As afrodecendentes não são vítimas nem perdedoras

Por Patrícia Grogg, da IPS

 Havana, 19/3/2010 – Com 17 anos, Meybelin Bernárdez tem claro seu projeto pessoal. “Quando terminar meus estudos, voltarei para erguer minha comunidade”, diz, sem pensar duas vezes, esta jovem garífuna da costa de Honduras que estuda medicina em Cuba.
Empina o queixo e acrescenta: “quero ser exemplo para as que vierem. As condições em que vivemos são muito ruins, temos muito o que fazer pela nossa gente”. Sua mãe, de pele tão escura quanto a sua, lhe ensinou que o mais importante na vida é se preparar, estudar.

“Mas uma moça pobre e negra como eu não poderia sonhar em ser médica sem esta bolsa”, disse à IPS a jovem garífuna, grupo étnico que chegou ao continente no século XVII vindo da Nigéria e que atualmente conta com cerca de 600 mil integrantes, espalhados por América Central, Caribe, México e Estados Unidos.

Bernárdez resumiu dessa forma uma realidade que envolve a maioria das mulheres e meninas afrodescendentes da América Latina, afetadas pela discriminação racial.

Entretanto, cada vez mais aumenta o número das que se mostram pouco dispostas a continuar sendo vítimas.

Na Colômbia, Rosmira Valencia, diretora da Rede de Mulheres Chocoanas, sabe muito bem que são elas que mais se preocupam com a educação dos filhos, mesmo ao custo de muitos sacrifícios. “Na atualidade, na Universidade de Chocó há uma maioria de mulheres estudando, se capacitando, para que isto melhore”, afirmou.

O departamento de Chocó, com população eminentemente negra, localizado no noroeste do país na costa do Pacífico, é um dos de maior riqueza natural da Colômbia, mas também de maior pobreza.

“A força das mulheres é grande, e estamos certas de conseguir vencer nosso grande desafio: incidir no desenvolvimento de nossa região, acrescentar o sentido de pertinência e continuar na busca de igualdade e respeito”, acrescentou.

Em 2001, houve a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, realizada na cidade sul-africana de Durban, quando 170 Estados assumiram o compromisso de defender as mulheres vítimas de práticas discriminatórias por motivos raciais e de gênero.

Nessa conferência a advertência foi a de que o racismo e a discriminação racial se manifestam de forma diferenciada para as mulheres e as meninas e podem ser fatores que levam à deterioração de suas condições de vida, à pobreza, violência, às formas múltiplas de discriminação e à limitação ou negação de seus direitos humanos, sociais e político-econômicos.

Nesse sentido, foi reconhecida a necessidade de se integrar uma perspectiva de gênero nas políticas, estratégias e programas de ação para enfrentar essas práticas, bem como a pertinência de elaborar um enfoque mais coerente e sistemático destinado a avaliar e vigiar a discriminação racial contra as mulheres.

Nove anos depois, pouco ou nada mudou para a população feminina afrodescendente da região, segundo líderes consultadas pela IPS em vários países, por ocasião do Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial, celebrado em 21 de março por iniciativa da Organização das Nações Unidas.

Nesse dia, em 1960, houve o massacre de Sharpeville, na África do Sul, quando a polícia disparou contra uma manifestação pacífica contra normas do apartheid (segregação racial oficial). Morreram 69 pessoas e 200 ficaram feridas, mas a matança representou o início do isolamento internacional do regime segregacionista, até seu desmantelamento 30 anos depois.

“A Constituição (colombiana) de 1991 fez com que começássemos a ser vistas como parte de uma sociedade. Mas continuamos bastante invisíveis, mesmo depois de Durban 2001”, disse Valencia.

Dados da nicaraguense Dorotea Wilson, coordenadora da não governamental Rede de Mulheres Afrolatino-americanas, Afrocaribenhas e da Diáspora, indicam que 80% dos mais de 150 milhões de afrodescendentes da região continuam vivendo em estado de pobreza e sem oportunidades de superação por motivos étnico-raciais.

Desse número, 75 milhões são mulheres que continuam submetidas a deslocamentos forçados, emigrações ilegais, criminalização de jovens e genocídio encoberto sob acusações de delinquência, disse Wilson.

A Rede que coordena tem presença em 24 países da região.

“A vida não mudou para as pessoas negras da América Latina. Não há políticas públicas para superar isso, a exploração humana contra nós continua vigente, continuam nos negando o direito à terra, aos créditos, à educação especial, à saúde. Enfim, pouco mudou”, insistiu.

Como exemplo, a dirigente citou o caso da Nicarágua, onde, segundo dados oficiais, a maior taxa de mortalidade materna ocorre nas duas regiões caribenhas com maioria de população feminina indígena e afrodescendente, com taxas de até 373 mulheres mortas para cada cem mil nascidos vivos.

O Ministério da Saúde informou que em 2009 a taxa média nicaraguense de mortalidade materna é de 63 para cada cem mil nascidos vivos, mas informes de organizações não governamentais, como a Human Rights Watch, as elevam para 170 mães mortas para 100 mil nascidos vivos.

Wilson considera que há alguns avanços quanto à visibilidade do movimento pelos direitos dos afrodescendentes e em manter o tema na agenda dos Estados, mas eles obedecem fundamentalmente o trabalho de organizações da sociedade civil e, em particular, do movimento feminista e dos ativistas pelos direitos humanos.

Para a ensaísta, crítica de arte e narradora cubana Inês María Martiatu, vale destacar o terreno conquistado pelas mulheres negras da região em matéria de organização, em cujo contexto concentra sua luta “pela inserção na sociedade, e conseguir sua independência econômica”.

“A mulher afrolatino-americana sempre se rebelou contra a escravidão, foi guerreira e participou das lutas pela independência, não ficou no papel de vítima. O que acontece é que a história foi escrita por outros e só agora é que vai sendo conhecida pouco a pouco”, disse a intelectual afrocubana.

Em sua opinião, em Cuba a mulher afrodescendente aproveitou a oportunidade oferecida pela Revolução e está nos setores da educação, saúde, ciência, cultura, embora não escapem da discriminação pelo cor da pele. Apenas o fenômeno se manifesta de maneira “mais sutil”
do que em outros países.

“Por muitos anos, foi mantido um discurso oficial que dizia não existir racismo nem discriminação racial. Agora, admite-se que as mulheres negras perderam tempo”, afirmou a intelectual cubana.

“A realidade é que existem preconceitos, racismo e discriminação, e estas são categorias das ciências sociais. Manifestam-se inclusive dentro da família, seja branca ou negra”, acrescentou.

A questão racial é atualmente objeto de debate dentro da sociedade da ilha caribenha, mas Martiatu e outras intelectuais cubanas concordam que falta o enfoque de gênero. “Resta muito caminho pela frente. Embora a solução esteja na educação e em um forte trabalho cultural, esta virá em longuíssimo prazo”, destacou.

Martiatu expressou sua confiança nas novas gerações. “O racismo não se resolve com socialismo ou capitalismo, é algo mais complexo e profundo”, afirmou.

“Algumas estudiosas e estudiosos, que trabalham com estas questões, conseguiram colocá-las em debate, na contracorrente de opiniões partidárias de adiar a discussão e a análise”, assegurou. IPS/Envolverde

* Com contribuições de Helda Martinez (Bogotá) e José Adán Silva (Manágua).

(IPS/Envolverde)

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