Jolúzia Batista, socióloga e assessora do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), fala sobre projeto de lei que regulamenta normas para o atendimento de vítimas de estupro e critica religiosos que pressionam a presidenta Dilma Rousseff por veto
A presidenta Dilma Rousseff tem até o próximo dia 1º de agosto para sancionar integral, parcialmente ou vetar o Projeto de Lei 03/2013, de autoria da deputada Iara Bernardi (PT), que regulamenta o atendimento a vítimas de estupro. Aprovado no Congresso e no Senado, o projeto gerou grande movimentação de setores religiosos e conservadores no sentido de pressionar a presidenta para que ela vete ao menos parcialmente o PLC 03/2013. Para correntes religiosas, o texto do projeto incentiva a prática do aborto e abre brechas para a legalização do mesmo no Brasil.
O deputado Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, encaminhou um ofício à presidenta pedindo o veto parcial do PL por acreditar que ele incentivaria a prática de abortos. O parlamentar defende que sejam vetados os artigos que determinam a realização da “profixalia da gravidez” e o “fornecimento às vítimas de informações sobre os direitos legais” na unidade de saúde. Feliciano possui o apoio de algumas entidades religiosas, incluindo a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Por sua vez, organizações feministas e de direitos humanos defendem que o projeto consolida uma política de atendimento as vítimas de estupro e reforça a legislação atual, na qual o aborto já é legalizado em casos de violência sexual. Na última quinta-feira, 18, representantes de movimentos feministas e parlamentares foram recebidas pela ministras da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, e da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci.
Fórum entrevistou Jolúzia Batista, socióloga e assessora do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), para entender como o PL 03/2013 altera o atendimento às mulheres vítimas de violência sexual e também qual a sua análise sobre a pressão que a presidenta Dilma Rousseff tem sofrido para vetar o projeto.
Fórum – Qual a importância da aprovação do projeto de lei 03/2013, de autoria da deputada Iara Benardi (PT), para as mulheres vítimas de violência sexual?
Jolúzia Batista – Ele consolida o atendimento, estabelece normas específicas e claras para o atendimento. Ele juntou agora a questão mais jurídica com o atendimento a saúde. É um grande avanço. O Ministério da Saúde e o da da Justiça fizeram um esforço muito grande, foi realizado um acordo de cooperação técnica para estabelecer de qual maneira os profissionais irão se comportar diante deste atendimento e da implementação desta norma técnica que, na verdade, existe desde 1998. Trata-se da norma técnica sobre prevenção e tratamento aos agravos à violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres, uma série de medidas sobre como atender as mulheres em situação de violência.
Agora, com essa portaria estabelecida, com o decreto que dá orientação à segurança pública e ao atendimento de saúde assinado pela presidenta Dilma em 13 de março, como um fato de celebração ao 8 de março [Dia da Mulher], existe um conjunto de medidas aprovadas nesse ano. O projeto da deputada Iara Bernardi já vinha há muito tempo, é a consolidação de todo um debate, de enfrentamento mesmo, desta cultura do estupro que nós vivemos no Brasil. E, principalmente, de humanizar o atendimento e dar as garantias legais para as mulheres vítimas de violência sexual.
É um esforço incrível e muito importante que o governo brasileiro fez ao priorizar e tornar isso uma questão de segurança e saúde pública. Porque, por exemplo, na cidade de São Paulo, são 37 boletins de ocorrência de violência sexual por dia. No Rio de Janeiro, são 17. A gente vê na mídia mulheres estupradas dentro de vans, de ônibus escolar. Então, é realmente um dado da nossa existência em um país de cultura extremamente machista.
O projeto dá todas as garantias de um atendimento seguro, correto e humanizado. Com a possibilidade ainda das mulheres poderem fazer o boletim de ocorrência na unidade de saúde. O que, nesse caso, dado a vulnerabilidade psicológica e física, o sentimento de culpa, a vergonha, chegar em uma unidade de saúde neste momento e contar com um serviço de apoio completo é algo extremamente importante para a dignidade humana.
Fórum – Qual novo benefício prático que o projeto coloca? No que ele avança em relação a legislação atual?
Batista – Ele tem uma portaria que foi estabelecida, torna mais clara a norma revisada ano passado. Existe um conjunto de medidas profiláticas mesmo para ser realizado, que dá mais segurança ao atendimento. E, agora, com a possibilidade de fazer o boletim de ocorrência no local, na unidade de atendimento a saúde, isso é algo que é uma das novidades. Esta é uma das perspectivas de cooperação técnica entre os ministérios da Justiça e da Saúde.
Agora se tornou obrigatório o atendimento integral. O amparo médico, psicológico e social imediato; a facilitação do registro da ocorrência; o encaminhamento aos órgãos de medicina legal, inclusive para a coleta de vestígios para saber realmente a situação do estupro; a profilaxia em relação as DST’s; aos diferentes tipos de hepatite; a questão do HIV; e a questão da anticoncepção de emergência. Esta [anticoncepção de emergência] é uma das questões polêmicas e que os parlamentares conservadores fundamentalistas cristãos estão pegando. Estão fazendo uma campanha de inverdades, algo de extrema gravidade. A contracepção de emergência não se trata ainda do abortamento. É simplesmente você poder fazer uma profilaxia para impedir que o óvulo seja fecundado pelo espermatozoide. E, ainda assim se houver gravidez, porque em muitos casos as vítimas têm vergonha ou também porque as situações de violência sexual no ambiente familiar são de muito silêncio, a vítima tem o direito assegurado por lei. Aborto legal em caso de estupro é garantido por lei no Brasil.
Então, não é abrir brecha, é fazer valer com toda a legalidade e humanidade possível o que já existe na legislação brasileira. O que está se falando é de uma inverdade e hipocrisia sem tamanho. Contaminando as cabeças das pessoas como se isso for abrir brecha para a legalização do aborto. Só que esse aborto legal [em caso de estupro] já é permitido.
Fórum – Grupos religiosos e conservadores afirmam que mulheres poderiam fingir terem sido estupradas para realizarem abortos legalmente. O que você acha desse argumento?
Batista – É uma mentira. Objetivamente, em termos práticos, se você tem todo um procedimento a ser realizado na unidade de atendimento à saúde, inclusive com a coleta de vestígio e laudo médico de corpo de delito, como que as mulheres vão mentir. Isso objetivamente. Eu não consigo imaginar essa situação das mulheres mentindo.
Agora, do ponto de vista cultural, a nossa palavra sempre está valendo menos. Nós somos aquelas que nos utilizamos de subterfúgios ardilosos para criar situações. Esses conservadores estão sempre colocando essas questões para tirar o nosso papel, nosso poder de decisão, nossa autonomia, nossa autodeterminação.
Fórum – A CNBB (Confederação Nacional de Bispos do Brasil) afirmou que o trecho do projeto que obriga as unidades de saúde a informarem as vítimas sobre seus direitos legais incentiva a prática do aborto. Que essas informações teriam que ser fornecidas apenas nas delegacias. Qual a sua opinião sobre este ponto?
Batista – Isso é um absurdo. A CNBB está pedindo a sanção com dois vetos. Um, no quarto artigo, da profilaxia, e outro nesse que se refere ao fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobretudo os serviços sanitários disponíveis.
Isso é de um absurdo sem precedentes. Não existe comentário possível. Você vai negar informação a título de dizer que vai abrir a possibilidade da pessoa fazer um aborto legal? Sim, que seja aceito. Para este caso, de violência sexual e estupro, o aborto é legal. As mulheres têm sim o direito de fazê-lo. Este argumento não procede, é de um retrocesso sem tamanho, é uma defesa anti-direitos das mulheres.
A palavra que eu tenho para descrever é “absurdo”. Nós vivemos em uma sociedade democrática e o Estado é laico. E, mais uma vez eu repito, anticoncepção de emergência é preventiva. Isso é preciso frisar porque existe muita confusão no senso comum em relação a isso. É preventiva ao estado de gravidez. É para evitar o encontro, evitar que o óvulo seja fecundado. E, mesmo no caso de óvulo fecundado, de gravidez, ainda assim é garantido o direito.
Não existe prerrogativa além daquela que nós já sabemos, deste tensionamento, desta imposição de um valor moral, religioso e cristão fundamentalista. Inclusive, agora estamos fazendo uma diferença porque existem pessoas que são adeptas da fé cristã, mas que que se regem pelo respeito às diversas religiões, pela coerência.
Esses argumentos, esse tensionamento, essas pressões feitas em cima da presidenta, isso é de conservadores fundamentalistas cristãos que estão interpretando o dogma religioso ao pé da letra. Inclusive indo contra o Estado democrático de direito brasileiro, que é um Estado laico.
Fórum – Alguns deputados alegaram aprovaram o PLC 03/2013 sem saber ao certo o que significava, uma vez que não existe a palavra aborto no texto. Outros, como o deputado Jair Bolsonaro, pediram “perdão” por votarem favoravelmente ao projeto. Como você vê esta situação em que parlamentares justificam votos afirmando não conhecer totalmente o teor do projeto?
Batista – É uma piada. Deveriam se perguntar o que estão fazendo lá. É para devolver a questão para eles. Qual seria o seu trabalho, como parlamentar, se não analisar com bastante cuidado, com bastante observância, com o critério de análise, cada projeto que chega na sua mesa? Como vai dizer que não entendeu o que estava se passando?
E, mesmo que não estivesse entendendo, por que não chamou o Ministério da Justiça e perguntou? Por que não botou seu corpo técnico, seus assessores, para pesquisar. Tem que devolver a questão para eles e perguntar qual a qualidade de um parlamentar que não entende o que está votando.
Fórum – O que você acha da pressão que grupos conservadores estão fazendo para que a presidenta Dilma vete, total ou parcialmente, o PLC 03/2013?
Batista – Acho que é bem verdadeiro que os compromissos de governabilidade foram muito amplos, mas já estamos enfrentando um cenário eleitoral para 2014. Se eu pudesse dar um conselho, diria para a presidenta que ela preste atenção no que está acontecendo nas ruas. As manifestações, aquelas de junho e as que continuam acontecendo no Rio de Janeiro, em retaliação inclusive aos altos investimentos públicos na visita do Papa, também estão refletindo sobre a agenda conservadora colocada nessa visita.
Na nossa avaliação, a partir das manifestações de junho a agenda de direitos humanos no Brasil, aquela mesma que foi sufocada nas eleições, essa agenda pró direitos, a pauta LGBT, a positividade do debate dos direitos das mulheres, a questão da legalização do aborto, essas pautas estão liberadas. Elas foram recolocadas na agenda pública brasileira e também em defesa do Estado laico brasileiro.
Sinceramente, acho que ela poderia ficar à vontade em observar o que está acontecendo nas ruas, de se pautar também pela questão da laicidade do Estado brasileiro, de reforçar isso. A gente obviamente tem de entender que existe uma equação de governabilidade, mas também precisa ser feito um equilíbrio nas concessões. Se o arranjo político é esse, precisa haver equilíbrio. A sociedade brasileira hoje está bastante dividida, essa é a minha avaliação. Temos um debate público colocado que é contra uma agenda desenvolvimentista, por financiamento em saúde e educação, pela questão da mobilidade, mas que também é pela pauta dos direitos humanos, da liberdade, da manutenção e inflexibilidade da laicidade do Estado brasileiro.
Esse equilíbrio deve ser observado, senão pode haver um momento muito difícil nas eleições. Não que os evangélicos vão fazer um grande levante, isso não vai acontecer. Nossa perspectiva é que o debate político nas eleições de 2014 será pautado por uma positividade da agenda de direitos humanos.
Fórum – Você acredita que a visita do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventute pode influenciar a decisão da presidenta Dilma Rousseff?
Batista – Acredito que as análises dos cristãos fundamentalistas possam levar para isso. Mas se você ler os principais jornais, eles dizem que 82% da juventude católica é a favor do uso de métodos contraceptivos. Temos que perguntar para a igreja católica para quem ela está falando. Existe um grande rebanho católico favorável a uma perspectiva e o poder institucional defendendo outra e pressionando as políticas públicas.
Pela fala da presidenta, quando se encontrou com o Papa Francisco e disse que aqui era um país democrático e de tolerância religiosa, quero acreditar que ela fez uma fala aberta e não vai firmar compromisso. Apesar de já termos um acordo Brasil-Vaticano.
Acredito que vetar ou sancionar parcialmente esse PLC vai ser terrível, a demonstração de como esse pacto de governabilidade tem mesmo muita força e que temos uma luta muito severa até as eleições para mudar o cenário. Sancionar isso parcialmente, sobretudo esse artigo de acesso à informação, é de um obscurantismo sem precedentes.
Fórum – Por fim, qual a sua expectativa em relação a sanção da presidenta. Acredita que ela terá força política suficiente para vencer o lobby conservador religioso e sancionar integralmente o PLC 03/2013?
Batista – A força política que ela deveria se espelhar, olhar e prestar atenção está nas ruas. Se ela prestar atenção nisso, sanciona na integralidade. Se prestar atenção no que estão dizendo os movimentos sociais que foram às ruas nas primeiras semanas de junho, ela sanciona na integralidade.
Se ela prestar atenção também ao fato de que a sociedade brasileira vive uma divisão e que os famosos 30 milhões de votos dos evangélicos já estão comprometidos com outras pautas e talvez também com outras candidaturas, perceberá que não sancionar esse PLC pode contribuir para o aumento da impopularidade dela.
É atroz você não considerar com veemência a sanção integral de um projeto como esse, que garante o atendimento em sua plenitude máxima, com toda segurança, com toda a humanização e que gera um cenário favorável para enfrentarmos a cultura do estupro. Acho mesmo que qualquer veto aumentaria a impopularidade dela, sobretudo entre os usuários do SUS.