Debora Diniz – Professora da UnB e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)
A descriminalização do aborto é questão na agenda política da Secretaria de Direitos Humanos no Brasil. A recomendação do recém-lançado 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) é de que o Legislativo descriminalize o aborto modificando o Código Penal. Há muito tempo o Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres defendem a tese de que a descriminalização do aborto é uma necessidade de saúde e de proteção aos direitos das mulheres. Sendo assim, o que há de novo nesse reconhecimento de que a descriminalização do aborto deve ser uma ação prioritária de direitos humanos pelo Estado brasileiro? Certamente a recomendação do PNDH não é um simples ato retórico, em particular pelos riscos políticos que o tema provoca em um ano de eleições.
Os direitos humanos fazem parte de um acordo entre as nações. Como resultado de um ato racional de escolha, optamos por viver em sociedades que os respeitam em detrimento dos regimes totalitários ou ditatoriais. Ações básicas de nossa vida social, como o direito de ir e vir e a liberdade de expressão ou de pensamento, traduzidos em atos coloquiais, como ter o direito de frequentar uma comunidade religiosa, estão sob a proteção da cultura dos direitos humanos. Uma nação que assume o marco dos direitos humanos como ponto de partida para o funcionamento de suas instituições básicas é aquela que reconhece nas liberdades fundamentais, em particular no direito à vida, na liberdade e na dignidade, os princípios éticos para o gerenciamento de seus atos e políticas.
Descriminalizar o aborto é uma ação de direitos humanos exatamente por proteger as liberdades fundamentais das mulheres: direito à vida, em razão dos riscos envolvidos no aborto realizado em condições inseguras; direito à liberdade por reconhecer o caráter soberano das escolhas individuais em matéria de ética privada; direito à dignidade, pois somente uma vida com liberdade e segurança pode ser qualificada como digna. No entanto, se afirmar positivamente a descriminalização do aborto como uma medida de direitos humanos pode ainda soar estranho para aqueles que o entendem como uma ameaça religiosa ou como uma violação de direitos potenciais do feto, talvez seja mais simples demonstrar o quanto a criminalização do aborto é um ato de tratamento cruel e inumano do Estado contra as mulheres.
Um Estado que se sustenta na cultura dos direitos humanos não age cruelmente contra metade de sua população, caso se considere que o aborto é um tema exclusivamente das mulheres, o que seria tão absurdo quanto sustentar que o racismo diz respeito apenas às minorias raciais. A crueldade está em punir as mulheres pelos corpos que habitam, em proibi-las de ter acesso às medidas sanitárias que protegem suas necessidades de saúde, em ignorar suas preferências individuais sobre como conduzir suas vidas. Um ato é cruel quando impõe sofrimentos físicos ou mentais, com o objetivo de castigar por algum ato cometido. No caso da criminalização do aborto, o castigo é ao sexo, expresso no corpo da mulher pela gravidez não planejada, mas que deve ser alvo permanente do controle por valores patriarcais.
Mas é possível analisar ainda mais delicadamente o tema da criminalização do aborto como uma violação de um dos direitos mais básicos da vida digna – o direito a estar livre de tortura. O Supremo Tribunal Federal irá decidir em breve se as mulheres grávidas de fetos com anencefalia podem ou não antecipar o parto. A anencefalia é uma má-formação fetal incompatível com a sobrevida do feto fora do útero. A ação de anencefalia foi proposta em 2004 e é um pedido de proteção das mulheres ao Estado: elas querem o direito de abreviar o luto pelo feto que não sobreviverá ao parto. No entanto, as mulheres ainda são obrigadas a se manter grávidas, mesmo sabendo que em breve enterrarão o filho. Não tenho dúvidas de que o dever da gestação nestes casos deve ser classificado como um ato de tortura do Estado contra as mulheres.
É nesse marco político que deve ser entendida a recomendação do PNDH. A descriminalização do aborto não é um ato de afronta religiosa, mas de proteção às liberdades individuais. É um reconhecimento público de que o Estado brasileiro não age cruelmente face às necessidades de saúde das mulheres. É uma afirmação de que vida digna para as mulheres em idade reprodutiva significa conceder-lhes a soberania do direito de escolha. Não deve haver punição nem castigo para as mulheres que abortam. Assim como milhões de outras mulheres, as mulheres brasileiras querem viver em um país que reconhece a descriminalização do aborto como uma medida de proteção aos direitos fundamentais.
Fonte: Correio Braziliense – 09/01/2010