praça São Pedro: `Tem culpa, eu?´. Vários sacristãos se ofereceram em sacrifício. Enciumados, os padres brasileiros não quiseram ficar atrás (mas depois trocaram). O Bispo de Arapiroca, quer dizer, Arapiraca, colocou na Internet um vídeo onde faz sexo com menores.”
É mole?
É tudo campanha da imprensa?
Comecei este artigo dizendo que a seção de O Globo trazia heresias hilariantes – ou mesmo apostasias cômicas. Não creio que tenha sido uma qualificação bem posta. Somente a Santa Sé pode definir o que é uma conduta herética, e, como bem sabe o leitor, eu não a represento. Quanto ao que é cômico ou hilário, isso depende. Não da Santa Sé. Isso depende mais de você do que de mim. Assim, não tento mais qualificar nada disso. Apenas sei que, há bem pouco tempo, essas palavras passariam por heréticas, isso passariam. Seus autores teriam que ajoelhar no milho. Suas posses seriam confiscadas. Confessariam pactos com o demônio na roda da tortura. Hoje, entretanto, a santidade dos que representam Deus na Terra está em xeque. E o pessoal morre de rir. Sinal dos tempos, sem dúvida.
Não nos ocupemos então de analisar o pesadelo do Vaticano. Não especulemos se toda a sua imensa fortuna irá se desfazer em indenizações a dezenas de milhares de seres humanos seviciados em sacristias ou casas paroquiais. A revista Veja desta semana (nº 2158, de 31/3/2010) conta que, só nos
Estados Unidos, a igreja católica desembolsou mais de 2,5 bilhões de dólares em indenizações e custas processuais. Deixemos isso para lá. Ocupemo-nos um pouco mais do humor que agora fervilha nos jornais.
O humor – na TV, na internet, nos meios impressos – é um termômetro bastante confiável das inclinações do público. Se bem observado, se bem lido, equivale a uma boa pesquisa de opinião. Ninguém caçoa tão desbragadamente de figuras sacrossantas ou impolutas. Caçoa-se a boca pequena, é verdade, mas não assim, aos quatro ventos, a todos os sinos. Os jornais mais tradicionais muito menos caçoam, exatamente porque se arriscariam a perder a platéia. Mas hoje qualquer um faz piada do papa, sem pedir licença para bispo algum. É assim que o crescimento das piadas sobre o Vaticano aponta uma tendência. Uma tendência inequívoca: a igreja e o papa enfrentam uma onda de desmoralização.
Eis então que, como sempre acontece nesse tipo de desgaste a céu aberto, surgem as tentativas de pôr a culpa de tudo na imprensa. A reação é tímida, não é raivosa, mas ela tenta insistir na velha tecla: é tudo uma campanha da “mídia”. O curioso, agora, é que mesmo os prelados que acusam a imprensa de campanha anticatólica reconhecem que a crise de fato é tenebrosa, que um pedaço do inferno aparece nesse dilúvio de fogo e metal pesado que desaba na Praça São Pedro.
Há poucos dias, o portal G1 publicou uma nota da France Presse:
“Os bispos da França expressaram nesta sexta-feira (26) vergonha e pesar ante os atos abomináveis de pedofilia dentro da Igreja Católica, em carta dirigida ao Papa Bento XVI, ao término de sua assembleia geral realizada em Lourdes (sudoeste).
“`Todos sentimos vergonha e pesar ante os atos abomináveis cometidos por alguns padres e religiosos´, afirmam os bispos franceses, que, na mesma carta, defenderam o papa contra os ataques que sofreu neste caso.
“`Constatamos também que estes fatos inadmissíveis são utilizados em uma campanha para atacar o senhor e sua missão à serviço da Igreja.´”
Campanha? Parece que, desta vez, a alegação não colou.
Ouço agora, enquanto escrevo, no Jornal da Band (terça à noite, 30/3), que a Alemanha inaugurou uma espécie de “disque pedofilia” para recolher denúncias dos fiéis. Se é só uma campanha, para que abrir linhas telefônicas para os prejudicados reclamarem?
Pecadores que têm medo do povo
Usei os termos demofobia e fotofobia no título deste artigo, mas já estou arrependido. Penitencio-me. Este texto já está comprido demais e agora terei de alongá-lo ainda um tanto só para explicar o que é que eu quis dizer com o tal do título.
Por demofobia eu pretendia designar, menos que o medo de multidões, o medo dos olhos do povo. Por isso escrevi também fotofobia. Medo da luz. Medo da luz que esclareça o povo. Medo da luz nas câmaras do clero. Assim, quando batuquei aquele título ali em cima eu tinha na cabeça essa idéia, a de que a pedofilia é amparada e abrigada pelo medo que seus praticantes sentem do povo. Mais que medo, eles concentram uma força que repele o povo, que o rebaixa, que não vê na consciência dos cidadãos reunidos em público uma instância capaz de julgar. Sim, eles têm medo da luz. O trâmite ultra-secreto dos julgamentos internos que a igreja promove não nos deixa, a nós do povo, uma única pista, nenhuma informação sobre crimes praticados contra muitos de nós. A gente não sabe quase nada. E, do pouco que sabemos, quanto mais não há?
Quem tem medo dos olhos do povo também tem medo da imprensa. E diz que a imprensa apenas vocaliza campanhas sórdidas. Francamente, sou obrigado a admitir, está para surgir uma instituição mais permeada de pecados do que a própria imprensa. Ela peca por despreparo, muitas vezes. Peca por histeria programada também. Ela persegue inocentes e faz a apologia dos linchamentos morais. Atropela, desrespeita, avilta, insulta. Mas, em meio a tanta escuridão, em meio a tanta violência contra gente pequenina, desprotegida, frágil, ela, a imprensa, com sua voz estridente e por vezes tresloucada, é uma lamparina a nos guiar pelos porões. Que não seja para nos apresentá-los em detalhes, mas pelo menos para nos mostrar a rota de fuga.
Todos nós, pecadores miseráveis, que já abaixamos a cabeça e dissemos “amém” às pregações de um homem de batina, todos nós temos o direito de saber. Bendita seja a imprensa. Mesmo quando caçoa.
(Envolverde/Observatório da Imprensa)
Pedofilia, demofobia e fotofobia Por Eugênio Bucci* |
No domingo (28/3), o “Segundo Caderno” de O Globo trouxe uma seção de heresias hilariantes. Ou seriam apostasias cômicas? A ver. Na contracapa do caderno, sob o título de “Entrando pelo Vaticano”, na seção de humor assinada pelo fictício “Agamenon Mendes Pedreira”, lá estavam, enfileiradas, piadas impiedosas contra as autoridades eclesiásticas. Ao menos a meu juízo, eram engraçadas.
Também a meu juízo, eram de gosto um tanto duvidoso. De qualquer maneira, não interessa, aqui, saber se elas são ou não são de mau gosto – o que é impossível definir, uma vez que se trata de uma questão, como já se disse, de gosto. Também não interessa a discussão sobre a “qualidade” dessa escola de humorismo. Não importa saber se a sátira, nesse caso, “funciona” ou não funciona. Comigo funcionou. Mas terá funcionado igualmente para todos? Será que o leitor médio do jornal gargalhou ou ficou chocado, tomado por alguma faísca de ira santa? Será difícil saber.
O que interessa, e só por isso toco no assunto, é registrar que uma barreira histórica desmoronou. Há poucos anos, seria impensável que um grande diário publicasse enxovalhos tão corrosivos contra bispos, cardeais e o próprio papa. O jornal pensaria duas, três, oitenta vezes – e depois teria medo de ofender seu leitorado. Teria medo de perdê-lo. Agora, esse medo já não se coloca – e é aí que a barreira caiu.
O noticiário vasto e demolidor sobre crimes sexuais cometidos por sacerdotes – e também sobre as tentativas de abafar esses abusos – já cuidou de nocautear o leitorado mais apegado às tradições católicas e, por isso mesmo, já tratou de legitimar o humorismo. As batinas agora se prestam à galhofa das publicações do mainstream. Já estão bastante indignados com os fatos, os leitores não vão perder tempo com os piadistas. Sabem bem que a falta de respeito não foi inventada pelos humoristas, mas começou pela conduta dos próprios religiosos, tanto os que abusaram de crianças como os que os acobertaram.
No meio disso, a coluna do popular Agamenon serve de sinal dos tempos. Cito um trecho:
“Consternado diante de tantos escândalos sexuais, o Papa Bento XVI centímetros foi até a sacada do Vaticano e perguntou à multidão de fiéis na Praça São Pedro: `Tem culpa, eu?´. Vários sacristãos se ofereceram em sacrifício. Enciumados, os padres brasileiros não quiseram ficar atrás (mas depois trocaram). O Bispo de Arapiroca, quer dizer, Arapiraca, colocou na Internet um vídeo onde faz sexo com menores.”
É mole?
É tudo campanha da imprensa?
Comecei este artigo dizendo que a seção de O Globo trazia heresias hilariantes – ou mesmo apostasias cômicas. Não creio que tenha sido uma qualificação bem posta. Somente a Santa Sé pode definir o que é uma conduta herética, e, como bem sabe o leitor, eu não a represento. Quanto ao que é cômico ou hilário, isso depende. Não da Santa Sé. Isso depende mais de você do que de mim. Assim, não tento mais qualificar nada disso. Apenas sei que, há b
em pouco tempo, essas palavras passariam por heréticas, isso passariam. Seus autores teriam que ajoelhar no milho. Suas posses seriam confiscadas. Confessariam pactos com o demônio na roda da tortura. Hoje, entretanto, a santidade dos que representam Deus na Terra está em xeque. E o pessoal morre de rir. Sinal dos tempos, sem dúvida.
Não nos ocupemos então de analisar o pesadelo do Vaticano. Não especulemos se toda a sua imensa fortuna irá se desfazer em indenizações a dezenas de milhares de seres humanos seviciados em sacristias ou casas paroquiais. A revista Veja desta semana (nº 2158, de 31/3/2010) conta que, só nos Estados Unidos, a igreja católica desembolsou mais de 2,5 bilhões de dólares em indenizações e custas processuais. Deixemos isso para lá. Ocupemo-nos um pouco mais do humor que agora fervilha nos jornais.
O humor – na TV, na internet, nos meios impressos – é um termômetro bastante confiável das inclinações do público. Se bem observado, se bem lido, equivale a uma boa pesquisa de opinião. Ninguém caçoa tão desbragadamente de figuras sacrossantas ou impolutas. Caçoa-se a boca pequena, é verdade, mas não assim, aos quatro ventos, a todos os sinos. Os jornais mais tradicionais muito menos caçoam, exatamente porque se arriscariam a perder a platéia. Mas hoje qualquer um faz piada do papa, sem pedir licença para bispo algum. É assim que o crescimento das piadas sobre o Vaticano aponta uma tendência. Uma tendência inequívoca: a igreja e o papa enfrentam uma onda de desmoralização.
Eis então que, como sempre acontece nesse tipo de desgaste a céu aberto, surgem as tentativas de pôr a culpa de tudo na imprensa. A reação é tímida, não é raivosa, mas ela tenta insistir na velha tecla: é tudo uma campanha da “mídia”. O curioso, agora, é que mesmo os prelados que acusam a imprensa de campanha anticatólica reconhecem que a crise de fato é tenebrosa, que um pedaço do inferno aparece nesse dilúvio de fogo e metal pesado que desaba na Praça São Pedro.
Há poucos dias, o portal G1 publicou uma nota da France Presse:
“Os bispos da França expressaram nesta sexta-feira (26) vergonha e pesar ante os atos abomináveis de pedofilia dentro da Igreja Católica, em carta dirigida ao Papa Bento XVI, ao término de sua assembleia geral realizada em Lourdes (sudoeste).
“`Todos sentimos vergonha e pesar ante os atos abomináveis cometidos por alguns padres e religiosos´, afirmam os bispos franceses, que, na mesma carta, defenderam o papa contra os ataques que sofreu neste caso.
“`Constatamos também que estes fatos inadmissíveis são utilizados em uma campanha para atacar o senhor e sua missão à serviço da Igreja.´”
Campanha? Parece que, desta vez, a alegação não colou.
Ouço agora, enquanto escrevo, no Jornal da Band (terça à noite, 30/3), que a Alemanha inaugurou uma espécie de “disque pedofilia” para recolher denúncias dos fiéis. Se é só uma campanha, para que abrir linhas telefônicas para os prejudicados reclamarem?
Pecadores que têm medo do povo
Usei os termos demofobia e fotofobia no título deste artigo, mas já estou arrependido. Penitencio-me. Este texto já está comprido demais e agora terei de alongá-lo ainda um tanto só para explicar o que é que eu quis dizer com o tal do título.
Por demofobia eu pretendia designar, menos que o medo de multidões, o medo dos olhos do povo. Por isso escrevi também fotofobia. Medo da luz. Medo da luz que esclareça o povo. Medo da luz nas câmaras do clero. Assim, quando batuquei aquele título ali em cima eu tinha na cabeça essa idéia, a de que a pedofilia é amparada e abrigada pelo medo que seus praticantes sentem do povo. Mais que medo, eles concentram uma força que repele o povo, que o rebaixa, que não vê na consciência dos cidadãos reunidos em público uma instância capaz de julgar. Sim, eles têm medo da luz. O trâmite ultra-secreto dos julgamentos internos que a igreja promove não nos deixa, a nós do povo, uma única pista, nenhuma informação sobre crimes praticados contra muitos de nós. A gente não sabe quase nada. E, do pouco que sabemos, quanto mais não há?
Quem tem medo dos olhos do povo também tem medo da imprensa. E diz que a imprensa apenas vocaliza campanhas sórdidas. Francamente, sou obrigado a admitir, está para surgir uma instituição mais permeada de pecados do que a própria imprensa. Ela peca por despreparo, muitas vezes. Peca por histeria programada também. Ela persegue inocentes e faz a apologia dos linchamentos morais. Atropela, desrespeita, avilta, insulta. Mas, em meio a tanta escuridão, em meio a tanta violência contra gente pequenina, desprotegida, frágil, ela, a imprensa, com sua voz estridente e por vezes tresloucada, é uma lamparina a nos guiar pelos porões. Que não seja para nos apresentá-los em detalhes, mas pelo menos para nos mostrar a rota de fuga.
Todos nós, pecadores miseráveis, que já abaixamos a cabeça e dissemos “amém” às pregações de um homem de batina, todos nós temos o direito de saber. Bendita seja a imprensa. Mesmo quando caçoa.
(Envolverde/Observatório da Imprensa)