Um relatório recém-lançado pelo fundo da ONU que se dedica às questões femininas revela que os países têm feito muito pouco – ou quase nada – para diminuir a diferença salarial entre homens e mulheres, acabar com a mortalidade materna e nos dar condições para assumir a cota que nos cabe na gestão dos negócios e da política. A diretora executiva do Unifem, Inés Alberdi, faz aqui um balanço da nossa situação, que precisa mudar urgentemente. Você é parte dessa luta pressionando nossos governantes
Em 2000, a comunidade internacional estabeleceu metas para o desenvolvimento do milênio e marcou um prazo para que elas se concretizassem: o ano de 2015. Ultrapassamos a metade do tempo e a conclusão da ONU é que há alguns avanços, como a redução do número de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia. Mas, no que se refere às mulheres, o progresso é extremamente lento. A explicação: pouquíssimos países fizeram a lição de casa.
Um exemplo é a mortalidade materna, que atinge meio milhão de grávidas por ano e poderia ser reduzida apenas com métodos contraceptivos eficazes e cuidados pré-natais básicos. Para atingir a meta, o mundo deveria diminuir 5,5% das mortes por ano, mas a redução não passa da tímida marca de 0,4%. Esses e outros dados relacionados à falta de igualdade de gênero e de empoderamento da mulher constam do relatório 2008/2009 do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), apresentado no Brasil pela número 1 da instituição, a diretora executiva Inés Alberdi.
Intitulado QUEM RESPONDE ÀS MULHERES? – GÊNERO E RESPONSABILIZAÇÃO, o documento vai além de apontar taxas e gráficos. Ele cobra dos governos e das instituições privadas que se envolvam efetivamente com o crescimento das mulheres. Não só por uma questão de justiça, mas pelo fato de que o avanço delas produz equilíbrio nas relações familiares, acelera mudanças na economia global e ainda contribui para a paz mundial. A espanhola Inés Alberdi, 61 anos, ex-deputada, doutora em ciências políticas e sociologia, percorrerá 30 países até novembro na sua cruzada em defesa da mulher. Ela conversou com CLAUDIA em Brasília sobre o relatório.
CLAUDIA Quais são os desafios para acabar com a desigualdade?
INÉS ALBERDI Os principais são três. Primeiro: as mulheres precisam de empregos decentes. A desigualdade inibe a capacidade, sobretudo das pobres, de utilizar o trabalho – seu maior recurso – para sair da pobreza. A luta contra a violência é o segundo desafio, e é pesado, porque está nos quatro cantos do mundo. O terceiro é a atuação da mulher em todos os locais onde se tomam decisões e de onde vem a autoridade sobre a sociedade. Elas têm de assumir parte da direção da economia e da política por uma questão de justiça, pois são a metade da população mundial, e para que possam ser ouvidas. É a única forma de terem atendidas as suas necessidades e as demandas das suas famílias.
CLAUDIA O relatório revela uma fuga de cérebros femininos dos países menos desenvolvidos. Diz que, entre os migrantes, o número de mulheres com curso superior é bem mais elevado que o de homens. Qual é a consequência do êxodo de talentos?
INÉS ALBERDI Quando a mulher é obrigada a abandonar tudo para buscar salários melhores, o futuro se compromete: que tipo de liderança feminina a nação mais pobre terá se as mulheres mais preparadas vão embora? Fomentar a igualdade de trabalho nas empresas é imprescindível. Não é saudável que países com poucos recursos coloquem dinheiro na educação de mulheres e as percam por falta de empregos para lhes oferecer.
CLAUDIA Nos grandes negócios, há apenas uma mulher para cada nove diretores. A média mundial sobre a disparidade de salários é 17% – há países onde ela chega a 40%. Os governos lavam as mãos dizendo que quem regula salário é o mercado e que, quanto maior a empresa, mais livre de controle. O que, de fato, eles podem fazer para acabar com essa distância?
INÉS ALBERDI Não se trata de controle sobre empresas, mas de garantir crescimento econômico para todos. Nesse aspecto, temos um argumento: contar com as mulheres é fazer boa gestão. Os governos podem interferir, sim. Na Noruega, uma lei determina que as grandes empresas reservem 40% dos conselhos de administração para as mulheres – e o resultado tem se traduzido em lucros. Já na Espanha, foi proposta lei semelhante, com prazo de cinco anos para que as mulheres chegassem à paridade. Houve protesto de empresários de peso e, infelizmente, a lei não foi aprovada. O texto final apenas sugere que haja 40% de mulheres na direção das grandes empresas. Uma pena.
Dinheiro pela igualdade As soluções para a equiparação de gênero apresentadas pelo relatório do Unifem dependem de dinheiro. O Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento,da Organização para a Cooperação e De senvolvimento Econômico (OCDE), atrela certas doações para os países pobres ao cumprimento de ações que promovam a mulher. Nesse comitê, 22 nações já doaram 60 bilhões de dólares, valor que chegará a 72 bilhões em 2010. A maior parte do dinheiro é repassada pelo Banco Mundial. Nos países beneficiários, ganham força os chamados orçamentos sensíveis ao gênero, que preveem verbas para ampliar a autonomia feminina. |
CLAUDIA Em 2008, houve protestos contra a alta do preço da comida em 34 países. No Peru, ocorreu panelaço no Congresso; no Haiti, mulheres fizeram e comeram biscoitos de lama. O Programa Alimentar Mundial considera esta a pior crise em 45 anos. As mulheres respondem por mais de 70% da mão-de-obra rural e correspondem à minoria dos donos de terra. Isso gera riscos para a segurança alimentar?
INÉS A
LBERDI Sem dúvida. O Unifem está trabalhando nas questões de direito da terra porque as pessoas que mais trabalham nela não têm acesso à propriedade. Há países em que as leis não permitem que as mulheres negociem terras ou herdem da família. As agricultoras têm grande consciência dos recursos naturais, sabem quais são as necessidades da terra e a melhor maneira de lidar com ela. No entanto, até bem pouco tempo, os programas de capacitação agrária, em muitos lugares, estavam abertos somente para os homens.
CLAUDIA Para abastecer a casa, as mulheres africanas gastam 40 milhões de horas por ano carregando água, o que corresponde ao trabalho anual de todos os franceses. Não é um desperdício de tempo?
INÉS ALBERDI Sim. É preciso tomar medidas práticas para melhorar a capacitação de água nas comunidades e facilitar a vida dessas mulheres e meninas, que poderiam estar estudando ou descansando. Mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem sem água potável, o problema mais crítico está na África subsaariana. A energia elétrica é outro produto caro e raro. Como são as mulheres que cuidam desses dois itens básicos e limitados, devem ser as mais ouvidas nas discussões sobre as mudanças climáticas.
CLAUDIA O relatório conclui que a violência contra a mulher – mais especificamente o estupro – está relacionada com o aumento da transmissão do vírus da aids. O dado surpreendeu?
INÉS ALBERDI Não. Em alguns países, 30% das mulheres contam que a primeira experiência sexual foi forçada e muitos desses casos estão nas estatísticas da aids. Há avanços no combate à violência doméstica. Noventa países criaram leis específicas – a Lei Maria da Penha, do Brasil, é uma das mais modernas e completas. O grande problema é a falta de dados porque as denúncias ainda são mínimas. Nossa luta é para aumentá-las e também para identificar e punir os agressores. Só mesmo conhecendo o tamanho da violência, podemos planejar ações efetivas – que envolvem ainda a mudança de mentalidade. Fui a uma reunião no Rio de Janeiro com homens e meninos que discutiram paternidade, equidade de gênero na saúde sexual e reprodutiva. A iniciativa é inovadora, ajuda a entender que masculinidade não é superioridade nem desprezo pelas mulheres. É amor por elas.
CLAUDIA Na Guatemala, houve protestos contra uma marca de sapatos que espalhou outdoors com fotos de mulheres mortas e a frase: “A nova coleção é de matar!” Por que o Unifem publicou o caso no relatório?
INÉS ALBERDI Pela crueza e falta de sensibilidade dos que foram capazes de ligar, de maneira frívola, sapatos a mulheres mortas no país latino-americano que tem o maior número de assassinato de mulheres por ano. O problema lá é gravíssimo. Os movimentos feministas que se sentiram ofendidos mobilizaram a opinião pública e produziram grande im pacto sobre os responsáveis políticos, que determinaram a retirada do anúncio. Foi um passo adiante no sentido de levar autoridades a tomar uma atitude e a prestar contas às mulheres. A cobrança deve ocorrer em todas as áreas onde encontramos problemas ou irregularidades: na Justiça, na prestação de serviços, na polícia, no centro de saúde, na administração municipal, na escola dos filhos. As pessoas não podem perder a capacidade de se indignar e de se defender.
CLAUDIA Ainda morrem 83 crianças em cada mil nascidas vivas. A meta é reduzir a mortalidade infantil a 31 para mil. É possível chegar a esse patamar em 2015?
INÉS ALBERDI A mortalidade infantil por doença e má nutrição decresceu mundialmente de 106 em cada mil nascidos vivos, dos anos 1990, para os números atuais. Não tem sido rápido o suficiente para chegar à meta em 2015. O nível de instrução das mães afeta a sobrevivência da criança. Quanto mais escolarizadas, maior o número de bebês vacinados, por exemplo. Já a morte materna decresceu muito menos. Só a prevenção da gravidez indesejada diminuiria um quarto das mortes. Sem falar na liberalização da interrupção da gravidez. É necessário vontade política e dinheiro para frear o problema.
CLAUDIA Um dos processos mais lentos é a conquista, na política, de cargos eletivos…
INÉS ALBERDI Ocupamos apenas 18,4% dos parlamentos. Se continuarmos no ritmo atual, vamos demorar 20 anos, nos países desenvolvidos, e 40 anos, nas nações em desenvolvimento, para chegar a 40% das Câmaras e Senados. A saída é fazer leis de cotas que garantam mais mulheres disputando as eleições, com sanção para os partidos que as descumprem.
CLAUDIA A senhora se reuniu com a bancada feminina da Câmara Federal em Brasília. Do que as deputadas, que representam menos de 9%, se queixam?
INÉS ALBERDI Elas revelaram que os partidos não respeitam as cotas e não lançam 30% de candidatas. Falaram da falta do financiamento para as campanhas e que não podem ocupar, como gostariam, os horários de rádio e TV para divulgar propostas de trabalho. Acham injusto, ainda, não ocuparem cargo na direção da Câmara. Mas vi na reunião algo raro, que não existe em nenhuma parte do mundo: independentemente das diferenças ideológicas e das siglas partidárias, elas caminham juntas para acabar com a pequena representatividade no parlamento.
CLAUDIA A recessão global é um atestado de que precisamos descobrir novas maneiras de gerenciar o mundo. A crise está levando a uma revisão de valores. A senhora acredita que ela traga oportunidades para a mulher ou significa mais dificuldades, mais portas fechadas?
INÉS ALBERDI Não sei o que vai acontecer no curto prazo. Há formas de gestão da economia que têm se mostrado pouco adequadas. A inexistência de regulação e de normas não favorece a economia. O excesso de risco nos negócios, também não. O liberalismo entende que não haja regulação e está demonstrado que não funciona. De certa maneira, um sistema bem organizado impõe melhor uso de recursos humanos – e aí há uma oportunidade para as mulheres, que significam grande quantidade de talentos que não podem mais ser desperdiçados. Há estudiosos de economia dizendo que certas coisas não teriam ocorrido se os dirigentes do mundo tivessem incluí do as mulheres nas decisões. A justificativa é simples: elas têm menos tendência ao risco, são partidárias de avançar pouco a pouco, de segurar as ganân
cias. Não há defesa melhor do que essa para convencer os empresários a convocar mulheres. Elas podem ajudar a encontrar saída diante dos impasses provocados pela recessão.
CLAUDIA O Unifem faz uma cobrança aos governos. Qual é a mudança prática que podemos esperar?
INÉS ALBERDI O objetivo do relatório é mobilizar a opinião pública. Ler informações sobre as soluções criadas nos outros países pode servir de incentivo para a tomada de medidas locais. Tenho certeza de que muitas nações vão olhar a Lei Maria da Penha e pensar: “Nós também podemos fazer igual”. O Brasil, por sua vez, vai olhar os vizinhos e notar que o número de parlamentares é mais elevado (numa referência à Argentina, presidida por uma mulher, onde há 40% de deputadas e 39% de senadoras). E vai perceber que precisa mexer nessa situação. Porque os avanços têm que ser garantidos por lei. Se o parlamento brasileiro tem cerca de 10% de mulheres, dificilmente as mudanças vão ocorrer. Conhecendo o relatório, pode-se ainda responsabilizar os governos e as esferas privadas por medidas que não estão sendo tomadas e até pedir sanções para os que barram a promoção dos seus direitos.
CLAUDIA Como a brasileira, que não está na vida pública, pode exigir o cumprimento das metas do milênio?
INÉS ALBERDI Sugiro a ela que ouça as candidatas quando há eleições, que acompanhe a trajetória de cada uma e escolha aquela que tem preocupações parecidas com as próprias. Ou vote em homens que defendem a igualdade de gênero. Fora desse período, fique atenta a irregularidades, junte as amigas e denuncie.
As 8 metas do milênio
1) Erradicar a pobreza extrema e a fome
Meta 1 A– Reduzir para a metade, entre 1990 e 2015, a proporção de pessoas que vivem com menos de 1 dólar por dia
Meta 1B – Alcançar o emprego pleno e produtivo e um trabalho digno para todos, incluindo mulheres e jovens
Meta 1 C– Reduzir para a metade, entre 1990 e 2015, a proporção de pessoas que sofrem de fome
2) Alcançar ensino primário universal (o que correspondente às cinco primeiras séries do ensino fundamental brasileiro)
Meta 2 A – Garantir que, até 2015, todas as crianças de até 10 anos, de ambos os sexos, terminem o ciclo completo de ensino primário
3) Promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres
Eliminar a disparidade de gênero em todos os níveis de ensino até 2015
4) Reduzir a mortalidade infantil
Meta 4 A – Reduzir em dois terços a taxa de moralidade das crianças com menos de 5 anos entre 1990 e 2015
5) Melhorar a saúde materna
Meta 5 A – Reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna entre 1990 e 2015
Meta 5 B – Alcançar até 2015 o acesso universal a serviços de saúde reprodutiva
6) Combater o HIV, a malária e outras doenças
Meta 6 A – Deter até 2015 e reverter a propagação do HIV.
Meta 6 B – Alcançar, até 2010, o acesso universal ao tratamento do HIV para todos aqueles que dele necessitam
Meta 6 C – Deter até 2015 e começar a reverter a incidência da malária e outras doenças importantes
7) Assegurar a sustentabilidade ambiental
Meta 7 A — Integrar os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas e programas dos países e reverter a perda de recursos ambientais.
Meta 7 B – Reduzir a perda de biodiversidade, alcançando até 2010 uma redução significativa na taxa de perda.
Meta 7 C – Reduzir à metade, até 2015, a proporção de pessoas sem acesso sustentável a água potável e ao saneamento básico.
Meta 7 D – Alcançar, até 2020, melhorias significativas na vida de pelo menos 100 milhões de moradores de bairros de lata
8) Fomentar uma parceria global para o desenvolvimento
Meta 8 A – Desenvolver um sistema comercial e financeiro mais aberto, regulamentado, previsível e não discriminatório
Meta 8 B – Atender às necessidades especiais dos países menos desenvolvidos
Meta 8 C — Atender às necessidades especiais dos países em desenvolvimento, do interior e dos pequenos estados insulares em desenvolvimento
Meta 8 D – Lidar de forma compreensiva com os problemas de dívida dos países em desenvolvimento através de medidas nacionais e internacionais de forma a tornar a dívida sustentável a longo prazo
Meta 8 E – Em cooperação com as empresas farmacêuticas, proporcionar o acesso a medicamentos essenciais a preços acessíveis, nos países em vias de desenvolvimento
Meta 8 F – Disponibilizar os benefícios das novas tecnologias, especialmente da informação e comunicação, com a cooperação do setor privado
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fonte: Revista Claudia – http://claudia.abril.com.br