“Ainda que velhinhas, estamos aqui”. Foi assim que Maria Amélia de Almeida Leite, a Amelinha, da União de Mulheres de São Paulo, finalizou seu depoimento no evento “Memórias insubmissas: mulheres, ditaduras militares, Anistia” realizado na Unicamp na quinta-feira (29). Presa por duas vezes durante o regime militar, Amelinha, juntamente com a família, conseguiu há um ano que o Tribunal de Justiça de São Paulo, em decisão inédita, responsabilizasse o coronel de reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra pelas torturas sofridas por ela, o marido César Augusto Teles e a irmã Criméia Schmidt de Almeida em dezembro de 1972.
O encontro foi organizado pela professora Margareth Rago, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), em sequência a outro ocorrido há mais de 10 anos por iniciativa da professora Maria Lygia Quartim de Moraes, quando várias mulheres deram depoimentos sobre as torturas que sofreram na prisão. “Têm sido promovidos inúmeros eventos tratando dos limites da Anistia e de denúncias e releituras do passado, mas poucos destacam a presença das mulheres nessa luta. Entendemos que as mulheres possuem uma especificidade em relação a suas experiências e na forma como interpretam o mundo”, afirmou Margareth.
Segundo a docente do IFCH, o objetivo foi associar todas essas questões ao feminismo, considerando que muitas mulheres vitimadas pela ditadura militar, ao saírem da prisão, tornaram-se feministas. “Creio que no Brasil o feminismo nasceu da esquerda, questionando a própria estrutura dos partidos. Amelinha e Criméia tiveram que romper com o PCdoB porque passaram a defender a descriminalização do aborto, o que o partido considerou inaceitável – há 30 anos, achava-se que o aborto e mesmo a violência doméstica eram ‘coisas de mulher’, de menor importância”.
Amelinha observou no início de sua palestra que o processo de resistência contra a ditadura e de luta pela Anistia ainda não foi escrito ou refletido sob o ponto de vista das mulheres. “Sem deixar de reconhecer o valor do papel dos homens nessa luta, precisamos reescrever a história incluindo as mulheres, não apenas as mais famosas, mas as que permaneceram anônimas, cujos nomes estão nos documentos da repressão”.
Amelinha lembrou que se tornou uma “comunista feminista” exatamente no dia 19 de março de 1964, diante de uma multidão de mulheres – pobres e negras em sua maioria – na “Marcha com Deus pela liberdade”. “Tinha 18 anos e chorei muito, pois estávamos lutando por aquela gente que, no entanto, se colocava contra nós, o comunismo e a reforma agrária. A esquerda não parou para refletir sobre o papel e a importância das mulheres, vistas como um mero rebanho que podia ser conduzido de um lado a outro. Foi só a partir de 68, com a revolução cultural e sexual, que vi as primeiras companheiras no PCdoB”.
Presa pela primeira vez em Belo Horizonte, logo após o golpe militar de 31 de março, Amelinha contou sobre o desaparecimento do pai, um sindicalista mais anarquista do que comunista, que a iniciou na militância. “Conseguimos encontrá-lo muito tempo depois, em um presídio que tinha mais de três mil presos políticos – pensa-se que o ano de 64 não foi nada, mas foi muita coisa. É certo que viriam coisas muito piores”.
De fato, passados quase oito anos de clandestinidade, Amelinha acabaria detida novamente na Operação Bandeirantes do DOI-Codi, em 1972. “Fui presa com toda a família: meu marido César (que entrou em coma já nas primeiras horas), minha irmã Criméia (grávida de oito meses e que teve o filho na prisão), minha filha Janaína, meu filho Edson Luís. Vivemos a experiência da prisão de forma muito intensa, é até difícil falar da tortura, é ferida que não cicatriza, não tem como esquecer”.
Tendo ainda um cunhado como um dos desaparecidos na guerrilha no Araguaia, Amelinha, que conserva surpreendente senso de humor, se diz ciente de que a família é estigmatizada por conta desta história pesada. “Por vezes me perguntam como conseguimos sobreviver a tudo isso. Uma das razões é que nunca deixamos de denunciar as atrocidades cometidas pelos militares e policiais. Como sobreviventes, teremos que denunciar sempre, é quase um compromisso histórico”.
Lições dentro e fora da prisão
Maria Amélia guarda lições aprendidas com as presas comuns no presídio do Hipódromo, que chamavam as presas políticas de “as do terror”. “Além dos dramas da vida, havia drogas e homossexualidade. Nós, que já éramos comunistas e terroristas, não queríamos ser tidas também como lésbicas; existia preocupação e moralismo. Já as presas comuns lidavam com a questão muito mais tranquilamente, sendo que estou falando de 36 anos atrás, quando até hoje discutimos a união civil entre pessoas do mesmo sexo”.
Transferida para a chamada Casa do Egresso, no Carandiru, Amelinha viu-se isolada das presas comuns, usando uniforme cáqui e se dando conta de que era considerada realmente uma presa extremamente perigosa. “Da minha saída da prisão, sempre me lembro de enorme claridade, vi São Paulo iluminada. Mesmo assim, a ameaça continuaria presente: o próprio juiz disse a mim e ao César que, da próxima vez, a gente podia amanhecer na sarjeta com a boca cheia de formiga”.
Amelinha foi então à luta atrás de um emprego, que todos negavam, sendo que alguns preferiam oferecer-lhe algum dinheiro ao invés de comprometer a empresa junto aos órgãos de repressão. “A primeira a me dar emprego foi uma alemã judia, que depois de um mês recebeu a visita de um agente do Dops pedindo minha demissão. Ela se recusou. E me contou sua história de judia perseguida durante a Segunda Guerra, tendo por isso fugido para o Brasil aos 19 anos. Beijei bastante aquela mulher, que amei por sua vida inteira”.
Discussões que tomaram o dia
O evento “Memórias insubmissas: mulheres, ditaduras militares, Anistia” tomou a manhã e a tarde do último dia 29. Da primeira mesa, juntamente com Maria Amélia de Almeida Teles, participaram Rachel Soihet (UFF), que falou sobre “Cisões, alianças e sucessos dos feminismos no Rio de Janeiro”; e Graciela Sapriza (Universidade da República do Uruguai), que trouxe o tema “Narrar después: memoria de mujeres sobre la violencia política en Uruguay, 1970-1985”.
Na segunda mesa, à tarde, estiveram: Criméia A. S. de Almeida (União de Mulheres de São Paulo) abordando “Anistia, passado e presente”; Danda Prado (Editora Brasiliense), com “Da imprevisibilid
ade”; e Maria Lygia Quartim (Unicamp), explanando sobre “O feminismo político do século XXI”. O encontro organizado pela professora Margareth Rago teve apoio do Programa de Pós-Graduação em História, da Secretaria de Eventos do IFCH, do Arquivo Edgard Leuenroth (com a exposição virtual “A luta pela Anistia– 30 anos”) e do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp.
FONTE: UNICAMP