Lei retrocede no tempo e crime de estupro agora só é julgado se vítima manifestar a vontade de denunciar. Isso é um absurdo, precisa alterar a lei rapidamente. A vítima além de violentada vai sofrer pressão para abandonar o caso. E pior, a lei tem efeito retroativo. Muitos estrupadores serão beneficiados!
O Globo – 06 de novembro de 2009
Está em vigor, desde o dia 10 do mês passado, a Lei 12.015, que alterou o nosso Código Penal, dando um novo regime para os crimes contra a liberdade sexual. Além de dar nova definição para o delito de estupro, condizente com a igualdade entre homens e mulheres, e criar a figura do estupro contra pessoa vulnerável, protegendo de forma mais adequada crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual, deixou-se evidenciado que o "cliente" que mantiver relações sexuais com a pessoa vulnerável também responderá criminalmente.
Apesar dos mencionados avanços, a nova legislação dos crimes sexuais cometeu um imenso equívoco, que acarretará um grande retrocesso na repressão do hediondo delito de estupro, com o risco de impunidade de milhares de estupradores. Refiro-me à alteração do Artigo 225 do Código Penal.
Conforme a nova redação do citado Artigo 225, o crime de estupro, não só na sua forma básica, bem como na forma qualificada, passa a ser reprimido por ação pública condicionada a representação da vítima ou de seus familiares.
Antes, havia uma distinção: se fosse estupro simples (isto é, com lesões leves, arranhões, equimoses), a lei dizia que a ação penal era privativa da ofendida; se fosse estupro com lesões graves (transmissão do vírus da Aids, aborto da gestante etc) ou se resultasse na morte da estuprada, a ação era pública incondicionada. Ou seja, em razão da gravidade do fato, o Ministério Público podia agir sem a concordância da vítima ou de seus parentes.
Agora, só poderá atuar se houver a expressa manifestação de vontade da parte interessada.
Trata-se, como dito, de um retrocesso, pois, ao invés de favorecer a punição, gerou o efeito reverso, isto é, favorece juridicamente os acusados da prática de estupro. Como ocorre com toda mudança legal favorável ao réu, essa nova regra tem efeito retroativo, ou seja, abrange os crimes cometidos antes da sua entrada em vigor.
Importa dizer, então, que a nova redação do Artigo 225 se aplica não só aos crimes ocorridos após agosto de 2009, mas, também, aos casos ocorridos antes da sua vigência. Em suma, os inúmeros processos em tramitação na Justiça criminal, por conta do estupro qualificado (lesões graves ou morte) terão de ser paralisados para que seja atendida à formalidade legal da "representação".
E se a vítima ou seus parentes não forem localizados? Infelizmente, a resposta é simples: o processo contra o acusado de estupro não poderá ser sentenciado; ele terá de ser absolvido e colocado em liberdade.
Há, ainda, um complicador a mais: segundo o Código Penal, a citada "representação" deve ser formalizada num curto espaço de tempo, ou seja, no prazo máximo de seis meses, sob pena de decadência (que é a perda do direito de punir do Estado). Como a Lei 12.015 está em vigor desde 10 de agosto, importa concluir que na data de 10 de fevereiro de 2010 (isto é, seis meses e um dia), todos os processos criminais em tramitação que não tiverem sido adaptados àquela representação estarão extintos pela decadência. Será um "festival" de impunidade para os acusados de estupro qualificado! Imaginem-se os milhares de habeas corpus que serão impetrados por todo o Brasil! Para se ter uma dimensão da gravidade da questão, basta considerar que, segundo dados policiais publicados no Diário Oficial, somente no ano de 2008 foram registrados 1.080 casos de estupro apenas no Estado do Rio de Janeiro.
Ante a gravidade do problema, penso que a melhor solução para combater a anunciada impunidade de estupradores é a declaração de inconstitucionalidade do novo Artigo 225 do Código Penal. Isso porque, ao mexer com a regra da ação penal nos crimes sexuais, permitindo, indiretamente, um "salvo-conduto" em favor dos acusados de tão hediondo delito, a Lei 12.105 violou o princípio da dignidade da pessoa, consagrado pela Constituição de 1988. Por essa razão, no dia 20 de agosto passado, dirigi ao procurador-geral da República um pedido para que seja promovida ação de inconstitucionalidade daquele dispositivo legal.
Acredito que os ministros do Supremo Tribunal Federal concordarão com a necessidade de neutralizar, o quanto antes, os deletérios efeitos essa infeliz e perigosa alteração legal.
ARTUR GUEIROS é procurador regional da República no Rio e professor de Direito Penal da Uerj.