A prática mais comum das manobras ideológicas para manipular as pessoas é usar conceitos e nomes que são aceitos pela maioria da sociedade para nomear ou explicar ações que representam justamente o contrário desses nomes e conceitos. Por exemplo. O golpe de Estado que os militares, junto com parcelas da sociedade (como a Igreja Católica e empresários ligados aos capitais estrangeiros) deram contra a democracia em 1964 foi chamado de Revolução. A intenção era esconder que se tratava de um processo contra a revolução que o Brasil precisava. Geralmente os mais conservadores chamam a si próprios de Democratas, para esconder que odeiam a democracia e que sonham mesmo é com um regime ditatorial. Mas escolhem o nome de democratas como uma máscara para que o povo não veja sua real face.
São inúmeros os exemplos dessa prática, sempre com o objetivo de enganar, de entorpecer mentes, de ludibriar, de esconder a verdade.
Nos próximos dias, em Brasília, haverá uma Marcha pela Vida. Um exemplo a mais dessa hipocrisia, dessa enganação, dessa forma de ludibriar todo mundo. Isso porque todas as pessoas são a favor da vida. Quem não é? Só mesmo os poderosos é que são a favor da morte (mas escondem isso).
Assim, setores de ultra-direita, a hierarquia da Igreja Católica e outros agrupamentos de matriz fascista ou assemelhada, tomam para si o título de defensores da vida, para enganar e esconder que querem mesmo é manter a situação social e política do jeito que está. Querem manter o status quo, isto é, não querem mudanças. E isso significa, em nossa sociedade, que querem que a maioria da população se mantenha na miséria e na pobreza, que essa população tenha acesso somente a escolas de baixíssima qualidade, querem que nessas escolas se ensine a religião deles e como meio de amortecer descontentamentos.
Esses falsos moralistas que se apresentam como defensores da vida, são os mesmos que escondem e protegem (e justificam) os pedófilos que estupram crianças e se servem delas para seus prazeres sexuais doentios. Destoem a vida de crianças e jovens, mas continuam à frente de igrejas e instituições. São os mesmos que estupravam e ainda violentam mulheres usando seu poder eclesiástico.
Essas pessoas que se dizem defensoras da vida, são na verdade as que querem que a mulher continue sendo subordinada na sociedade. Difundem ideias de escrituras sagradas e deuses que criaram a mulher como sombra do homem e a ele devem obediência. São religiões que justificam até mesmo o estupro e a mutilação das mulheres, como meio violento de mantê-la sob controle.
Manter as mulheres sob controle é a forma mais garantida de manter toda a sociedade oprimida, quieta. A mulher é a maioria da sociedade. Se olharmos para o planeta como um todo, a maioria dos alimentos são produzidos por mulheres. A força de trabalho feminina é a força produtiva mais importante do mundo, escondida nos cuidados da casa, da família, na atenção à saúde, na agricultura, nos teares, na limpeza e atenção à higiene …
Durante séculos (e até hoje em muitos lugares) se fez de tudo para que a mulher não pudesse expressar o seu prazer sexual. Ela deveria servir somente de meio para que o homem tivesse prazer e ser a forma de reprodução da sociedade (tendo filhos e cuidando deles). Até hoje práticas como a extirpação do clitóris são usadas para reprimir o prazer sexual.
Essa é uma forma física, mas tão violenta quanto ela, há formas psicológicas brutais. E essas são geralmente aplicadas e difundidas por religiões e seus sacerdotes, que repetem como um mantra que as mulheres são feitas para servir ao homem.
Quando as mulheres começam a se expressar como seres idependentes, esses "defensores da vida" falam que elas querem destruir os alicerces da sociedade, a família, a sociedade como um todo. Que no fundo querem todas virar prostitutas e coisa parecidas. Os mesmos que criam e reproduzem sistemas de prostituição e opressão das mulheres como objetos sexuais, têm as prostitutas como sinônimo do mal. Isso é hipocrisia.
É uma sociedade hipócrita essa que acredita nessas pessoas, que fica vendo a violência contra as mulheres como um problema menor. Que acham que o estupro é até ruim, mas pior que ele só o aborto.
Mas escondem que milhares de mulheres sofrem sequelas físicas e morrem por causa de abortos todos os anos no Brasil. Mulheres que engravidaram de forma violenta, estupradas nas ruas ou em casa por seus maridos. Mulheres que não desejam levar adiante uma gravidez que sabem que só as escravizará pelo resto da vida na miséria e em sucessivas situações de opressão e limitações.
Em artigo que colocamos mais abaixo nesta p[agina, Márcia Tiburi nos esclarece que "Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio corpo talvez também não interesse a todas as mulheres, pois isso exige uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas."
Os faltos defensores da vida (falsos moralistas, que aceitam a pedofilia, mas negam os direitos das mulheres) não querem saber das mulheres, se têm sentimentos, se têm sua própria vida. Tampouco querem saber dos fetos .. querem é saber da manutenção da situação social como está. Querem manter a mulher dopada, subordinada, escrava de uma sociedade que a vê sempre menor.
O direito ao aborto é uma das formas de defesa da vida. Da vida da mulher, da vida com liberdade, da vida com prazer. A defesa da gravidez levada a termo mesmo sem qualquer condição, é a defesa da escravidão, do sofrimento, das mulheres, das crianças …
As mulheres precisam ter o direito ao aborto. Praticado de forma segura, em hospítal público e com profissionais qualificados. Assim deixarão de morrer e de ficar sequeladas.
Durante séculos o aborto foi praticado como meio contraceptivo. Hoje não é mais necessário isso. Para evitar filhos há vários outros métodos. O principal é a informação e o acesso aos meios de forma gratuita e orientada pela saúde pública. Mas se eles falharem, as mulheres devem ter o direito ao recurso último do aborto.
Quem defende isso é que é o(a) verdadeiro(a) defensor(a) da vida.
Manifesto
a a criminalização das mulheres que praticam aborto Em defesa dos direitos das mulheres! Centenas de mulheres no Brasil estão sendo perseguidas, humilhadas e condenadas por recorrerem à prática do aborto. Isso ocorre porque ainda temos uma legislação do século passado – 1940 –, que criminaliza a mulher e quem a ajudar. A criminalização do aborto condena as mulheres a um caminho de clandestinidade, ao qual se associam graves perigos para as suas vidas, saúde física e psíquica, e não contribui para reduzir este grave problema de saúde pública. LEIA
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O dualismo pulsional entre a rejeição à gravidez e o desejo de engravidar é um aspecto todo especial das situações de grande ambigüidade típicas da natureza e da constituição feminina, possuindo, inclusive, notórias bases biológicas e psicofísicas. Na mulher, a problemática relativa ao confronto entre o seu lado afrodisíaco e o instinto maternal ( seu lado demétrico ) é muito complexa, e assim é perfeitamente compreensível a existência do conflito. Ante a esta situação, costumo salientar que a própria natureza feminina se divide em duas "metades": uma fica mais ligada ao seu lado afrodisíaco, e a outra ao instinto maternal. ( Para maiores detalhes sobre este assunto, ver "A Possibilidade de Engravidar e suas Implicações para a Mulher".) O erotismo feminino é, em boa parte, um auto-erotismo relacionado ao próprio corpo e à estética deste, caracterizando-se por um forte componente narcisista. Isto cria nas mulheres uma grande preocupação com a preservação da estética e da boa forma de seus corpos – vide o enorme empenho que elas dedicam a se embelezarem. Por outro lado, para o instinto maternal ser satisfeito, é necessário um considerável sacrifício do corpo feminino ( isto sem falar nas demais implicações e problemas decorrentes da maternidade em outras áreas da vida da mulher ). Aqui está, a meu ver, a principal razão da ambigüidade feminina com relação ao desejar e ao rejeitar a gravidez. É um inegável fato médico que a gravidez e o parto de muito sacrificam a mulher visto que, além da grande sobrecarga fisiológica e até mesmo do risco de vida que acarretam, provocam no seu corpo intensas distorções e estiramentos de tecidos que nem sempre retornam completamente ao normal durante e após o puerpério. Este fato entra em choque com o grande empenho feminino em preservar a estética, a forma e até mesmo a saúde do seu corpo. Sob o ponto de vista corpóreo, a gestação e o parto não beneficiam o corpo da mulher em quase nada – exceto por uma certa redução na incidência do câncer de mama ( ver Nota 1 ). Na realidade, a gestação e o parto são muito mais prejudiciais à mulher, pois, como vimos, implicam em considerável "agressão" anatômica e fisiológica ao seu corpo. Este dualismo das atitudes femininas com relação ao evitar e ao desejar a gravidez tem diversas consequências, tanto na vida da mulher como na própria clínica ginecológica, entre as quais podemos citar o uso irregular dos anticoncepcionais, a ocorrência de gestações conflituadas e o problema do aborto. Falemos então agora sobre o aborto. Considero o direito à interrupção de gestações indesejadas, isto é, o direito ao aborto, como um direito fundamental da mulher, e que inclusive se relaciona com a própria preservação do corpo feminino contra os pesados sacrifícios que a gestação e o parto impõem a este. Aqui, os tão debatidos direitos do embrião não podem prevalecer sobre os direitos da mulher que o abriga em seu corpo – corpo este que terá de ser consideravelmente sacrificado para que o embrião se desenvolva e nasça – ainda mais se tal ocorre contra a vontade da mulher. Os aspectos lesivos da gravidez e do parto para a mulher costumam ser sempre "ignorados" por aqueles que, muitas vezes de forma fanática, são contra a legalização ou descriminalização do aborto. Entretanto, como disse há pouco, estes aspectos lesivos constituem um inegável fato médico, uma inegável realidade médica, e todos nós, ginecologistas, os conhecemos muito bem. Vivemos em uma cultura que mitifica excessivamente as glórias da maternidade e tenta não ver o seu lado negativo – e tudo na vida tem tanto o seu lado positivo, como o negativo. Apesar dos seus aspectos gratificantes e construtivos quando inteiramente desejada, temos de reconhecer que a gravidez també m apresenta consideráveis aspectos lesivos. Quanto ao reconhecimento deste fato quero chamar a atenção para que, dependendo da ótica através da qual vemos uma determinada situação, a realidade pode aparecer diante de nós em diferentes formas e, assim sendo, aspectos usualmente não percebidos da mesma podem adquirir feições inteiramente novas. Pode parecer chocante o que vou dizer mas, biologicamente ( apesar de "naturalmente" ), o comportamento do embrião em relação ao organismo da sua hospedeira é de caráter francamente espoliativo. E o parto, o nascimento, é violento, tanto para a mãe quanto para a própria criança ( ver Nota 2 ). As diversas seqüelas que a gestação e o parto podem deixar no corpo feminino são, como já disse, muito bem conhecidas de todos nós, ginecologistas, e também das próprias mulheres. Assim, é necessário desejar muito ter um filho para que todos estes sacrifícios e riscos inerentes à gravidez e ao trabalho de parto possam ser suportados de bom grado e com satisfação pela mulher, e para que a criança seja acolhida com amor. Além deste aspecto da preservação do corpo feminino contra o que chamo de "agressões fisiológicas da gravidez e do parto", existem todos os outros motivos já bastante discutidos por todos e que também dão, a meu ver, o pleno direito à mulher ao aborto. Porém, parece-me que os fatos aqui expostos ( freqüentemente não lembrados ou não conceituados corretamente pela maioria dos que debatem a questão ) é que podem colocar o ponto final na discussão, reconhecendo de uma vez por todas este direito fundamental da mulher com relação ao seu corpo. É preciso que se compreenda que, ante a ocorrência acidental de uma gestação não desejada, a única forma de a mulher se preservar dos danos corporais que a evolução da mesma lhe acarretará é o aborto. E aqui, como já disse, dada a situação toda peculiar do embrião, os direitos deste não podem prevalecer sobre os da sua hospedeira. Com relação a uma gravidez que é deixada evoluir sob condições de forte rejeição, eu também gostaria de salientar que as implicações deste fato para a criança que irá nascer são também consideráveis, não devendo, portanto, ser negligenciadas. Lamentavelmente, este é outro aspecto que aqueles que se opõem ao direito da mulher ao aborto ingênua ou tendenciosamente costumam esquecer. Fazendo um breve retorno ao tema da ambigüidade pulsional da mulher com relação ao rejeitar e ao desejar a gravidez, deve ser aqui enfatizado que a não conscientização pela maioria das mulheres desta natural situação de ambigüidade tem diversas implicações na prática ginecológica. Entre elas, podemos citar: 1) o uso incorreto dos anticoncepcionais, com todas as preocupações daí decorrentes, o que cria várias dificuldades para uma vida sexual gratificante e tranqüila; 2) a frequente ocorrência de gestações indesejadas ( ou desejadas por um lado e rejeitadas pelo outro, consciente ou inconscientemente ) que têm de ser resolvidas através do aborto; 3) os problemas de gestações que são deixadas evoluir sob forte rejeição e, conseqüentemente, dentro de um quadro emocional adverso. Nota 1: É fato bem conhecido que, de acordo com vários estudos estatísticos, mulheres que têm mais de dois ou três filhos – principalmente se a primeira gestação ocorrer cedo na vida – apresentam uma menor incidência de câncer de mama. Do ponto de vista corporal, este parece ser o único aspecto benéfico da gravidez para a mulher. Esta relativa proteção é devida aos padrões hormonais típicos da gravidez e às suas ações sobre as estruturas glandulares mamárias. Assim mesmo, considerando-se a alta incidência da doença, o número de mulheres com filhos e que vêm a desenvolver câncer de mama também é enorme. Nota 2: Quanto aos aspectos traumáticos do parto pélvico para a criança, ver os estudos de Stanislav Grof acerca das "matrizes perinatais do inconsciente". De acordo com Grof, elas consistem em conteúdos psicológicos inconscientes predominantemente traumáticos claramente relacionados às fases do nascimento, e costumam emergir associados a elementos arquetípicos e mitológicos, sendo detectados à pesquisa psíquica profunda ( Grof, S. – "Além do Cérebro – Nascimento, Morte e Transcendência em Psicoterapia" – McGraw-Hill, São Paulo, 1988 ). P.S.: Este texto contém uma abordagem mais aprofundada de alguns tópicos de "A Possibilidade de Engravidar e suas Implicações para a Mulher". Nelson Soucasaux é ginecologista, dedicado à Ginecologia Clínica, Preventiva e Psicossomática. Formado em 1974 pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor de diversos trabalhos publicados em revistas médicas e dos livros "Novas Perspectivas em Ginecologia" e "Os Órgãos Sexuais Femininos: Forma, Função, Símbolo e Arquétipo", publicados pela Imago Editora, Rio de Janeiro, 1990, 1993. |
Aborto ilegal é maior causa de morte materna em cidades pernambucanas |
02 de julho de 2008 | |
As conseqüências do aborto ilegal são a principal causa de morte materna em cidades pernambucanas como Petrolina. Em Recife, capital do estado, elas aparecem em quarto lugar. É o que aponta o estudo Dossiê sobre a Realidade do Aborto Inseguro em Pernambuco: o Impacto da Ilegalidade do Abortamento na Saúde das Mulheres e nos Serviços de Saúde de Recife e Petrolina, divulgado hoje (2) pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea). Números da Gerência de Saúde da Mulher da prefeitura de Recife revelam que, em 2007, foram realizadas 1.835 internações para procedimentos obstétricos relacionados ao aborto maternidades municipais. No mesmo período, foram internadas 2.442 mulheres para procedimentos de aborto em Recife. Entre os anos de 2003 a 2007, aproximadamente 85% das internações obstétricas ocorridas em Pernambuco foram para assistência ao parto, das quais 19,7% foram cesáreas. O abortamento foi a causa de 9,7% das internações. Dados da pesquisa apontam que o número de internações de mulheres de outros municípios provoca superlotação dos leitos nos hospitais em Recife e em Petrolina. Na maternidade Barros Lima, na capital pernambucana, 47% dos procedimentos são voltados para o atendimento de mulheres que moram em cidades vizinhas. Na maternidade Dom Malam, em Petrolina, são atendidas pacientes de 57 cidades não apenas de Pernambuco, mas também do Piauí, do Ceará e da Bahia. O estudo cita pesquisa realizada pelo Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro, que registrou, em Pernambuco, uma taxa de abortos induzidos que varia de 30% a 70%, envolvendo mulheres de 15 anos a 44 anos. A ilegalidade do aborto, segundo o CFemea, leva à subnotificação e ao sub-registro de informações relacionadas ao aborto no Sistema Único de Saúde (SUS) e contribui para o aumento dos riscos à saúde a à vida das mulheres que vivem em Pernambuco. A pesquisa aponta ainda que o tratamento das complicações do aborto inseguro tem impacto financeiro direto no SUS. De acordo com o CFemea, a legislação brasileira permite a realização de aborto nos serviços de saúde quando a vida da mulher está em risco ou quando a gravidez é resultado de estupro. Mas dados do levantamento indicam que, muitas vezes, tais serviços não estão disponíveis, nem mesmo para os casos previstos em lei. O estudo revela também que os grupos de mulheres são afetados de forma desigual em todo o país. Na década de 90, segundo o CFemea, a Região Nordeste concentrava altas taxas de mortalidade materna por aborto inseguro. As disparidades sociais e econômicas, de acordo com o estudo, afetam o acesso aos serviços de atenção à saúde nos diferentes grupos étnicos e raciais brasileiros. Dentre as recomendações feitas pelo CFemea à gestão do SUS estão equipar “urgentemente” com tecnologias e equipamentos de ultrassonografia os serviços de saúde, elaborar e disseminar campanhas de difusão da prevenção e do tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes e também campanhas de informação sobre a contracepção de emergência. Para a entidade, além disso, é preciso facilitar a compra de medicamentos de contracepção de emergência, para garantir a obtenção deles principalmente às maternidades e hospitais de pequeno porte e do interior. Fonte: Agência Brasil |
Direito ao Aborto | |
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Escrito por Frei Betto | |
13-Mar-2009 | |
Embora contrário ao aborto, admito a sua descriminalização em certos casos, como o de estupro, e não apóio a postura do arcebispo de Olinda e Recife ao exigir de uma criança de 9 anos assumir uma gravidez indesejada sob grave risco à sua sobrevivência física (pois a psíquica está lesada) e ainda excomungar os que a ajudaram a interrompê-la. Ao longo da história, a Igreja Católica nunca chegou a uma posição unânime e definitiva quanto ao aborto. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões situa-se a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado ser humano. Até hoje, nem a ciência nem a teologia têm a resposta exata. A questão permanece em aberto. Santo Agostinho (séc. IV) admite que só a partir de 40 dias após a fecundação se pode falar em pessoa. Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) reafirma não reconhecer como humano o embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a "alma racional". Esta posição virou doutrina oficial da Igreja a partir do Concílio de Trento (séc. XVI). Mas foi contestada por teólogos que, baseados na autoridade de Tertuliano (séc. III) e de santo Alberto Magno (séc. XIII), defendem a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação trata-se de um ser humano em processo. Esta tese foi incorporada pela encíclica Apostolica Sedis (1869), na qual o papa Pio IX condena toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez. No século XX, introduz-se a discussão entre aborto direto e indireto. Roma passa a admitir o aborto indireto em caso de gravidez tubária ou câncer no útero. Mas não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro. Bernhard Haering, renomado moralista católico, admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou se o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita aceitar a gravidez. É o que a teologia moral denomina ignorância invencível. A Igreja não tem o direito de exigir de seus fiéis atitudes heróicas. Roma é contra o aborto por considerá-lo supressão voluntária de uma vida humana. Princípio que nem sempre a Igreja aplicou com igual rigor a outras esferas, pois defende o direito de países adotarem a pena de morte, a legitimidade da "guerra justa" e a revolução popular em caso de tirania prolongada e inamovível por outros meios (Populorum Progresio). Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir da fecundação, ela jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreve rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados… Para a genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a ginecologia-obstetrícia, desde a nidação. Para a neurofisiologia, só quando se forma o cérebro. E para a psicossociologia, quando há relacionamento personalizado. Em suma, carece a ciência de consenso quanto ao início da vida humana. Partilho a opinião de que, desde a fecundação, já há vida com destino humano e, portanto, histórico. Sob a ótica cristã, a dignidade de um ser não deriva daquilo que ele é e sim do que pode vir a ser. Por isso, o cristianismo defende os direitos inalienáveis dos que se situam no último degrau da escala humana e social. O debate sobre se o ser embrionário merece ou não reconhecimento de sua dignidade não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou conveniência social, como é o caso da menina do Recife. Se os moralistas fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se tornasse necessário e todos pudessem nascer em condições sociais seguras. Ora, o mais cômodo é exigir que se mantenha a penalização do aborto. Mas como fica a penalização do latifúndio improdutivo e de tantas causas que, no Brasil, levam à morte, por ano, de cerca de 21 entre cada 1.000 crianças que ainda não completaram doze meses de vida? "No plano dos princípios – declarou o bispo Duchène, então presidente da Comissão Espiscopal Francesa para a Família -, lembro que todo aborto é a supressão de um ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém, substituir-me aos médicos que refletiram demoradamente no assunto em sua alma e consciência e que, confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio, tentam aliviá-la da melhor maneira, com o risco de se enganar" (La Croix, 31/3/79). O caso do Recife exige uma profunda análise quanto aos direitos do embrião e da gestante, a severa punição de estupros e violência sexual no seio da família, e dos casos de pedofilia no interior da Igreja e, sobretudo, como prescrever medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário. Frei Betto é escritor, autor, em parceria com L.F. Veríssimo e outros, de "O desafio ético" (Garamond), entre outros livros.
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Relatórios feitos por enviados do próprio Vaticano ao Brasil revelam o perfil das relações de padres e seminaristas sob a ótica sexual. Segundo o documento, cerca de 1,7 mil padres – 10% do total – no País estão envolvidos em casos de má conduta sexual, o
que inclui abuso sexual contra crianças e também contra mulheres.
Nos últimos três anos, a pedofilia no interior da Igreja Católica no Brasil já remeteu mais de 200 padres para clínicas psicológicas da própria instituição. Ainda de acordo com o relatório, cerca de 50% dos padres não mantêm o voto de castidade.
Um fator agravante é a postura da hierarquia eclesiástica brasileira, que, ao contrário do que aconteceu nos EUA, mantém a política do silêncio, abafando denúncias e protegendo os agressores.
Meryl Streep ganha prêmio em Roma por filme no qual freira acusa padre de pedofilia
A atriz americana Meryl Streep ganhará um prêmio na quarta edição do Festival Internacional de Cinema de Roma, entre os dias 15 e 23 de outubro, por seu trabalho no cinema, incluindo o longa “Dúvida”, pelo qual Streep recebeu várias indicações, entre elas, ao Globo de Ouro e ao Oscar.
A história de “Dúvida” se passa numa escola católica no Bronx (Nova York), onde a diretora Aloysius Beauvier (Meryl) é uma dura freira que acusa publicamente de pedofilia o popular padre Brendan Flynn (Seymour Hoffman, de Capote).
Veja Também:
fonte: http://conteudo.arcauniversal.com/2009/04/28/numeros-da-pedofilia-entre-padres-no-brasil-impressiona/
Aborto, soberania e mudez das mulheres *
Marcia Tiburi
Um dos aspectos mais interessantes quando se discute o aborto hoje é o fato de que os principais participantes da discussão são homens. Os mesmos que – é preciso dizer – nunca irão parir, jamais serão mães, não abortarão. Eles falam, enquanto as mulheres fazem. Não devemos com isso supor que os homens não deveriam participar de tais discussões, mas perguntar por que a palavra dos homens se mostra prevalente nesta questão. Devemos perguntar por que eles parecem mais interessados do que as imediatamente interessadas que continuam fazendo ou não seus abortos, tendo ou não seus filhos. A contradição entre o discurso dos homens e a ação praticada mulheres é o que precisa ser levada a sério. Ela pode ajudar a explicar porque o aborto não foi legalizado no Brasil e nem será em países onde as mulheres são, em sua maioria, pobres e desprovidas de poder. Por que as mulheres esperam caladas por todas as decisões políticas, inclusive às que as tocam diretamente?
A legalização do aborto não virá dos donos do poder e dos discursos que comandam e decidem sobre o corpo das mulheres. Elas, em silêncio, agem como se não fossem donas e senhoras de seus corpos. E, de fato, não o são enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da maternidade, da vida doméstica, do voyerismo do qual são a mercadoria. Que as decisões sobre seus próprios corpos não pertença às mulheres é uma contradição que poucas podem avaliar. Não ter voz significa não pertencer à política. À medida que não participam e nem percebem o quanto estão alienadas da conversa, as mulheres perpetuam a injustiça que as trouxe até aqui. Em última instância, estão distantes da ética que envolve a decisão sobre seus direitos e sua própria vida.
Além disso, a questão do aborto sinaliza que a liberdade das mulheres – prisioneiras ancestrais de uma estrutura social que tem sua lógica – está sempre vigiada. Que nossa sociedade seja patriarcal significa bem mais do que dominação dos homens sobre as mulheres. Que estas sejam vítimas e aqueles algozes. Mas que o patriarcado depende da ausência de democracia na qual os direitos das mulheres venham à luz.
O que realmente assusta quando se fala em aborto é o que virá com a fala das mulheres e que dia após dia é praticado em silêncio nas clínicas deste país. É o fato e a prática cotidiana que se realiza de modo soberano ainda que clandestino. A soberania daquele que emite uma opinião fundamentada em seu próprio nome e por sua própria voz é análoga à soberania que uma mulher pode ter sobre seu corpo. Aquele que pode falar pode fazer porque cria, por meio de sua fala, valores, relações e consensos. Aquela que fala em seu próprio nome manifesta a possibilidade universal de que muitas a sigam ou simplesmente saiam da clandestinidade, única forma pela qual mulheres podem ser soberanas sobre seus próprios corpos sem correrem riscos na ordem moral e legal. É esta soberania das mulheres que assusta. Por isso, ela permanece na clandestinidade.
A ausência histórica de autorização para a fala e, assim para o poder, é elemento fundador do lugar ocupado pelas mulheres na sociedade. A fala das mulheres causa angústia e temor na ordem. Que mulh
eres possam tomar suas decisões e sejam amparadas pela justiça é algo que uma sociedade que se construiu pela submissão das mulheres e pela superioridade dos homens não pode suportar sem uma ampla renovação dos costumes.
Hoje, as mulheres que possuem algum poder proveniente do dinheiro ou da liberdade sobre a própria vida, praticam o aborto soberanamente. As que não tem poder algum – nem aquisitivo, nem intelectual, nem qualquer outro poder que garanta a autoconsciência quanto à pertença de seus corpos – são vítimas de uma sociedade que não prevê espaço para uma prática que deveria ser medida a partir da soberania da mulher sobre seu corpo e sua vida. Homens desde sempre souberam disso e imperaram sobre seus próprios corpos e sobre todos os corpos que lhes prestaram serviços, também os corpos de seus empregados, de seus filhos e filhas.
Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio corpo talvez também não interesse a todas as mulheres, pois isso exige uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas.
* Originalmente publicado na Folha de São Paulo , 26 de julho de 2007, coluna Tendências/ Debates, A3.
O aborto dos homens
*Carla Batista
Estima-se que no Brasil se realizem cerca de 1.054.243 interrupções de uma gravidez não planejada e não desejada, ao ano. Sabemos ou concordamos que uma gestação necessita de um homem e de uma mulher para que ela tenha início. Logo, para cada uma destas mulheres que realizou um aborto, um homem também o realizou, por participação ou por ausência dele.
Estima-se ainda que cerca de 30% dos nascidos/as vivos a cada ano são filhos/as de mães solteiras. O DATASUS indica que foram 2.944.928 nascidos/as vivos/as em 2006. Então, em 2006 – ano para o qual existem as informações mais recentes – o número de abortos masculinos para estes casos foi de 883.478. Isto significa que por ano uma faixa de 1.937.721 homens realizam um aborto.
Costumamos dizer que historicamente os homens sempre realizaram os seus abortos pela boca. Eles normalmente dizem: “te vira!”, “eu não quero este filho, problema seu!”, “eu não tenho nada a ver com isso!”. Ou simplesmente vão embora, quando já não foram antes mesmo de saber os resultados de uma relação sexual sem contracepção. E ainda existem os casos de violência sexual.
É fácil assim, já que a gestação avança no corpo da mulher e tem sido dela a maior responsabilidade de acompanhar os primeiros anos de uma criança no mundo, buscando cuidar do que é necessário para que esta possa se desenvolver. O que remete a elas também a responsabilidade pela anticoncepção. Não deixando de reconhecer que existem também os casos em que a interrupção de uma gravidez é decidida de comum acordo por um casal.
Não estou aqui querendo igualar a forma como homens e mulheres experienciam o aborto. Não podemos esquecer que é na vida e também no corpo das mulheres que o drama e o estigma se instalam quando esta é a única e última possibilidade diante do inesperado/indesejado.
O caso do atual presidente do Paraguai retrata bem este fato, corriqueiro, citado acima. Quando bispo, Lugo pouco se importou em cuidar da contracepção nas suas relações afetivas/sexuais. O fato de ser homem, e de ser religioso, por si só possibilitaram um bom escudo atrás do qual se esconder e se isentar pela reprodução. Algumas pessoas dizem que a quantidade de filhos/as a aparecer, tres até agora, deverá aumentar!
A igreja, da qual Lugo fazia parte, parece que sempre soube. No entanto, se calou publicamente diante do não cumprimento do celibato. Não que esteja defendendo aqui a abstenção para as pessoas que seguem a vida religiosa, muito pelo contrário. No entanto, isso nos leva a pensar que a igreja também realiza os seus abortos, ainda que seja por cumplicidade, ou por omissão, quando lhe convém.
Felizmente, hoje em dia, existe a possibilidade da paternidade ser identificada a partir do exame de DNA. A tão propalada incontinência sexual dos homens, diante de uma gravidez, não pode mais simplesmente fechar a braguilha e abrir a boca em sua autodefesa. O caso do bispo nos serve aqui apenas como um exemplo atual e amplamente divulgado para ressaltar, mais uma vez, o fato de que os direitos sexuais e reprodutivos ainda estão longe de serem um exercício concreto para a vida das mulheres, numa sociedade estruturada pelo patriarcado.
Se nos dermos ao trabalho de fazer as contas, encontramos que ao ano, no Brasil, por volta de 3 milhões de pessoas – entre homens e mulheres – realizam um aborto. Isso significa que em 10 anos, são 30 milhões de brasileiros que recorrem a ele para afastar uma gravidez não planejada e não desejada. Seja ele (o aborto) fato concreto, seja aquele feito “pela boca”. Mesmo que grande número de pessoas sejam contrárias à legalização do abor
to, elas o praticam, e esta é uma realidade à qual não podemos nos furtar. Ninguém é a favor do aborto. Mesmo não sendo a favor, um número muito grande de pessoas o fazem, inclusive colocando vidas em risco.
Se queremos lidar de verdade com este problema, teremos, como sociedade, que fazer muito mais do que continuar empurrando-o para a clandestinidade, ou nos calando diante daqueles que preferem mantê-lo na invisibilidade. É urgente ampliar o debate sobre quais devem ser as políticas públicas que podem dar uma resposta realmente efetiva para ele.
*Educadora feminista
O dogma do aborto e o aborto do dogma
Marcos Monteiro*
A luta pela humanização se faz entre as fronteiras da ética, da moral e da lei. A grosso modo, a ética trata do bem ideal, a moral do bem real e a lei se propõe a regular de modo geral o trânsito dos cidadãos e cidadãs, entre o real e o ideal.
Se as fronteiras entre esses espaços não se encontram nunca bem definidas, há uma ética de fronteira de difícil e problemática regulamentação. Uma delas é o aborto, especialmente quando se configura como dilema ético. O problema ético, a escolha entre bem e mal, tem sempre solução mais fácil. O dilema, a escolha entre bem e bem ou entre mal e mal, nos convida à humildade e à tolerância.
O bispo de Olinda e Recife, Dom Geraldo, não acredita em dilemas nem na elasticidade de fronteiras. Administrando espaços religiosos acima dos espaços humanos e leis acima das leis, enviou para o inferno alguns adultos, pais e médicos, que promoveram o aborto de gêmeos de uma criança de nove anos que havia sido estuprada e corria riscos pela precoce e agressiva gravidez.
Sem tentar questionar os documentos que autorizam a administração pelo bispo das fronteiras entre céu e inferno e sem ter coragem de solicitar firma reconhecida para as leis de Deus, somente me pergunto se passou alguma vez pela santa cabeça do santo prelado que a sociedade estava decidindo entre dois abortos. Ou o aborto permitido pela Igreja de uma criança de nove anos, com linguagem, história, sonhos e projetos ou o proibido aborto zigótico, pelo dogma religioso, inclusive nesse caso específico, estupro, onde conta com o apoio das leis do país.
Se as leis pecam por generalizar, mas têm a vantagem de serem provisórias e circunstanciais, as leis de Deus absolutizam as generalizações e são permanentes e irrevogáveis. Portanto, o direito de legislar em nome de Deus é de indestrutível tirania.
Diante disso, se em tese devemos ser todos favoráveis à vida e contra o aborto, em casos particulares devemos defender o aborto como única possibilidade de sermos fiéis à vida.
No campo do simbólico, devemos continuar nossa luta contra o aborto de sonhos, aborto da justiça e aborto da igualdade, mas algumas leis favoráveis ao aborto devem ser promulgadas imediatamente. Abortar a corrupção no momento da concepção do projeto, abortar a violência no útero das relações assimétricas, abortar a intolerância no parto do dogmatismo, deve fazer parte da nossa pauta cidadã.
Nesse campo, na maioria das vezes, somente o transgressor é realmente ético. Afrontar leis dos homens e leis de Deus, em nome da vida, arriscar-se ao inferno de Dom Geraldo no desejo de construir um paraíso na terra, abortar um dogmatismo destrutivo e assassino, seria talvez o mais desejável projeto a ser assumido nesse mundo complexo.
Surpreendentemente, estaríamos mais próximos de Jesus de Nazaré, aquele que por amor ao amor, enfrentou as leis dos homens e as leis de Deus de seu tempo e sua época, e que paradoxalmente seria o atual patrono oficial e institucional de Dom Geraldo, bispo de Recife e Olinda, aquele que facilmente arrisca a vida de uma criança de nove anos.
Feira de Santana, 06 de março de 2009.
*Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE e da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também é coordenador do Portal da Vida e faz parte da diretoria do Centro de Ética Social Martin Luther King.
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