Nataly Queiroz – Grupo Curumim (2009)- http://grupocurumim.blogspot.com/
Há mais de três anos tramita no Congresso Nacional o projeto de lei, elaborado por uma comissão tripartite, o qual recomenda a descriminalização do aborto no Brasil por entender a prática como um problema de saúde pública e que deve ser tratado no âmbito das políticas sociais desta área. Paralelamente, o país vivencia a radicalização dos setores religiosos em torno da temática relativa aos direitos reprodutivos. Em janeiro do ano passado, o ex-arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso, tentou impedir a distribuição da contracepção de emergência durante o carnaval nos dois municípios, utilizando argumentos do direito canônico e ameaçando a excomunhão de fiéis que utilizassem métodos contraceptivos. Ainda no primeiro semestre, a Vara do Tribunal do Júri do Mato Grosso do Sul indiciou 9.896 mulheres, acusadas de provocarem abortamentos. Apesar de toda esta movimentação, pouco se discute seriamente o assunto, e quando é pautado nos mass media, o tema geralmente surge com fontes primárias (polícia, órgãos públicos, etc), sem contemplar as diversas vozes e posicionamentos, envolvidos na problemática.
Diante desta conjuntura, as organizações não governamentais IPAS, Grupo Curumim e o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) criaram, no ano passado, o projeto “Realidade do aborto inseguro em Pernambuco: o impacto da ilegalidade do abortamento na saúde das mulheres e nos serviços de saúde do Recife e de Petrolina”. O objetivo geral da ação é promover o debate sobre o impacto da ilegalidade na realidade do abortamento inseguro, assim como na saúde, na vida das mulheres e nos serviços do Sistema Único de Saúde.
A metodologia do projeto previu a coleta de elementos e pretende traçar o perfil das mulheres que interrompem a gravidez voluntariamente. Para tal, as pesquisadoras das três instituições analisaram dados, coletados do sistema de informações do Ministério da Saúde (DATA SUS) e das secretárias estaduais e municipais de Saúde, bem como, realizaram entrevistas nas maternidades de referência, com gestores, profissionais de saúde e pacientes. Apesar de a primeira ação ter acontecido em Pernambuco, a abrangência da iniciativa é nacional. Outros estados como Bahia e Mato Grosso do Sul foram visitados.
No primeiro momento, foram visitadas as maternidades de Pernambuco, Barros Lima (Recife) e Dom Malan (Petrolina). É preciso destacar que a cada intervenção estadual houve a elaboração de uma agenda de atividades para promoção do debate público no local e também em Brasília, com a apresentação dos dossiês em audiências na Câmara dos Deputados.
Assim sendo, o projeto também tem como objetivos: produzir informações e dados sobre o impacto da ilegalidade do aborto na saúde, na vida das mulheres, nos serviços de saúde e no Sistema Único de Saúde (SUS); divulgar os resultados do levantamento para deputados estaduais, gestores locais, representantes do Ministério Público estadual, Conselhos de Saúde, Comitê Estadual de Mortalidade Materna e outros; apontar recomendações para que os parlamentares apóiem projetos de lei visando à revisão da legislação punitiva em relação ao aborto do nosso ordenamento jurídico tomando como referência a proposta elaborada pela Comissão Tripartite em agosto de 2005.
Para alcançar tais metas, o projeto produz elementos informativos e provocadores do debate público. Os dossiês estaduais possuem uma abordagem de direitos humanos sobre o assunto. Em Pernambuco, os resultados já foram sistematizados e apresentados em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, no dia 02 de julho de 2008. O mesmo material foi foco de outra audiência na Assembléia Legislativa de Pernambuco, ocorrida no dia 12 de agosto do mesmo ano. Concomitantemente, a metodologia incluiu a sistematização da experiência com vistas a subsidiar outras atividades similares e a articulação com a imprensa e com o movimento de mulheres para assegurar o debate público e gerar uma mobilização social com os diversos atores sociais.
Os impactos da ilegalidade do aborto no filtro da mídia
Como uma das principais estratégias de intervenção do projeto é a promoção do debate público, através das informações levantadas pela pesquisa e da assessoria de imprensa, vale abrir parênteses para discutir a relação entre mídia e aborto. Durante o trabalho de assessoria de imprensa, é possível observar as interdições e os impactos da agenda setting no trato com a temática do aborto. A cobertura dos jornais revela, mesmo nos não-ditos, as tendências políticas e sociais dominantes, ou mesmo latentes. O direcionamento, geralmente, diante de assuntos polêmicos é a manutenção de posturas e argumentos advindos do senso comum, no sentido da posição majoritária adotada pela sociedade em que se está inserido. É bom lembrar ainda que os não-ditos se baseiam em exclusão, intencional ou não, de determinados assuntos, fontes e versões da temática sobre a qual se constrói um discurso. No caso, o tema do aborto está na pauta dos editores, tanto que enviam repórteres para as coletivas e atos públicos, no entanto, dificilmente, o material é publicado nos noticiários e impressos. Ou seja, em muitos casos, é filtrado nas redações, não alcançando o grande público.
A cada visita às maternidades foram encaminhadas pautas, comunicando a ação. Os resultados foram repassados através de entrevistas posteriores às intervenções e de coletivas à imprensa (em Petrolina e no Recife). Posteriormente, nas audiências que aconteceram na Câmara dos Deputados, em Brasília, e na Assembléia Legislativa de Pernambuco também foram enviados releases. No total, durante a execução do projeto em Pernambuco, foram encaminhadas sete sugestões pautas. Estas resultaram 47 inserções na grande mídia, entre os meses de junho e agosto de 2008, das quais oito foram produzidas por veículos de outros estados.
Neste momento em que abordamos as interdições, vale tecer alguns comentários de bastidores. A coletiva em Petrolina contou com a participação de duas rádios locais, do Jornal A Gazeta do São Francisco e da TV Grande Rio (retransmissora da TV Globo). Todas as entrevistas foram ao ar. No Recife, compareceram dois jornais locais (Jornal do Commercio e Folha de Pernambuco), assim como, jornalistas das três principais rádios (Jornal, CBN e Folha). Das TVs, apenas a TV Universitária compareceu, apesar das várias ligações de diversas produções e solicitação de repasse do dossiê resumido.
< font size="2" face="Verdana, Arial, Helvetica, sans-serif">O ineditismo dos dados, somado a denúncia de ilegalidade no funcionamento da principal maternidade do sertão, responsável pelo atendimento de mais de 50 municípios, poderia ser considerado fato noticiável interessante. Mas nenhum dos jornais impressos publicaram matérias. Uma repórter ainda nos questionou sobre a possibilidade de um dos concorrentes, que não esteve na coletiva, publicar (ou não) a matéria. Ao perguntarmos o motivo da ligação em horário de fechamento de caderno, ela desconversou. Um outro radialista queria abordar a situação das maternidades, mas destacou a necessidade da pesquisadora não falar da situação das mulheres em situação de abortamento. A entrevista não aconteceu. A postura da imprensa, na verdade, não foi muito diferente da adotada nos atos públicos que acontecem no Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto (28 de setembro), quando, geralmente, aparecem jornalistas, no entanto o fato não é noticiado.
Tal prática rotineira nos jornais se apresenta como formas de controle dos discursos ou, como classificaria Michel Foucault [1], são os sistemas de exclusão. O aborto se enquadra nos três tipos de interdições, apresentados pelo autor. São estes: 1) o tabu do objeto que diz respeito, basicamente, a sexualidade e a política. Ou seja, trata-se de temas sobre os quais é possível pensar, porém não “devem” entrar no discurso; 2) ritual da circunstância, determinante das falas públicas que só devem ser proferidas em circunstâncias específicas; e 3) o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: uma ligação estabelecida sobre as fontes mais “confiáveis” para abordar determinados assuntos, centralizando vozes e unificando discursos. Todos estes tipos de interdições se concretizam como uma violação ao direito humano à comunicação, visto que excluem temáticas de interesse público e calam atores sociais importantes para o amplo debate de um determinado assunto.
O impacto social das interdições, promovida pela mídia ou outras instituições, também se revela, ainda que indiretamente, em alguns números da pesquisa. Anualmente, acontece aproximadamente um milhão de abortos no Brasil. Em 2003, o aborto foi a quarta causa de morte materna no Recife e a primeira de Petrolina. As unidades visitadas não dispunham de serviço de planejamento familiar, obrigatório segundo as normas técnicas do Ministério da Saúde, para o atendimento pós-aborto. Muitos profissionais se recusam a atender pacientes em situação de abortamento, adotando métodos como a triagem dos casos e deixando estas como os últimos atendimentos. O tabu faz com que grande parte não saiba utilizar (e não tenha interesse em participar de capacitações) sobre a Aspiração Manual Intra-uterina, indicada para o aborto seguro. E, por falar neste, em Petrolina, os profissionais desconheciam as normas sobre o aborto seguro. O Nordeste, de acordo com pesquisa do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, concentra as maiores índices de complicações advindas do aborto inseguro. A falta de informação é latente.
Nas 47 matérias publicadas acerca do projeto e do impacto da ilegalidade do aborto, ou seja, entre o que passou pelo filtro das interdições, foi possível observar aspectos positivos e resquícios da dicotomia simbólica entre ciência e religião. As abordagens privilegiaram como fontes as pesquisadoras e os dados repassados resultaram em matérias especiais espontâneas, além de um editorial, publicado pela Folha de Pernambuco, no dia 24 de junho, favorável a ampliação das discussões sobre a temática.
Parece-nos que os conflitos de cunho religioso vivenciados pelos profissionais de saúde, os quais afirmaram durante as entrevistas do projeto se recusar a atender mulheres em situação de abortamento ou se informar sobre as normas técnicas para tal procedimento, em certa medida, também invadem o espaço midiático. Em uma matéria publicada também pela Folha de Pernambuco, o repórter utiliza o verbo “confessar” na maioria das circunstâncias em que se remete ao perfil das mulheres que afirmaram ter interrompido voluntariamente a gravidez em uma pesquisa realizada pelas Universidades de Brasília e Federal do Rio de Janeiro. Apesar de ter um enfoque, no geral, favorável à discussão, com inúmeros dados, consulta a diversos pesquisadores, gestores, e um espaço considerável de mais da metade de uma página, com matéria principal, duas retrancas e infográfico, a reportagem se inicia assim: “Maneira mais simples, pelo menos para quem pratica, mas nem um pouco correta, o aborto, utilizado, principalmente, por pessoas com alto grau de escolaridade, a cada dia que passa, vem se tornando comum entre as mulheres brasileiras”.
O juízo de valor é latente na abertura, no entanto, a citada matérias aborda o “descaso com as mulheres no interior”, seguindo à baila das informações e pesquisas do projeto e do Ministério da Saúde, também favorável a descriminalização do aborto. O desconhecimento do assunto também foi visível em outras reportagens que confundiam “aborto inseguro” com “aborto ilegal”, ou em algumas que preferiram excluir a palavra “aborto” (em abordagens sobre este assunto, frisamos), substituindo por “gestantes” ou encaixando o termo “morte materna”.
Na análise do material veiculado também é preciso fazer duas breves observações sobre uma aparente geografia da credibilidade e a cultura do CTRL C + CTRL V. Para emplacar pautas nacionais sobre o assunto local, as assessorias do CFEMEA (DF), do IPAS (RJ) e do Grupo Curumim (PE) trabalharam de forma articulada, durante a audiência na Câmara dos Deputados. A pauta foi elaborada conjuntamente e distribuída aos nossos mailings de Pernambuco, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Os portais de notícias locais preferiram, ainda assim, publicar os conteúdos publicados na Agência Brasil, Agência Estado e Uol, sem consultar as fontes pernambucanas.
Uma agência entrevistou a representante do IPAS e a creditou como sendo do CFEMEA. A outra apontou o projeto como sendo uma realização exclusiva de uma das organizações. Daí inúmeros portais e jornais impressos (inclusive, o Diario de Pernambuco) repassaram as mesmas informações erradas. Na mídia local não foi diferente, apesar de terem recebido uma pauta correta. As informações veiculadas foram, de forma geral, positivas para o projeto. As fontes consultadas também foram as indicadas pelas assessorias. Mas o comportamento geral demonstra algumas fragilidades de peso expressivo na garantia da democratiza&cc
edil;ão das informações, da comunicação e a garantia a este direito humano. A cultura da regionalização do noticiável em pautas nacionais e a apressada cultura do copiar-colar são pontos que merecem sérios debates e modificações.
No entanto, é possível observar que a coleta dos dados foi impulsionadora para uma evidente abertura da imprensa a temática do impacto da ilegalidade do aborto. Radialistas, colunistas e jornalistas abriram espaço e continuam procurando as três instituições para repassar os dados e debater a interrupção voluntária da gravidez.
[1] FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 6. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000
fonte: Revista de Saúde Sexual e Reprodutiva IPAS BRASIL