Por Ángel Páez, da IPS
Lima, 23/11/2009 – Uma vez mais o Estado peruano foi compelido a julgar e punir os responsáveis pelas esterilizações forçadas que o regime de Alberto Fujimori (1990-2000) aplicou a mais de duas mil mulheres. Desta vez, a exigência de justiça provém da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Durante a sessão de audiências da CIDH realizada este mês em Washington, sua presidente, Luz Patricia Mejía, não poupou dureza ao exigir do Estado peruano que cumpra seu compromisso de processar os responsáveis por essa prática aplicada como política de saúde reprodutiva e condenada em diferentes instâncias internacionais. Mejía recordou que o Estado peruano assinou em 2003 um Acordo de Solução Amistosa, no qual aceita indenizar a família de María Mestanza, uma das vitimas das esterilizações compulsórias, e também investigar e julgar as autoridades que criaram e executaram essa atividade.
O Estado peruano está fazendo a parte que se refere à assistência ao marido e aos filhos de Mestanza, que morreu em 1998 em consequência de uma deficiente e não consentida operação cirúrgica de esterilização. Mas, no âmbito judicial continua impune o caso, de cuja resolução depende a reparação para as vitimas de esterilizações forçadas.
Em maio, o promotor Jaime Schwartz arquivou o caso contra quatro ex-ministros de Saúde do governo de Fujimori e outros ex-funcionários, com a alegação de que os crimes a eles atribuídos prescreveram. Trata-se de crimes contra a vida, o corpo e a saúde, e de homicídio culposo.
O promotor disse ainda que não encontrou evidências de violações dos direitos humanos e afirmou que a esterilização forçada não é um crime de lesa humanidade, como diz a defesa das mulheres que morreram ou ficaram seriamente prejudicadas pela jamais autorizada ligadura de trompas, praticada em estabelecimento de saúde pública. Rossy Salazar, defensora de Mestanza, entrou com queixa contra o promotor Schwartz e apresentou um informe nas deliberações da CIDH, no qual destaca que o Estado peruano descumpre o compromisso de julgar os responsáveis.
O informe da advogada da organização não-governamental Estudo para a Defesa dos Direitos da Mulher (Demus), foi acompanhado por petições sobre as esterilizações forçadas do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), da Associação Pró-Direitos Humanos, do Centro de Direitos Reprodutivos e do Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional.
“O Estado peruano se comprometeu a realizar as investigações administrativas e penais dos fatos e a aplicar as sanções aos autores materiais e intelectuais das violações dos direitos humanos de María Mestanza”, disse Salazar à IPS, e “o arquivamento do caso representa o descumprimento do Acordo de Solução Amistosa”, acrescentou.
A representante do Estado peruano na sessão da CIDH, a procuradora Delia Muñoz, argumentou que o Ministério Público é autônomo e que o Poder Executivo não pode interferir em suas decisões. Em todo caso, disse Nuñoz, também interpôs uma queixa contra o arquivamento.
Porém, a presidente Mejía, que também atua como relatora dos Direitos da Mulher dentro da Comissão, replicou dizendo que o Estado funciona como uma unidade e que o Executivo deve empenhar-se para cumprir o compromisso de investigar e punir os responsáveis pelas esterilizações forçadas.
A mensagem da presidente do CIDH foi “firme e clara”, afirmou Salazar. “Vocês não estão cumprindo seu compromisso. Vocês não podem dizer que cada um, no Estado, age por conta própria. Vocês são um único Estado e como tal devem responder”, disse a venezuelana Mejía à procuradora.
A Comissão integra o sistema jurídico da Organização dos Estados Americanos, mas é autônoma em seu funcionamento, e seus sete membros atuam a título pessoal, com o mandato de que os Estados observem os direitos humanos.
A Comissão pode apresentar os casos ao Tribunal Interamericano de direitos Humanos, e o descumprido Acordo Amistoso de 2003 foi produzido, de fato, dentro desse tribunal continental.
A Defensoria do Povo (ombudsman) do Peru conseguiu documentar que entre 1996 e 2000 pelo menos 2.074 mulheres foram esterilizadas sem seu consentimento, como parte do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar.
Delas, 16 morreram por complicações pós-operatórias, enquanto a maioria das restantes enfrenta problemas de saúde, complicações psicológicas, desemprego e isolamento familiar.
Vidas destroçadas
“Quando fiquei sabendo que o promotor havia arquivado o caso, o mundo caiu sobre mim e comecei a chorar de indignação”, disse à IPS Yonny Quellop, presidente da Associação de Vitimas das Esterilizações em Anta, província andina do departamento de Cusco.
“Lutamos há anos para termos justiça e mais uma vez a justiça nos deu as costas. Eu mesma sou vitima da esterilização. Nunca pedi para ligarem minhas trompas. Depois da cirurgia, meu marido brigou comigo, sinto muito mal-estar e ninguém me dá trabalho. Me tratam como inútil”, contou.
Quellop tinha 23 anos quando foi a um hospital público dar à luz ao seu quarto filho. Depois do parto, foi sedada e submetida à cirurgia. “Quando despertei, me dei conta de que havia sido operada e perguntei ao médico o que me fizeram. E ele me disse: Já te preparei para que não tenhas mais filhos. Já não será como essas mulheres que têm filhos como animaizinhos. Mas eu não havia pedido para ser operada. Não assinei nada. Ninguém me consultou”, contou com uma voz ainda ferida.
“Desde esse dia minha vida é uma tragédia”, prosseguiu. “Tive complicações, fiquei doente, meu útero foi retirado. Me senti menos mulher, humilhada, envergonhada. Continuo viva, mas a vida já não é a mesma para mim desde que me esterilizaram”, acrescentou.
Entre os mais importantes implicados no caso das esterilizações forçadas está o ex-presidente Fujimori e seus ex-ministros da Saúde, Eduardo Yong Motta, Marino Costa Bauer e Alejandro Aguinaga. Este último é hoje legislador do bloco fujimorista e médico pessoal do ex-presidente, preso e condenado a diversas penas, de até 25 anos de prisão, por crimes contra os direitos humanos e de corrupção.
“Aqui, em minha província, centenas de mulheres foram enganadas com as esterilizações. Diziam que era para nosso bem. Pelo contrário. Até nossos familiares nos maltratam porqu
e pensam que consentimos em não ter mais filhos. Somos tratadas como inferiores. Estamos tristes, mas continuaremos lutando por justiça”, afirmou Quellop.
Em 1996, Victoria Vigo tinha 32 anos quando a levaram a um hospital público de Piura, norte do país, para ter seu terceiro filho, que morreu horas depois de nascer. Ao se recuperar da anestesia após uma cesariana, Vigo soube por um enfermeiro que o médico havia ordenado sua esterilização.
“Mas quando li meu histórico clinico dele não constava a ligadura de trompas”, contou Vigo à IPS. “Perguntei aos médicos, aos chefes do hospital, mas todos negavam. Entrei em quadro depressivo. Havia perdido meu bebê e também fui esterilizada”, lembrou.
“Tive de iniciar ações legais até que finalmente o hospital admitiu que haviam ligado minhas trompas sem que eu autorizasse. Jamais pediria isso. Me condenaram a jamais conceber. O médico que acabou comigo para sempre se chama Nicolas Ângulo”, disse firme.
Vigo é uma das poucas, entre milhares de afetadas, que levou o médico a julgamento. Após sete anos de luta, um tribunal o condenou a três anos de prisão (suspensa) e a pagar uma indenização de US$ 3.500, na única sentença até agora produzida contra essas violações maciças de direitos humanos.
“O mais importante é que durante o processo judicial o médico acusado argumentou, em sua defesa, que se limitou a cumprir ordens superiores e que as esterilizações eram parte da política de planejamento familiar e saúde reprodutiva do governo de Fujimori”, explicou Vigo.
“Depois de desacreditar minha denúncia acusando-me falsamente de sofrer alterações mentais, acabou concordando que a esterilização sem consentimento era parte da politica do Estado. Por isso, sou parte do movimento que busca justiça para todas as mulheres vitimas”, ressaltou.
Durante o encontro com as partes peruanas, a presidente da CIDH cobrou da representante do Estado o cumprimento do acordo e reiterou que isso passa pela sanção dos responsáveis pela morte de Mestanza, em 1998. “Se conseguirmos a condenação dos culpados do caso María Mestanza, se abrirá a porta para que todos os responsáveis pela política de esterilização compulsiva sejam julgados e condenados”, explicou a advogada Salazar.
Quellop disse que a exigência da CIDH dá novo ânimo para continuar a luta por justiça, após o revés do arquivamento do caso, em maio. “Minhas companheiras camponesas e eu decidimos na última reunião da associação de vitimas que continuaremos buscando por justiça até a última de nós. E assim será”, afirmou.
Estado peruano descumpre também a Comissão Cedaw
Com o arquivamento do caso María Mestanza, o Peru não só descumpriu compromissos no contexto interamericano, mas também mundial, porque a sanção e a reparação pelas esterilizações forçadas é uma exigência peremptória do Comitê que supervisiona a aplicação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw, sigla em inglês).
“Existe um vínculo estreito entre o arquivamento do caso e a Cedaw porque o Estado peruano descumpriu seu artigo 12”, disse a advogada do caso, Rossy Salazar. Esse artigo diz que “Os Estados partes devem adaptar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mulheres na esfera da atenção médica para garantir, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços de cuidados médicos, inclusive aos referentes ao planejamento da família”.
Além disso, o Comite Cedaw diz em seus informes sobre o Peru que “o Estado deve processar perante os tribunais os responsáveis por esta violação do direito à saúde”, recordou Salazar, como uma vacina para evitar a repetição destas graves violações dos direitos humanos das mulheres.
Também determina que “a esterilização forçada de mulheres, em sua maioria rurais e pobres”, não só constitui um ato de violência sexual, como também adquiriu “características de crime de lesa humanidade em algumas províncias, por ter sido sistemática e planejada. Porém, essa disposição não foi cumprida. Pelo contrário, o caso foi arquivado, assegurando impunidade aos responsáveis”, disse Salazar, recordando que isso ocorre quando a Cedaw completa 30 anos.
O Peru ratificou em 1982 a Convenção, aprovada em 19 de dezembro de 1979 nas Nações Unidas e considerada a carta magna dos direitos das mulheres e pilar das leis e políticas internacionais e nacionais construídas desde então para reduzir a desigualdade entre os gêneros. (IPS/Envolverde)
Foto legenda: Victoria Vigo, esterilizada contra su voluntad, sigue buscando justicia
Crédito:Virgilio Grajeda/IPS
(Envolverde/ )