Roberto Arriada Lorea
Juiz de Direito – titular da Vara de Violência Doméstica de Porto Alegre
Doutor em Antropologia Social – Universidade Federal do RS, UFRGS
Membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução, CCR
Quando a sociedade debate temas relativos aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, os quais estão diretamente ligados aos direitos humanos das mulheres, vários atores sociais se manifestam. São militantes, acadêmicos, religiosos, cidadãos e cidadãs que expressam seus pontos de vista, com toda legitimidade, quando se convive em uma sociedade democrática.
Nesse contexto, é natural que a Igreja Católica expresse sua posição, contrária à pílula anticoncepcional, contrária ao uso do preservativo, contrária à pílula do dia seguinte (contracepção de emergência), contrária ao aborto mesmo em casos de risco de vida à gestante e em casos de gravidez resultante de violência sexual.
Estou entre aqueles de defendem o direito da Igreja Católica, representada por sua hierarquia, expressar sua posição. Como o fez, legitimamente, em junho de 1964, emitindo nota pública na qual apoiava o golpe militar perpetrado pelos militares, cujo resultado foi a eliminação das garantias individuais no Brasil, numa ditadura que se impôs por vinte anos.
Nesse sentido, inclusive, deve ser saudado o fato de que agora pareça estar preocupada com os Direitos Humanos.
Portanto, essa mesma Igreja Católica deve ter preservada sua voz, sua liberdade de expressar seus pontos de vista, mesmo que eles estejam completamente descolados da posição dos fiéis, os quais apóiam maciçamente o uso da pílula e do preservativo, apenas para ficar em dois exemplos emblemáticos. Até se poderia dizer, com segurança, que outras instituições formadas por fiéis, como é o caso das Católicas pelo Direito de Decidir, CDD, estão melhor sintonizadas com o pensamento e o modo de vivenciar sua religiosidade dos brasileiros e brasileiras, do que a CNBB. A falta de representatividade, contudo, não retira à cúpula da Igreja Católica o direito de continuar difundindo sua anacrônica visão de mundo.
O que não se pode é confundir, o direito de manifestação, com o direito de emitir a última palavra, notadamente em temas que transcendem o campo religioso católico, como é o caso dos Direitos Humanos.
Assim, causa enorme decepção a notícia de que, após uma longa jornada de debates, traduzidos na participação popular em dezenas de conferências preparatórias, cujo resultado é o III Programa Nacional de Direitos Humanos, o Governo Federal, dando ouvidos à Igreja Católica, subverte a ordem democrática, curvando-se aos interesses de um determinado segmento religioso, repetindo o que já fizera quando do resultado da Comissão Tripartite, negociando, de forma aviltante, os direitos humanos das mulheres.
A Igreja Católica deve ser ouvida, desde que se submeta à convivência democrática, assim como os movimentos sociais que se ocupam da defesa dos Direitos Humanos.
Retroceder no enfrentamento da questão do aborto, como noticiado pela mídia, significaria que o Governo Federal está desprezando aqueles atores sociais que se mobilizaram democraticamente, participando das instâncias deliberativas institucionalizadas, no âmbito das Conferências de Direitos Humanos, as quais foram convocadas pelos Governos Estaduais.
Retroceder na defesa da autonomia reprodutiva das brasileiras, abandonando o III Programa Nacional de Direitos Humanos, como abandonado foi o trabalho resultante da Comissão Tripartite, é pretender ressuscitar as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, norma que punia como heresia a divergência de opinião em relação à fé católica.
fonte: Comissão de Cidadania e Reprodução – www.ccr.org.br