DAMARES MEDINA- Advogada
Eram 7h30 da manhã, em Samambaia, DF, quando policiais ajudaram seu Geraldino a socorrer a nora, Rose, praticamente inconsciente, após ter sido espancada pelo companheiro. Após uma noite inteira de bebedeira, José voltou para casa embriagado e começou a socar e a chutar Rose repetidamente. Não satisfeito, pegou um pedaço de pau e bateu por várias vezes na cabeça de Rose, que gritava por socorro.
Esse é o depoimento que seu Geraldino prestou contra o próprio filho, na 33ª DP. Enquanto tentava impedir que Rose continuasse a ser brutalmente espancada, seu Geraldino ouviu de José: “Ó veio, se você for na delegacia, quando eu voltar, eu te mato”. Ele tinha motivos para acreditar na ameaça do filho. Poucos meses antes, José tinha espancado o pai e lhe quebrado a perna, o que resultara em cirurgia para a fixação de seis pinos. As mesmas ameaças eram repetidas vezes direcionadas a Rose, para quem José sempre dizia: “Se você der parte de mim, eu te mato quando sair da cadeia”.
Esses são os fatos subjacentes ao processo no qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a ação penal decorrente de lesões corporais leves está condicionada à representação da vítima. Ainda que o delito seja cometido contra a mulher, no contexto da violência doméstica.
A decisão servirá de moldura interpretativa para diversos casos similares que tinham sido suspensos no aguardo da diretriz do STJ. Agora, todos eles serão processados apenas se a mulher vitimada oferecer a competente representação. Caso contrário, a punibilidade do agressor estará extinta.
O STJ deve fixar a melhor interpretação da lei federal, no caso, a Lei Maria da Penha, cujo nome é emprestado da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes. Assim como Rose, Maria da Penha foi agredida pelo então marido, que tentou matá-la por duas vezes: a primeira com um tiro, simulando um assalto; a segunda, por eletrocutação.
As similaridades cessam por aqui. Enquanto Maria da Penha mobilizou a sociedade em torno da aprovação de uma lei que pudesse proteger mulheres como ela, Rose – que é praticamente analfabeta, do lar e não possui sequer registro de identidade – não ofereceu a representação contra o agressor. E não o fez porque nem sequer sabia o que era uma representação e que, sem ela, o seu agressor ficaria impune.
Rose e Maria da Penha pertencem a mundos separados por um abismo socioeconomico, mas que se encontram em uma triste inflexão. Ambas foram vítimas do mesmo crime: a violência diurtunamente perpetrada contra as mulheres na intimidade do que deveria ser o mais sagrado, o lar.
A Lei Maria da Penha pretendeu proteger as mulheres vitimadas. Contudo, a partir do entendimento do STJ, somente a mulher poderá avaliar a conveniência de iniciar, ou não, um procedimento contra o membro da família que a espancou. Nesse ponto, surge a primeira pergunta: dos bens jurídicos a serem tutelados, qual o mais importante: a integridade física da mulher violentada no lar ou a suposta conveniência para avaliar se quer ou não representar contra o agressor?
A opinião pública se mobilizou em torno do tema. Para a Defensoria Pública, que defendeu José e a condicionalidade da ação penal, valorizar a mulher vítima de violência doméstica é dar a ela proteção, assistência, voz e possibilidade de enfrentar e entender seus conflitos. Mas como a extinção da punibilidade de José pode ajudar Rose a entender por que ele a espancou? A quem, de fato, a condicionalidade da ação penal protege: à mulher espancada ou ao marido agressor?
A Themis assessoria jurídica e estudos de gênero sustentou, vencida, que a exigência de representação nos crimes de lesão corporal de natureza leve, qualificados pela violência doméstica, é obstáculo à afirmação dos direitos fundamentais, à dignidade, à liberdade e à integridade física e psíquica das mulheres. Um simulacro que, sob pretexto de assegurar o protagonismo da vítima, obstaculiza a punição do agressor.
Será que o entendimento fixado pelo STJ é o que melhor cumpre o desejo do legislador de proteger tanto a Maria quanto a Rose, bem como as mulheres que são recorrentemente violentadas, no recôndito do lar, por aqueles que deveriam amá-las e protegê-las?
A Lei Maria da Penha é um dos mais importantes instrumentos jurídicos para o enfrentamento de grave problema social, fruto de discriminação específica que afeta fortemente as mulheres: a violência doméstica e familiar. O enfrentamento desse fato social, que torna as mulheres vítimas e reféns da própria história, passa pelo reconhecimento dessa especificidade como qualificadora dos delitos de lesões corporais, com a consequente incondicionalidade da ação penal.
Afinal, qual instrumento se mostrará mais eficaz para resgatar o protagonismo da mulher: a condicionalidade da ação penal ou a efetiva punição do agressor? São muitas as indagações, mas à Justiça compete respondê-las de olhos abertos para a dura realidade social brasileira. O mundo da vida vai muito além do discurso e de meras construções formais que, no limite, podem redundar no esvaziamento da eficácia protetiva da Lei Maria da Penha e na poda da capacidade constritiva dos direitos de milhares de Josés que, agora mesmo, violentam as suas Roses.
artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 2/3/2010